03/07/2008

Vícios, ou "Mamãe, eu quero ir para Miami e quero voltar!" - a propósito do culto a Miami Vice













É um pouco injusto questionar o deslumbre quando nos referimos a filmes (ou a obras de arte em geral). Deslumbre é parte do jogo. Mesmo nos casos em que não é esta a intenção primeira da obra, faz parte do papel do espectador. É seu direito: o direito de se impressionar, de perder as estribeiras. Claro, isso é ótimo. Mas é individual, intransferível, acrítico: é quando chegamos ao estágio de incomunicabilidade das impressões pessoais. Não importa quantas palavras sejam escritas para justificar, nenhuma delas transmite de fato o deslumbre (e, para aqueles que não se deslumbraram da mesma maneira, poderão parecer meras tentativas de agarrar o vento).

Há deslumbres que se tornam verdadeiros vícios – e não creio que haja problema grave nisso enquanto se restringem às esferas individuais. Uso-me como exemplo: o fascínio provocado por certa produção de desenhos animados (os de um certo grupo da Hollywood dos anos 40 e 50 – Avery, Jones, Freleng, Clampett) talvez tenha me provocado efeitos colaterais ainda não diagnosticados, mas dificilmente terá efeitos sociais mais graves. Quer dizer, é o que eu espero, pelo menos.

Mas há deslumbres que denotam com clareza os contextos sociais e históricos. Ok, ok, todas as pessoas detestam ser lembradas de questões políticas ao falar dos filmes deslumbrantes. Mas há que se falar em colonização e afirmação cultural, não há como escapar disso. É preciso sempre pensar o nosso lugar e o nosso momento, para que o deslumbre não caia no vazio.















A não ser que se prefira escapar para Miami – aí é melhor não discutir mesmo. Mas o que se leva para Miami? Apenas a roupa do corpo e o resto a gente acaba achando por lá? Ou será que há algo mais, que não sai nem depois de mil banhos com muito sabonete de primeiro mundo? Há quem diga que do mundo nada se leva, mas o que esse mundo traz para nós, impregna-se em nós? Eu disse lá em cima que o deslumbre é intransferível, mas isso não é de todo certo: o sentimento pode não ser transferível, mas a escolha pode se dar por contágio (os exemplos me parecem dispensáveis, por óbvios). É essa maldita sociedade de que fazemos parte...

Certo, não vamos culpar a sociedade por escolhas e afinidades pessoais que podem ser explicadas, eventualmente, por contextos históricos. Se o deslumbre for intenso e prazeiroso, tanto melhor. Mas a quem eventualmente não se deslumbra sobra a questão: o que a importação indistinta dos vícios de Miami acrescenta, para além do mistério gozoso? Utilizando-me do velho vocabulário colonizado: como podemos canibalizar os produtos miamescos? Como podemos engolir tudo isso, digerir o que for nutritivo e expelir o que for... digamos, o que for dispensável? Como se transforma vício em sinal de vitalidade?















Os problemas são os mesmos: escolher o que se deve devorar (porque há ossos indigeríveis e filmes sem sabor) e jogar fora o que não renovar o nosso paladar. E daí tirar energia. A opção contrária seria esvaziar-se por inteiro: entregar o corpo e a alma aos vícios. Como se sabe, viciados perdem a capacidade de distinguir sabores.

Como o leitor deve ter desconfiado, essas especulações me vieram diante da recepção eufórica de Miami Vice, de que não tomo parte. Nem tanto por ser um filme policial, é claro, porque há ótimos filmes policiais. Nem tampouco por preferir abandonar sua trama policial em detrimento de sua trama amorosa. Há ótimos filmes ditos ‘policiais’ que, ao final, se revelam belos retratos de romances (talvez porque realmente tenham interesse nos romances... mas, bem, isso não vem ao caso aqui). O mesmo poderia dizer por ser um filme que lida de forma livre com as relações de espaço e tempo (algo que já rendeu grandes filmes nos últimos quinze anos); ou por ser um filme protagonizado por atores que parecem não ser os mais indicados (há inúmeros casos de maus atores em ótimos filmes); ou por ser um filme disposto a tratar de “símbolos de uma época”, os policiais de Miami; ou por trazer de forma implícita “questões contemporâneas”, como, no caso, a internacionalização do crime. Tudo isso poderia ser defensável.

Talvez o problema, dito de forma bem simples, é que este filme não me deslumbra. Pode ser porque Gong Li sofre de grave miscasting, não sendo crível em momento algum como uma femme fatale (é talvez a pior atuação da sua carreira, não por acaso, em um papel que nada tem a ver com os que já tinha feito – é do jogo: aposta feita, aposta perdida). Ou pode ser porque Colin Farrell simplesmente nunca se mostrou adequado para o trabalho de interpretação, confundindo-o com certos movimentos faciais bastante vazios e olhares “charmosos” francamente constrangedores (lembrou-me a atuação de Ben Stiller em Zoolander – mas, no caso de Stiller, vale ressaltar que se tratava de uma paródia...). Ou talvez seja porque, como já disse, essa relação amorosa entre os personagens não me convenceu em momento algum desse filme policial que se revela história de um romance irrealizado. Eis o ponto: não me convenceu. O convencimento é fundamental para o deslumbre, mas para se convencer é preciso acreditar (e para acreditar é preciso estar disposto a isso). Ainda que haja cenas realmente interessantes, como a do tiroteio em que perdemos completamente a noção de espaço. Só que isso não é novidade alguma – a cena me lembrou, inclusive, um duelo retratado de forma semelhante num vídeo antigo da UFF, UFF, meu, dirigido pelo Carlos Sanches e pelo Fernando ‘Donan’ Antunes em 1993/94, com a mesma perda de espacialidade que caracteriza a cena (mas eu acho UFF, meu um filme bem mais interessante, com certeza, e não apenas por ter sido feito antes).















É natural fazer escolhas, por afinidade, entre produtos artesanais e industrializados – mas com muito gosto, até porque a indústria se dedica a procurar os sabores e saberes artesanais. Dessa forma, não é raro que as produções industriais pareçam ter o esmero do artesanato – mas só no caso de predominar o talento, ao invés da disposição em “estar na moda”.

De todo modo, cabe ao espectador, cada um, se localizar entre Miami e Niterói. Há coisas – idéias, vontades, afetos, afinidades - que guardamos num cantinho cá conosco, venham elas do mundo externo ou venham elas de dentro de cada um. De que forma a opção por Miami pode alimentar esse cantinho? É essa a questão que pauta esse texto. Mas a resposta é como os deslumbres: cada um vai conhecer e afirmar a sua. Se algumas pulgas saltitarem nas orelhas e consciências, se os sabores forem questionados, pelo menos esse texto seguiu bom caminho e cumpriu o seu papel.

Texto publicado originalmente em outubro de 2006