30/04/2009

Entrevista com Orlando Senna

No dia 07 de fevereiro de 2003, pouco mais de um mês após a posse do novo presidente, o novo Secretário do Audiovisual, o cineasta e professor Orlando Senna, encontrou-se com Daniel Caetano e Ruy Gardnier no Rio de Janeiro e concedeu essa entrevista.



Daniel Caetano: Para começar, pegamos como documento básico de estudo o relatório feito a partir do Seminário do Audiovisual, que é um estudo apontando problemas e propostas, mas que é sobretudo uma carta de intenções.

Orlando Senna: Eu considero um diagnóstico e uma via programática.

Daniel: A princípio, gostaríamos de saber, isso é, são apenas 30 dias de Governo Lula, mas já está começando a dar pra saber como é que o "bicho" vai reagir, como a classe cinematográfica está reagindo, quais são as propostas correntes...Queríamos, então, reavaliar como é que está a disposição do Governo no momento em relação a estas questões apontadas nesse relatório.

Orlando Senna: A disposição do governo não mudou muito desde esse recente começo. O que aconteceu nesses últimos 15 dias foi muita movimentação no setor, aquela coisa de pessoas achando que deveria se repensar a saída da Ancine para o MiDIC, gente falando que deveria juntar tudo no MinC, outras para que fosse para o Ministério das Comunicações... Houve toda uma "rebordosa" que na verdade eu não entendi muito já que algumas posições, se não eram consenso real, já eram da grande maioria... Acho que essas movimentações se acalmaram para se fazer a reunião do dia 12 (Nota do Revisor: assembléia do Congresso Brasileiro de Cinema) em Brasília. No geral, nós continuamos no mesmo caminho, nessa primeira arrumação da "casa do cinema", e vamos cumprir o que o setor de cinema propôs, que é o tripé ministerial. Depois disso tudo arrumado, vai se voltar a estudar uma verdadeira reformatação do universo audiovisual brasileiro – até porque o próprio MinC está sendo reformatado também. Uma comissão, da qual faço parte inclusive, fará toda uma reforma no MinC, pois até agora ele não era um ministério para executar ou criar políticas públicas, estava sendo usado apenas para responder a demandas pontuais, não é? Todo um novo desenho está sendo pensado agora. E aí também a Secretaria do Audiovisual (SAV) requer algumas mudanças, para que depois se volte a discutir as propostas iniciais da Ancine. Mas agora o mais importante é instalar a Ancine, localiza-la no MiDIC e tocar o barco.

Ruy Gardnier: No relatório, logo no primeiro parágrafo, aparecem duas expressões que parecem ter se tornado unânimes para toda a classe, que são: realçar a "condição estratégica do audiovisual", e a "diversidade cultural" dos produtos audiovisuais – essas duas expressões se balizam, para funcionar, num dos dados politicamente mais complicados, que passa pelo Ministério das Relações Exteriores e a Política da Exceção Cultural – queria saber a quantas anda isso, já que estava na pauta de realizações dos primeiros 100 dias de governo.

Orlando Senna: Isso evidentemente já foi comunicado ao Ministério das Relações Exteriores.

Daniel: Que está sendo levado pelo Celso Amorim, que é um parceiro antigo do cinema.

Orlando Senna: Isso. Na verdade, essa conversa deverá acontecer diretamente com o Ministério, mas os interessados (Ancine e SAV) apresentam seus subsídios e propostas. Em relação à diversidade cultural esse é um ponto que vai ser levado à OMC e à Unesco – pois a questão é pensar para que lado o Brasil deve se balançar: a posição americana ou a francesa. A americana é a de que os produtos culturais sigam um tratamento de compra e venda como a de qualquer outro produto; e a posição francesa é a de que esses produtos devem ter tratamentos diferenciados, não geridos pela leis normais. Só que os franceses colocam dentro dessa caixa de "indústria cultura" também a agricultura: o vinho, o queijo... E isso é uma proposta só francesa. O Brasil está tomando uma terceira posição, junto com Canadá, Alemanha e alguns países da América do Sul: que é uma rede de países que será organizado pela Unesco, uma convenção em que teriam uma posição comum de diferenciação da produção cultural em relação as outras, não incluindo a extensão dos franceses. Nessa terceira linha a indústria cultural seria mais restrita a seu entendimento básico: música e cinema. Claro que queijo é cultura, claro que vinho é cultura, mas aí já entraríamos em outro campo.

Daniel: Seguindo adiante, em relação a organização da Ancine, ela começou com uma MP que teve muitas mudanças em seu percurso – algumas ainda não muito claras, outras ainda acontecidas de fato, eu gostaria de saber se o governo já tem uma posição clara sobre ela, pois a classe tem uma posição, os exibidores tem outra, e até a sociedade civil pode ter uma terceira. O governo Lula já tem uma proposta inicial para a Ancine ou pretende esperar as propostas da classe?

Orlando Senna: O MinC tem essa posição que eu dei, inclusive hoje está nos jornais o encontro do Gustavo (Dahl, diretor da Ancine) com o Gil, mantendo-se a estrutura do tripé e instalação da Ancine. O Gil já está até apressando as conversas da Ancine com a Casa Civil. Estamos esperando a assembléia geral do dia 12 apenas para ver se existe alguma proposta de modificação, mas não acredito que haja algo tão novo que possa mudar esse desenho.

Daniel: Mas a Ancine vai ser uma agência só reguladora ou vai ser de fomento?

Orlando Senna: A principio é uma discussão onde deve-se levar em conta o aspecto jurídico. O ministério já esclareceu que no Brasil só existe agência ou fiscalizadora ou fomentadora, e que uma agência fiscalizadora não pode fomentar, a não ser que se estabeleçam novas diretrizes. As agências que fomentam são as de desenvolvimento, e não as reguladoras/fiscalizadoras. Isso é uma questão a ser definida nos próximos dias - entra muito nessa questão jurídica. Parece que existe uma posição majoritária do setor para que seja também fomentadora, e aí se criaria um quarto locus, pois isso não pode ser feito diretamente nem pela Ancine, nem pela SAV, nem pelo Conselho... Eu espero que esteja dentro da Ancine de alguma forma. Nisso existe um perigo das partes interessadas gritarem, os americanos começarem a gritar: "não pode ter agência que fiscalize e fomente"... São aspectos que o governo, a Casa Civil e a justiça terão de pensar.

Daniel: Mas há uma preocupação de que a Ancine mesmo não fomentando diretamente, dê a orientação, um subsídio jurídico e teórico para que o fomento se dê de forma transparente, é isso?

Orlando Senna: Cria-se a figura do fomento indireto...talvez soe bem aos ouvidos jurídicos – a Ancine não tocaria no dinheiro, mas indicaria os moldes de fomento.

Daniel: Mas a Ancine não tem ainda nem estrutura para fiscalizar, agir com poder de polícia...

Orlando Senna: Mas isso é que eu chamo dela estar instalada: ter poder de polícia para fiscalizar, regular. Menos mexer com dinheiro, parece.

Daniel: E se a Ancine, a agência reguladora, por problemas de coesão interna não tomar atitudes necessárias já acertadas pela classe? Sendo uma agência independente, cria-se um conflito.

Orlando Senna: Mas a Ancine é independente mas é uma agência do Estado. E o Estado pode intervir na agência do Estado – se a CIA não funciona, o Estado norte-americano pode intervir. Ela tem independência em relação a mandados, em relação a administração. Independente do Governo, e não do Estado. Elas são feitas assim, para se liberar a questão das mudanças de governo, para que isso não atrapalhe uma processo que é do Estado, mas não do Governo. Mas o Governo pode intervir se precisar... Internamente seria ótimo que a diretoria colegiada funcionasse de maneira harmônica, com resultados não arrastados. Acho, como cineasta, que deveria se criar uma 5a diretoria para o chamado "cinema cultural", ao menos para se entender o que é essa expressão, deixar claras as suas demandas.

Daniel: Mas o cinema cultural ainda será do MinC ? Fomentado pelo MinC, certo?

Orlando Senna: A Ancine não fomenta, certo? Os projetos do Minc são fomentados e complementados pelas leis de incentivo. Leis essas que serão administradas pela Ancine. Hoje mesmo, criamos um acordo numa reunião muito boa: um modus operandi para que os projetos vindos do MinC sejam projetos de tratamento prioritário.

Daniel: E a intenção é reformular os concursos de curtas, documentários e de baixos- orçamentos (BOs)?

Orlando Senna: Vamos manter essa linha de trabalho com editais, acrescentando a possibilidade de estímulos a telefilmes e a teses de escolas de cinema. Mas também vamos dedicar alguns projetos às linhas prioritárias do Governo: a inserção social. Já temos no papel dois programas, para serem lançados, um chamado Cinema Fome Zero que é o estímulo para a produção de filmes de ficção e documentários em áreas rurais carentes. Os filmes utilizariam a infraestrutura local, com 30 ou 40% do orçamento empregado lá, dando ainda 15% da renda do primeiro ano para a região. Inicialmente serão 5 filmes no nordeste, e outros tipos de filmes em outras regiões carentes. Um outro projeto nessa linha é o de realização de curtas para realizadores que vivem e trabalham em comunidades de ate 20 mil moradores. Isso teria uma extensão para a comunidade, capacitação básica que incluiria a exibição de filmes brasileiros para a comunidade: inserção cultural e cinematográfica. Uma linha geral do Governo Lula.

Ruy: Uns dos fatores mais elaborados é a proposta da Rede Publica de Televisão, e isso leva a uma tecla em que o Daniel vem batendo bastante, que é o fato dos filmes da retomada, custeados pelo Estado, acabam não dando a contrapartida social básica que é ser visto pelas pessoas. O Estado fomenta mas não consegue ter direito nenhum sobres os filmes, nem que seja o direito sobre os filmes após 3 anos para a exibição na TVE. Mesmo com a qualidade dos filmes de 2002, poucos são os filmes que chegaram a 200 mil espectadores, e uma audiência básica da TVE já chega a 500 mil espectadores... Existe algum projeto para que esses filmes possam chegar a redes públicas de TV?

Orlando Senna: Não em detalhes, isso estaria num segundo momento – inclusive está incluído no programa de governo no que diz respeito ao audiovisual, que é o encontro da produção audiovisual com a difusão referente a TV. Isso é projeto de governo, anunciado.

Daniel: E sobre os editais? Além desses dois de inclusão social...

Orlando Senna: Vamos trabalhar para curtas e BOs. Juntos, ou passo a passo.

Daniel: Mas está na agenda?

Orlando Senna: Está. Todo governo em seu primeiro ano tem um orçamento que não corresponde aos projetos do governo, feito pelo governo passado, e então temos que nos adequar a esse processo – um orçamento de 15 milhões apenas – dá pra fazer dois concursos, dois concursos pequenos...e vamos buscar recursos em fundações, instituições.

Daniel: O CTAv continua na Funarte?

Orlando Senna: Sim, mas já está sendo feito seu resgate, o Sérgio Sanz já está nomeado e em ação, com alguns recursos para começar a resgatar aquilo tudo, os equipamentos que devem ser revistos, limpos, organizados...

Daniel: Tenho que dizer que só posso ter elogios ao trabalho anterior do Roberto Leite...

Orlando Senna: É, o problema não era o Roberto Leite. Mas o esvaziamento da Funarte, a partir das secretarias do ministério que começaram a ter funções paralelas as da Funarte... Essa reorganização do MinC tem a ver com isso, por exemplo: a Funarte tem um setor de artes cênicas mas existe também a secretaria das artes cênicas. Estamos tentando ter dinheiro de fora para o CTAv, não o bastante para a recuperação total do CTAv, que tinha uma atividade muito intensa, de formação e apoio a atividades independentes. Vamos tentar conseguir dinheiro fora.

Daniel: BNDES por exemplo?

Orlando Senna: Pode ser...mas também pode ser até de fora do Brasil. Retomar um convênio com o Film Board do Canadá, por exemplo.

Daniel: Com relação ao estímulo de produções independentes, o CTAv empresta equipamentos para a produção de baixíssimo orçamento, certo? Mas está todo concentrado no Rio de Janeiro. Sabemos que existe um apelo para que existam outros pequenos pólos, em outras regiões como Brasília e Ceará.

Orlando Senna: Temos essa perspectiva de se criar pequenos núcleos com equipamentos básicos, para que as pessoas não tenham que se deslocar. Mas são passos seguintes.

Daniel: O BNDES tem um programa de empréstimo para produtores, e como o BNDES tem sido usado mais por grandes empresas do que pelas pequenas, no cinema isso se reproduz. A estrutura ainda é para os grandes produtores. Há alguma idéia de se criar projetos de financiamento através de outros formatos? Projetos de fundos cinematográficos que seriam realimentados, fomentando vários filmes? Queria saber se existe essa idéia.

Orlando Senna: Existe a idéia de uma reformatação geral do universo audiovisual brasileiro, mas eu não posso entrar em detalhes. Existem estudos, idéias, mas acho que não posso falar agora e nem acho que seja eu que deva falar sobre isso...

Daniel: Mas nós o procuramos como um representante do Governo Lula...Nesse primeiro ano ainda não deve acontecer muita coisa...

Orlando Senna: Não, não. Muita coisa já pode acontecer esse ano, estamos numa fase de implantação de si mesmo. Número um: instalação da Ancine. Número dois: reformatação do MinC. Um mês é muito pouco, bicho... Quando se chega no ministério é que você vai ver que aquilo ali não é um ministério preparado para se fazer o nosso programa. Vai ser preciso uma outra coisa, antes de começar a trabalhar realmente.

Daniel: A idéia de reformulação de leis de incentivo vai ficar com a Casa Civil?

Orlando Senna: Isso. E, evidentemente, através de nossas opiniões.

Daniel: Pois há a questão que o Ruy levantou da contrapartida da exibição dos filmes por parte do Estado...

Orlando Senna: Mas essa é só a contrapartida básica, comercial até.

Daniel: Mas é a única consistente...

Orlando Senna: Não. Por exemplo, na última reunião da Secretaria da Comunicação Social, eu propus uma contrapartida que foi muito bem aceita: que todo o filme que entre nesse processo de incentivo ou patrocínio estatal tenha de fazer um contratipo para as cinematecas.

Daniel: Mas isso já está na lei, mas ninguém faz...A idéia de os filmes serem exibidos na TV por exemplo, muitos produtores não têm o menor interesse em discutir... Acho importante cairmos no assunto televisão.

Orlando Senna: A televisão é, eu acho, um grande projeto: uma rede realmente pública de Tv. Uma rede que tem que ser gerida com a co-participação da sociedade civil. É um projetaço... Vamos ter que juntar esses vários pontos de transmissão que já existem, e pensar também no conteúdo.

Daniel: Mas o conteúdo, de alguma forma, já é bancado, os filmes por exemplo. A transmissão é que ainda é muito ruim...no interior do Estado do Rio já é ruim, imagina em regiões mais afastadas? Precisa melhorar.

Orlando Senna: Isso está no projeto do governo. A melhoria tecnológica da TV pública.

Daniel: Hoje, a única TV que pega bem no país inteiro é a Globo, e o SBT um pouco...a TVE está em poucos lugares.

Orlando Senna: São duas possibilidades para se fazer essa rede, apesar de ainda estar muito virgem: uma por satélite, a outra ponto-a-ponto.

Daniel: Mas é um projeto urgente para o Governo?

Orlando Senna: É.

Ruy: Com a rede pública funcionando, um problema sério seria diminuído, que é a do tempo de filmagem e captação de 4 ou 5 anos para os realizadores. Com a rede pública de TV seria possível fazer filmes sem o suporte de película, o que daria continuidade ao trabalho dos realizadores.

Orlando Senna: Por isso insisto em incluir na agenda da produção a questão do telefilme... com R$300, 400 mil, e até menos.

Ruy: Um aspecto que ficou ausente no relatório, mesmo que não para defendê-lo, mas que faz parte de um modelo de descentralização, é a questão do teto de captação, se vai haver um limite de captação e orçamento.

Orlando Senna: Minha opinião é que o custo do filme brasileiro foi aumentado de forma absurda, fictícia. E por causa disso se paga muito a eles... Citemos exemplos que passam na nossa cara: Amarelo Manga foi feito com 600 mil, Domingos de Oliveira fez dois com 400 mil, cada um.

Ruy: Bressane faz com 200 mil...

Orlando Senna: Então existe alguma coisa errada aí com esses filmes de 3 milhões de reais...

Daniel: A idéia então é ter o filme barato como um referencial?

Orlando Senna: É. Acho que isso, esse aumento, tem muita influência dos americanos – aumentar o valor dos filmes brasileiros.

Daniel: Para inviabilizar o número de filmes em competição. Mais caros, menos filmes. Menos filmes, menos competição.

Ruy: Num país em que todos os realizadores tivessem condições de ser financiados, não faria sentido discutir teto de captação, mas aqui no Brasil, filmes como Xangô e Carandiru tem orçamentos muito grandes, e criam um problema a se discutir.

Orlando Senna: O próprio orçamento dos documentários longos está começando a bater em 1 milhão...Um filme como Rocha que Voa, melhor documentário feito ano passado na minha opinião, com grande impacto no exterior, é um filme de 100 mil reais. O Coutinho faz com 300 mil... 1 milhão para um documentário é um exagero. Se o Erik Rocha faz um filme daquele com 100, 150 mil... Então, querer fazer documentário de 1 milhão... estamos falando de coisas bem diferentes.

Daniel: E com relação aos programas independentes e regionais na TV?

Orlando Senna: Isso é a lei da Jandira Feghali e o Senado é que vê.

Daniel: Mas o governo propõe, negocia...

Orlando Senna: O que podemos fazer é tentar utilizar nossas bases, apoiar a iniciativa. Tanto que conseguiu ser aprovada no Congresso e agora está no Senado.

Daniel: E o governo é simpático a essa lei?

Orlando Senna: Até agora, é simpático. Não tenho porque dizer que não – tanto que está defendido por uma deputada da base do governo.

Ruy: Bem...novamente sobre as leis de incentivo, há uma parte que me pareceu problemática, que é a adoção do conceito de "função social" e "qualidade do projeto". Me parece complicado na medida em que certas obras, que em sua época foram consideradas de conteúdo pornográfico, hoje são marcos da cinematografia e literatura mundial, como os filmes do Carlão Reichenbach. Filmes que foram considerados pornografia mas que tinham uma pesquisa de linguagem que pouca gente fazia na época. Ao contrário de realizadores que, digamos, vampirizavam a coisa do filme histórico-cultural.

Orlando Senna: Mas o documento não fala de qualidade artística. O que queremos é saber o que esse cinema devolve a grande linha do governo de agora, que é a inclusão social. Não é questão de linguagem boa ou ruim...até porque não dá pra ver isso no projeto.

Ruy: Mas isso está no texto: qualidade do projeto.

Daniel: E como medir o retorno social de filmes feitos na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo?

Orlando Senna: É uma questão de análise. Incentivos fiscais não podem funcionar para filmes de alto retorno comercial, Xuxa por exemplo...é um absurdo que isso utilize dinheiro público.

Daniel: E como o governo pretende apoiar esses filmes de apelo comercial elevado?

Orlando Senna: Apoiando de uma maneira geral como se apóia o audiovisual em qualquer país organizado, mas não especificamente cada projeto. O apoio pontual do governo deve ir para projetos voltados para a inclusão social. Ao combate à fome e à descentralização. Temos que entender que esse governo não é neoliberal! Os projetos são outros. Não é uma revolução armada, mas é uma revolução de conceitos...

Daniel: Mas, por exemplo, seria possível um orçamento de 12 milhões conseguir dinheiro emprestado no BNDES?

Orlando Senna: Claro, como qualquer outra atividade industrial.

Daniel: Levando em conta que vai empregar muita gente, vai juntar público...

Orlando Senna: Claro. Na linha de um projeto audiovisual de cinema e TV considerados como área estratégica, evidentemente que o governo se interessa que se desenvolva esse tipo de atividade, seja com impacto comercial, seja na linha de um projeto audiovisual voltado para as linhas gerais do governo. Não é nenhum dirigismo... Quem quiser pode procurar empréstimo no BNDES... Agora, a SAV terá suas preferências. Ou seja, o que a grande maioria dos trabalhadores do audiovisual quer é que as leis de incentivo sejam usadas em seu sentido original: apoiar o pequeno produtor, a produção independente. E não se entende que se continue uma coisa tão desregrada que é das grandes empresas fazerem aplicações somente nelas mesmas – muito dinheiro que não vai para o produtor independente. Vamos chegar a um acordo em que as grandes empresas podem empregar dinheiro em suas fundações e centros culturais, isso é bom, mas não todo...

Ruy: A idéia de um terço, não é?

Orlando Senna: Existe essa idéia, que está rolando por aí...O governo está considerando isso.

Daniel: E a Lei do Curta que nunca foi regulada, e não existiu por muito tempo? Existe uma confusão jurídica se o Collor teria terminado com ela ou não. O governo anterior preferiu considerar que não existia. Isso será rediscutido?

Orlando Senna: A SAV não será avestruz, de forma nenhuma. Que além de esconder a cabeça no buraco acaba mostrando outra coisa, virando-a para cima. O MinC não pretende se esconder em nenhum assunto – em breve tentaremos encaminhar soluções para a questão da Lei do Curta – não haverá bundas para cima, pode ter certeza. (risos) Não sei se estou sendo claro...

Ruy: Muita coisa ainda não está definida, não há como prospectar para o futuro muito claramente ainda...

Orlando Senna: Isso mesmo. Não faz nem um mês que começamos. Um mês para arrumar a casa, até fisicamente estamos organizando aquilo lá, se você for lá vai ver, nem o espaço físico era adequado, uma coisa maluca...

Ruy: Uma coisa que a Folha de São Paulo utilizou de forma meio complicada foi em relação a fala do Gil sobre ter de ouvir os notáveis do cinema...

Daniel: Ele citou o Luiz Carlos Barreto, o Cacá Diegues...

Orlando Senna: Acho que o que o ministro quis dizer nesse momento foi que todo mundo deveria ser ouvido – e evidentemente que o que vem na cabeça quando se fala de cinema, qualquer autoridade, é pensar naturalmente nesses grandes nomes...mesmo que para a gente, mais do meio, não seja tão assim. Pois são pessoas que estão nisso há mais de meio século. Com relação a Ancine está claro que o Ministro está com o setor cinematográfico, isso é: concorda com a divisão de funções do audiovisual num tripé ministerial.

Ruy: Para uma sociedade civil que muitas vezes não está prestando atenção aos detalhes, pode soar como um retorno àquele perfil Embrafilme do "é meu amigo, pode filmar". Mesmo que não me pareça ser assim, essa frase do Gil pode dar essa idéia.

Orlando Senna: Essa questão tem dois lados – é muito difícil hoje que os caciques do cinema brasileiro tenham a influência de antes. Pois, pela primeira vez na história do cinema brasileiro, os trabalhadores da área estão organizados. Com brigas internas, é claro, mas nunca houve um tipo de organização como temos agora. Isso muda o panorama. Por outro lado, esses caciques é que levaram o cinema nas costas por quase meio século – o que nós todos fazemos agora eles levavam nas costas sozinhos. Quem criou a Embrafilme foi o Glauber Rocha!

Daniel: O Barreto diz que a Embrafilme foi uma continuação da DiFilm..

Orlando Senna: Isso. Quem indicou os modos, os caminhos aos militares, foi o Glauber, foi um cineasta. Levou isso nas costas durante muito tempo. Hoje a situação é outra. O setor está ativo e atuante como nunca esteve – não é caso de se jogar os velhos heróis fora, mas fazer um equilíbrio geral, respeitando a experiência deles.

Daniel: A gente margeou o problema ao falar de TV, o problema eterno de distribuição e exibição. Mesmo com a televisão difundida são poucos os canais, e foram-se fechando os cinemas, perdendo o apelo popular por causa disso...

Orlando Senna: Essa questão está incluída nas linhas programáticas. Além da Rede Pública, criaremos o Circuito Exibidor Popular.

Daniel: Isso está em estudo ainda, certo? Pois hoje existem tantas questões a serem levadas em conta: a exibição digital, o cinema em DVD...

Orlando Senna: Ainda não começou nenhum estudo específico – é uma idéia aceita pelo governo, só isso. Mas vai ser uma trabalheira, não poderemos construir novos cinemas, vamos ter que aproveitar tudo...

Daniel: E sobre distribuição: só existe hoje uma distribuidora estatal no Brasil. Que cuida de metade dos filmes brasileiros, e o resto fica ou sem distribuição, alguns com as majors outros na mão das independentes – e mesmo que tenha havido o estouro esse ano da Lumière com o Cidade de Deus, a Lumière já é uma independente muito bem estruturada. Em suma: vai existir dinheiro para a distribuição ou se espera que a sociedade civil se organize?

Orlando Senna: O governo espera muito da sociedade civil. Mas tem que insuflar e implementar algumas providências para que a sociedade civil possa atuar de forma mais eficaz.

Daniel: Pois quando a Embrafilme foi fechada, ela estava se voltando mais para o lado da distribuição...

Orlando Senna: Claro, a grande coisa da Embrafilme foi a distribuidora, organizada e dirigida pelo Gustavo Dahl. Claro que essa é a questão maior do cinema brasileiro (ou argentino, ou não-americano)...

Ruy: Ou não-europeu...

Orlando Senna: Ou não-coreano... a França conseguiu agora 50%, a Coréia também. Mas ninguém é a França ou a Coréia. E a Coréia consegue porque ameaça jogar bomba...e quem é maluco pode tudo (risos...)

Daniel: O Irã conseguiu porque proibiu o cinema americano... O Governo Lula considera isso?... (risos...)

Orlando Senna: Não...o governo acha importante a diversidade cultural. O governo considera essencial o direito de se ver filmes brasileiros e estrangeiros...Mas não é diversidade cultural você assistir a 90% de filmes de uma fonte só. Como dar jeito nisso? Vamos andar, vamos andar...

Daniel – Vocês já têm uma noção de qual será a agenda a seguir, o cronograma, ou ainda estão descobrindo o terreno?

Orlando Senna – Você está dizendo pontualmente?

Daniel – Isso.

Orlando Senna – O presidente deve apresentar, não sei quando, acredito que ainda em março, uma lista de intervenções e ações para o primeiro ano de governo. Esperemos, pois ele está recolhendo ainda as propostas e necessidades de todos os ministérios, para organizar uma atividade imediata de todo o governo, nisso incluído o audiovisual. No mais, não posso adiantar coisas... que nem tenho o direito!... E além disso seria muito confuso passar já qualquer informação.

Daniel – E isso vai passar ainda pela Casa Civil?

Orlando Senna – Claro, tudo isso... E o presidente irá apresentar isso, será através de um discurso dele, então é uma coisa bem organizada.

Daniel – E com relação ao percentual que cada empresa pode investir em leis de incentivo, pensa-se em mudar algo, em aumentar o teto existente?

Orlando Senna – O Ministério da Fazenda não quer nem ouvir falar nisso!... Mas acredito que seja possível aumentar um pouco sim, mais à frente.

Daniel – Mas, mesmo com este limite, durante o governo FH a captação destes recursos sempre esteve abaixo do valor orçado anualmente, em todos os anos deixou-se de captar um bocado do teto fixado pelo governo para ser aplicado nas leis...

Orlando Senna – É verdade. É preciso definir também o que se fará com as sobras dos recursos captados por projetos aprovados, dinheiro que foi utilizado por empresas através de incentivos fiscais e que, não tendo sido gasto pelos produtores, e deveria ser usado então para fomento, para a realização de atividades fomentadas. Isto eu não sei como andou, mas agora fica com a Ancine, a Ancine tem direito a isso, os restos do que não foi usado... isso acontece quando você pega o dinheiro e seis anos depois ainda não fez o filme. Aí, quando o sujeito perde o direito a uma nova captação, ao invés de deixar perder o recurso pega-se esse dinheiro e cria um fomento, concurso para curta, videoteca...

Daniel – Esses recursos sempre foram destinados para o Fundo Nacional de Cultura, que investe principalmente no patrimônio histórico arquitetônico...

Orlando Senna – Isso também está sendo estudado, porque isto está com a Ancine, e se isso continua assim, se essa vai ser a regra e vai haver sobras das leis de incentivos, então a Ancine irá repassar parte dessas verbas para a SAV justamente para que se faça o fomento direto.

Daniel – A Ancine então já tem um mecanismo de repasse à SAV?

Orlando Senna – Isso não deve ser difícil não, é só acertar todos os pontos e definir melhor essa divisão de atribuições de SAV e Ancine, que foi feita de forma muito apressada... Já estão colocando tudo isso no papel, para definir melhor o que tem que fazer, se é correção ou uma nova MP, aí são coisas legais de que não entendo... Mas entre Ancine e SAV as coisas não são muito difíceis não, nós estamos nos dando muito bem nestes acertos preliminares.


Texto publicado em março de 2003. Transcrição de Felipe Bragança.

10/04/2009

Meu Nome é... Tonho (1969)




A intencional rudeza do cinema de Candeias torna-se mais evidente em seus filmes de narrativa linear, como é o caso de Meu Nome É Tonho. Foi seu segundo longa, após A Margem, e deste difere totalmente, ao procurar uma proximidade com o gênero do faroeste.

O filme é um barato, e não há preocupação em delineações psicológicas dos personagens. O que há é aquele riso constante, incômodo, desconfortável, assustador, que parece se alastrar por todo o filme. A clássica história de um bando de malfeitores que aterroriza uma região é tropicalizada, tematizando o problema da grilagem, até hoje constante Brasil afora, basta ler as notícias do que ocorre na periferia da capital federal. Os bandidos do filme matam os habitantes da área e vão tomando posse legal de suas terras, enquanto abusam de suas mulheres.

O clima sexualizado e violento da história tem um ar irônico e tremendamente pessimista, algo constante em vários outros filmes do cara. A sexualidade é suja, tosca e bem-humorada (os bandidos comemoram a idéia de invadir um convento, por exemplo), a violência surpreende também por sua rudeza (há, em outro exemplo, uma velha espancada, de forma assustadoramente realista).

O herói solitário surge miticamente, como os bandidos surgiram, sem explicação. Ele aparece no início do filme escapando dos bandidos, e somente bem mais tarde aparecerá para destruir o bando, não sem antes se envolver num caso inesperadamente incestuoso. Por inovar na instauração do clima mítico, este é talvez a melhor ponte junto ao faroeste clássico. Por lidar com uma questão séria como a grilagem, sai-se também brilhantemente na ponte com nossa realidade, fazendo então um 'faroeste de terceiro mundo' sensacional. Fico imaginando o que Sergio Leone pensaria do filme. Certamente iria cair da cadeira.

A fotografia é do mestre Peter Overbeck, fotógrafo do Bandido da Luz Vermelha, que já tinha feito a luz do curta de Candeias que compunha a Trilogia do Terror, O Acordo. A música é de Paulinho Nogueira, incrível.

A sujeira intencional do filme se mostra logo nos créditos iniciais, que parecem não estar bem ajustados. Na verdade, é bem mais difícil fazer daquela forma, refletindo a luz nos letreiros. Mas a impressão é de mal-feito, e a intenção é essa.

E aqueles risos...


Texto publicado em fevereiro de 2001

Trilogia do terror (1968)

O Acordo é um filme interessantíssimo. Mas é difícil falar sobre ele sem mudar de assunto.

O filme tem, para abrilhantar seus créditos, a fotografia de Peter Overbeck e a montagem de Silvio Renoldi, e tem também uma trilha sonora incrível, importante inclusive narrativamente, pois alguns dos embates dramáticos se delineiam a partir do conflito entre diferentes estilos sonoros, para caracterizar as intenções dos personagens.

É um filme que tematiza um certo satanismo, onde uma mulher faz um acordo com uma figura diabólica (que se parece com um playboy transviado, e que tem como tema musical um rock modernoso, à época), em que ela, para proteger sua família, precisa oferecer uma virgem para o estranho diabo. O que mais fica evidente no filme é a preocupação ética e moral do cineasta, que, se já estava presente em A Margem e estará presente também em seus demais filmes, neste aqui é posto como tema central, em que religiosidade e fé são discutidas com propriedade e, no entanto, um imenso bom-humor, como fica explícito no final. A volta de Cristo à terra para se ver decepcionado com a humanidade é vista com uma certa amargura, mas também com grande ironia.

O que nos faz ir além ao discutir o filme e nos obrigar a não nos atermos a ele é sua característica de fazer parte de um filme em três episódios. Se o episódio de Candeias é sensacional, o seguinte, de Luís Sérgio Person, só pode ser analisado com superlativos. Trata-se da obra-prima Procissão dos mortos, em que o diretor, aproveitando-se do fato de estar acompanhado de Candeias e Mojica num filme pretensamente de terror, tematiza a luta armada, em pleno ano de 1968, colocando na tela grande o rosto de Guevara morto. Num povoado pobre, cria-se o medo de que a ilha das proximidades tenha sido tomada por guerrilheiros, o que amedronta os habitantes do lugar (afinal, é só um filme de terror...). O filme de Person é profundamente subversivo, como indica a canção que se ouve de um personagem do vilarejo ("Aonde vai o valente?/ eu vou pra linha de frente). Sua última imagem é de uma força inigualável, um desses momentos-marco da cinematografia.

Nesse contexto, perde o filme de Mojica, Pesadelo Macabro. O grande cineasta faz um filme dos seus, tematizando medos profundos, no caso o medo de ser enterrado vivo, com o humor e o exagero que lhe são próprios. No entanto, antecipado que foi por um filme profundamente trangressor na questão religiosa (Candeias) e um filme subversivo e guerrilheiro (Person), nota-se como é inofensivo o cinema de Mojica. Lidando com medos obscuros, assusta as meninas e faz a alegria dos cultores do cinema "camp", mas, mesmo que Mojica seja muito mais que isso e esteja a anos-luz dos seus recentes bajuladores, percebe-se que seus filmes podem assustar ou fazer rir, mas não marcam a ponto de transformar idéias (com a possível exceção de O Despertar da Besta).

Seu culto faz jus a um artesão de primeira, profundamente bárbaro e nosso. Mas também satisfaz a intenção daqueles que querem restringir a ação do cinema à hora e meia na sala escura, o que é sempre um perigo.

Mas deixemos, já fugi demais do filme de Candeias que motiva este artigo, e que por si só já valeria a visita a Trilogia do Terror, não tivesse essa obra tantos outros motivos para ser vista.


Texto publicado em fevereiro de 2001.

Algumas lembranças esparsas da sala escura

Não, decididamente não é fácil aceitar o desafio dessa pauta e escolher uma sessão única inicial para despertar nosso interesse e carinho pelo cinema, por como é feito e por como é visto.

Um dos problemas que encontro, nesse caso, é que os filmes que mais mexeram com minha cabeça nessa fase de início de adolescência em que a gente parece ficar disposto a decidir toda a nossa vida dali em diante foram vistos em vídeo (ou mesmo na programação da tevê!), em sessões que podem ter ficado definitivamente na memória, mas que não têm, com certeza, nenhum glamour. Só fui assistir em sala de cinema a Terra em Transe, Cidadão Kane, Chaplin, Deus e o Diabo..., os filmes mexicanos do Buñuel, Rastros de Ódio, Rio Zona Norte e todas essas coisas bem mais tarde, muitos anos depois de ter assistido na telinha. Di, por exemplo, eu assisti pela primeira vez, já com dezessete anos e na faculdade, numa sessão em vídeo às nove da manhã (sou notívago...), numa sala da UFF, com uma cópia já perdendo a cor. (E, no entanto, a sessão foi muito mais interessante que quando tive a oportunidade de ver numa cópia nova em película, até porque é um filme que exige ser ouvido com volume nas alturas, ao contrário do que aconteceu na exibição posterior).

Como, inegavelmente, o ritual de ir a uma sessão de cinema transforma a nossa própria visão do filme, vão aqui algumas lembranças de uns bons casos ocorridos que me foram definitivamente deflagadores.

(Isso fica especialmente divertido porque outro dia encontrei edições antigas da “Tabu”, o jornal que depois virou uma bela revista do pessoal do Estação, em sua pré-história).

Em São Paulo, recentemente (ano passado), vi em duas sessões tremendamente emocionantes Câmera, o curta de David Cronenberg. Foi uma paulada tão grande que me vi obrigado a escrever sobre o filme por aqui pela revista.

Numa oportunidade que tive de passar um período em outro país, coisa já não tão recente (em 1998), em determinado momento tive o tempo disponível e a necessidade de me enfurnar em salas de cinema diariamente. Tive, então, algumas alegrias imensas: Os Deuses Malditos, Édipo Rei, Trouble in Paradise, Sadgati, até desenhos de Jones, Freleng e Avery eu tive a sorte de ver. Mas teve um filme que re-estreou logo que cheguei e que foi preciso quase três meses para eu ter coragem de ir conferir, e que quando o fiz precisei passar antes por um longo ritual, foi Falstaff – Chimes at Midnight, do Welles. Bem, mesmo com toda essa pilha, posso dizer que é um dos casos em que o filme supera a expectativa, sem dúvida.

O Arte-UFF é um cinema bastante peculiar. Não cheira bem, a projeção não é boa, podendo perder o foco com facilidade – o que acontecerá com certeza em caso de filme em cinemascope – e, dependendo da época, o equipamento de som não sustenta a exibição, provocando eventuais e incômodas distorções. Dito isso, vale lembrar o charme que tiveram e têm algumas sessões no Arte-UFF. Como algumas das primeiras que assisti por lá, de alguns filmes que acabavam por se revelar muito maiores do que esperávamos no início da sessão. Como em O Rosto, numa inacreditavelmente boa Mostra Bergman (é claro que não tão boa como a mostra quase completa que o Grupo Estação fez anos depois). Ou como numa vez em que quase me atrasei para o filme, depois de ficar engarrafado por hora e meia no 996. Mal tinha ouvido falar do filme, isso ainda era 1993. O Padre e a Moça. Depois do cinema, lembro que encontrei com Guilherme Sarmiento, grande comparsa (na época ainda não tanto), e ficamos ali os dois, conversando sem saber o que dizer, chocados depois do filme.

(Durante uma boa época, cheguei a levar um travesseiro para tentar tornar mais confortáveis as cadeiras – que, por piores que sejam, são parte da mais importante sala de cinema do Rio de Janeiro: – onde está a Cinemateca do MAM??!!).

O Cinema 1, antes de ficar sob o controle do Grupo Estação, tinha um ar meio mítico de cinema detonado. E foi lá que fui ver, ainda com catorze anos, a O Império dos Sentidos, e ainda dá pra lembrar bem como eu estava bolado enquanto caminhava por Copacabana pra pegar o 583 de volta para casa. Na época os amigos de São Vicente estavam naquela onda de cultuar Betty Blue, que eu gostava e acho que gostaria de rever, e me lembro que, pra mim, ali eu tinha um novo parâmetro, muito mais pauleira, do que era uma história de amor louco.

Eu falei lá em cima que vi os filmes mexicanos de Buñuel em vídeo, mas isso é meia verdade. Uma das primeiras sessões que assisti na Sala 1 do Estação Botafogo, certamente a sala de cinema mais importante pra minha geração, foi a de O Anjo Exterminador – e, na saída, é claro que ouvi pela primeira vez a piada de que talvez a porta da sala não se abrisse (na hora, achei que a piada era original). Mais tarde, na mesma sala, ainda em 1989, a primeira Mostra Bergman que acompanhei – fiquei mal com Da Vida das Marionetes. Gritos e Sussurros fui ver pouco tempo depois, na sala da Cândido Mendes, em Ipanema (o mais cruel ar-condicionado do Rio). Mas só vários anos depois eu iria ver Harriet Anderson jovem e linda em Monica e o Desejo e Noites de Circo, e a visão da atriz décadas mais tarde ficou ainda mais pauleira.

Ainda no Estação 1, pouco tempo depois, acho que ainda em ’89 ou ’90, vi pela primeira vez os filmes com Oscarito e Grande Otelo, Carnaval Atlântida, O Homem do Sputnik.

Na verdade, se for lembrar de tudo de bom que a Sala 1 já passou, não dá pra parar mais.

Mas a sala 2 merece também menção, porque era lá que passavam filmes em 16mm, emprestados em sua maioria do Consulado da França e do Instituto Goethe. E tome-lhe mostras Wenders, Herzog, muito René Clair, algum Jean Renoir e, sobretudo, muito Godard (foi onde vi Acossado pela primeira vez) e Truffaut – na verdade, de Truffaut só Duas Inglesas e o Amor, mas só esse filme já valeria mil mostras, de tanto que me encantou.

A lembrança dos filmes em 16mm, na verdade, foi também porque ainda no colégio São Vicente fiz com uns companheiros um cineclube de razoável existência – sessões semanais por dois anos, alternando filmes em vídeos com outros em 16mm – sempre emprestados pelo Consulado da França, graças à senhora Laila Kopke e seus dois assistentes, Marcelo e Gustavo, grandes figuras.

Foi na sala Porão do São Vicente que, um dia, depois de vários em que fiquei atrás do projetor, me permiti assistir ao filme confortavelmente sentado cuidando da porta da sala, enquanto um colega tentava cuidar pela primeira vez da projeção. De repente, olhei para o lado e vi que ele se esquecera que o projetor (marca IEC), depois de um certo tempo, não conseguia mais recolher a película, defasando o som e deixando ela escorrer do primeiro rolo. Em suma, quando olhei havia quase meio rolo de 16mm se desenrolando ao meu lado. Depois dos segundos de susto, tratamos de re-enrolar a película e trocar de postos, e tive eu que assistir ao filme atrás do barulhento projetor – era um filme muito bom! O filme era o delicioso Esta Noite é Minha, do René Clair, e acho que parte da platéia nem notou o problema – não que fosse muita gente, não era.

Acho que talvez aquele que eu pudesse definir, ainda que simbolicamente, como o primeiro filme que passei a amar e defender, como cinéfilo, seria o Coração Selvagem, de David Lynch. Passou na primeira mostra do Estação, em 1989 (não lembro o nome que a mostra teve na época, desculpem), e eu vidrei no filme – gostaria de rever, não sei se iria gostar tanto. Já tinha gostado demais de Veludo Azul, mas Wild at Heart eu sentia a necessidade de defender – em oposição aos filmes de Greenaway, que já então eu implicava bastante. Ia sempre uma turma na saída do colégio para o bar Magia do Sabor, que fica na praça do bonde do Corcovado, ou para o boteco ao lado da farmácia e da sapataria, ali perto, e Greenaway tinha seus defensores ardorosos, tanto por Afogando em números, que eu detestara, quanto pelo seu filme seguinte, O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante. Eu preferia apostar em Lynch, ou o novo cineasta que surgia com Faça a Coisa Certa.

Ah, e ainda na primeira mostra tive uma baita surpresa. Na Sala 3 foram apresentados filmes de dois cineastas, uma conversa de cinema brasileiro que na época eu não dava a menor bola, um lance de Udigrudi, coisa e tal. Fui ver um que já tinha ouvido falar, Tabu, e, bem, não gostei. Mas aí estava lá noutro dia, já tinha visto alguma coisa, resolvi arriscar. Me surpreendi e morri de rir. A Mulher de Todos!

A rigor, algumas das mais marcantes sessões de cinema não foram bem de cinema: não tem coisa melhor que assistir a filmes mudos com acompanhamento de orquestra ao vivo! E foi assim que pude ver - no Municipal - Intolerância, numa sessão memorável. No ano seguinte houve, no estádio Caio Martins!, a exibição de Napoleão, com três telas e tudo mais. Mas o melhor ficou de novo para o Municipal: foi lá que passou, gloriosamente inteiro e com orquestra, Limite. É um filme que só se deveria assistir assim, com orquestra e tudo mais. Tive, alguns anos depois, a chance de ver outros filmes assim – O Ladrão de Bagdá, Entr’acte, mas agora isso não acontece mais. Soube que em São Paulo, recentemente, foi apresentado Greed e, esse ano, Metrópolis. Não pude estar lá, e morro de inveja de quem foi. Quem não viu ainda um filme com orquestra não tem noção de como é bom.

Mas tudo isso são lembranças, como já disse aqui, o filme que me fez encarar o cinema como caminho de vida foi mesmo Terra em Transe, assim como o ...Kane, que de fato chegou a se tornar uma obsessão, e hoje me parece ser um filme especial, porque menos obsessivamente autoral, na carreira de Welles, de quem normalmente prefiro os filmes tardios.

Na verdade, uma das mais remotas lembranças que tenho de uma sala de cinema foi com algo em torno de cinco, seis anos de idade. Meu pai teve a infeliz idéia de me levar para ver uma versão de Flash Gordon, que terminou por me apavorar. Em determinado momento o herói parece que vai ser devorado por um monstro, que na minha lembrança era um troço medonho (devia, isso sim, ser algo ridículo). Obriguei meu pai a abandonar a sessão e ir embora do cinema.


Texto publicado em maio de 2002, dentro de uma pauta em que os redatores relatavam casos de sessões que lhes tinham sido memoráveis.

As Massas e o Recheio

Uma dúvida pontua esse artigo. Tem-se hoje como fato consumado que um filme só se realiza em definitivo quando alcança o seu público. Será? A dúvida não é retórica, é sincera.

Que público seria esse? Mesmo que seja pouca gente já vale, com certeza. Mas e se o raio do filme ficar invisível por anos depois de sua estréia, como é o caso de Limite, e também de El Justicero, de Nelson Pereira? Ou se o filme nem sequer estrear, como é o caso de Orgia, ou o homem que deu cria, de João Silvério Trevisan, ou Candinho, de Ozualdo Candeias?

Desde que a equipe da Contracampo começou a fazer esta pesquisa, eu ouvi e li diversas vezes os comentários com relação às limitações desta, todas já muito bem lembradas em textos apresentados nesta edição, junto às respectivas listas ou em artigos à parte. Algumas coisas me incomodam desde o início, e uma delas é que esse tipo de listagem não faz jus a vários marcos históricos, como bem notam Bernardo Oliveira e Fernando Albagli nos comentários que escrevem às suas listas, ao lembrar de todos os filmes memoráveis pela forte relação que tiveram com o seu público na época, vendo sim sob a ótica das grandes bilheterias.

Diga o que quiser dizer dos Trapalhões quem disputou espaço com eles, seus filmes são definitivos na memória de infância da minha geração e de alguns mais velhos. E, no entanto, só tiveram um filme lembrado, Os Trapalhões nas Minas do Rei Salomão, lembrado por duas pessoas, eu uma delas, Márcia Derraik a outra. Posso defender meu voto dizendo que me senti obrigado a colocar um filme dos Trapalhões na minha lista, e fiquei na dúvida entre aquele e Os Saltimbancos Trapalhões e O Cientista Trapalhão, mas minha lista já estava grande demais para eu incluir três filmes. Ninguém mais lembrou dos Trapalhões, decerto porque boa parte dos seus filmes não é brilhante, porque a trajetória dos palhaços se confunde com o grupo televisivo que a gente sabe qual é e, finalmente, porque ninguém leva a sério comédias e filmes infantis e/ou populares.

Isso aconteceu com Oscarito, que hoje já está reabilitado e mitificado, e com Mazzaropi, que possivelmente foi um dos homens que mais venderam ingressos no Brasil (disputa o título com Os Trapalhões, claro), e no entanto não tem sequer um filme citado nessa pesquisa. Da mesma forma, O Ébrio foi citado uma única vez, e Dona Flor e seus dois maridos só foi lembrado por quatro pessoas. Central do Brasil foi o filme da década de 90 mais lembrado entre os pesquisados, citado por onze pessoas, mas Carlota Joaquina teve apenas uma citação. E, no entanto, se somarmos o público desses filmes que citei até aqui nesse texto, é muito mais gente que o público somado de todos os filmes da nossa listinha.

O que eu quero dizer não é que eu acho que estes filmes são melhores que os filmes que os pesquisados e a Galera da Contra citaram, até porque minha opinião também está lá. Mas o que eu quero lembrar é justamente que uma cinematografia depende não apenas da disposição criativa de alguns sujeitos, mas também de um acesso imediato ao seu público. É o que possibilita a proliferação de filmes, e que se dane se o viés é comercial, erótico ou infantil, porque é dessa forma que se abre os caminhos. Foi através da indústria dos filmes eróticos que surgiram coisas sensacionais nos anos setenta, e não são raros os casos de grandes diretores que fizeram alguns filmes para acertar a conta bancária. Joaquim Pedro contou uma vez que fez Macunaíma para acertar as dívidas contraídas com O Padre e a Moça. Conseguiu dois milhões de espectadores e fez uma beleza de filme. Mas nem sempre as coisas se casam, e isso não é motivo de vergonha. Nelson Pereira pode preferir Vidas Secas ou muitos outros filmes seus a Na Estrada da Vida, mas se orgulha em lembrar que o filme teve excelente público, quase dois milhões. O mesmo caso de Carlos Reichenbach e seu A Ilha dos prazeres proibidos, que, graças à exibição em países da América Latina, chegou à bela marca de quatro milhões de espectadores. Sem Na Estrada da Vida seria mais difícil fazer Memórias do Cárcere, e A Ilha dos Prazeres Proibidos, além de ter uma trama que misturava exilados e Wilhelm Reich, possibilitou depois O Império do desejo. Não são obras-primas, talvez (Macunaíma é, acho), mas aí é que está, uma cinematografia não é feita só de obras-primas.

E é preciso que as pessoas conheçam nossa cinematografia, desde as escolas de segundo grau, isso não é difícil de fazer. Machado de Assis pode parecer tão chato quanto José de Alencar para alguns, mas é tendo acesso a eles e aprendendo a respeitar a histórias deles que as pessoas vão descobrir suas qualidades. Senão, vira uma cultura de gueto, como a gente sempre teme que aconteça conosco. É preciso que conheçam Limite e Ganga Bruta, mesmo que achem chato, e é preciso que conheçam Oscarito e Glauber, mesmo que já pareçam ultrapassados para alguns. Nossos filmes, marcos históricos, bilheterias gigantescas ou obras-primas tardiamente reconhecidas, todos eles não estão disponíveis à população, estão restritos ao mercado de “cultores do cinema brasileiro”. Assim como não há gravações de João Pernambuco no Napster, Vidas Secas não está disponível em DVD, nunca passa em rede nacional de Tv aberta e nem tampouco pode ser encontrado nas locadoras do interior do país. Nas capitais, com alguma sorte, sim. Mas não São Paulo S.A., que também ainda não foi lançado em DVD.

É para defender esses filmes que serve essa pesquisa. Dos dez filmes mais lembrados, seis foram citados nas três pesquisas citadas pelo portal da Cinemateca Brasileira. São eles Deus e o diabo na terra do sol, Limite, Vidas Secas, Terra em Transe, Macunaíma e O Bandido da Luz Vermelha. Em quatro pesquisas feitas ao longo de vinte anos (todas com métodos diversos, registre-se), apareceram em todas as listagens. São filmes que são lembrados no esquema “piloto automático” por quem faz cinema no Brasil. São nossas obras consagradas, e precisam fazer parte do conhecimento geral que se adquire nas escolas. Isso não é tão difícil, nem tão caro. Precisam, acima de tudo, ser respeitados como símbolos do que se fez de melhor por aqui.

Peço desculpas aos leitores se a linha de raciocínio parece excessivamente icônica. Pode ser, até diria que é sim. Mas, se reconheço isso e mesmo assim mantenho, devo ter meus motivos. E tenho. Já há algum tempo, ouvi um depoimento de Nelson Pereira dos Santos, logo depois dele ter visto a cópia nova de Vidas Secas, feita pela Riofilme. E ele contou que a cópia estalando de nova estava muito ruim, e isso porque o novo master feito dos negativos originais, que deu origem à cópia, já tinha ficado ruim. Na verdade, o problema era que o negativo original estava perdendo a definição, estava perdendo o cinza, e as cópias novas acabavam saindo contrastadas demais.

Vidas Secas tem seus negativos e diversas cópias sendo preservados pela Cinemateca Brasileira, e também pela instituição francesa equivalente, assim como boa parte dos muitos filmes citados na nossa pesquisa. Mas para muitos já não basta preservar, é preciso restaurar os negativos originais, o que demanda um belo aporte financeiro, e decerto alguma espécie de estímulo governamental. Sem um programa cultural digno deste nome, a restauração de filmes brasileiros vai depender sempre das mães e filhas dos cineastas que já se foram.

Talvez em pior estado que Vidas Secas esteja o segundo filme de Sganzerla, tão lembrado pela equipe da Contracampo, A Mulher de Todos. Seu negativo está na Cinemateca Brasileira, e as notícias que temos de lá é que ele ameaça avinagrar.

Não é por acaso que quase não há filmes da primeira metade do século. Houve períodos em que muito se produziu por aqui, mas quase nada restou. Não restou nem mesmo Barro Humano, o mítico primeiro filme de Adhemar Gonzaga. Incêndios e má preservação são as justificativas para estes tristes fatos.

E como será uma lista feita daqui a cinqüenta anos? Será que todos terão tido a chance de ver Deus e o diabo na terra do sol? Este sim, mas e O Bandido da Luz Vermelha? E A Mulher de Todos? Será que vai ser possível comprar pela Internet em DVD?

E, se não der, qual será a nossa desculpa? Precisávamos de vassouras?


Texto publicado em abril de 2001, dentro de uma edição da Contracampo para a qual foi feita uma enquete em que diversos profissionais faziam suas listas de dez melhores filmes brasileiros.

08/04/2009

Edward Mãos-de-tesoura (1990)



Mesmo para os que já tinham notado a veia criativa presente em Os fantasmas se divertem, foi uma tremenda surpresa a chegada desse Edward Scissorhands no circuito, na virada da década de oitenta para os anos noventa. Burton e sua equipe conseguiram trazer ao filme o tom fabulesco que seria buscado em quase todos os seus filmes dali adiante, um tom que pede personagens bem definidos, talvez até caricatos – principalmente no caso dos vilões – encarando tensões e conflitos análogos ao nosso cotidiano.

E eu diria então que, escondido em sua dramaturgia infanto-juvenil, Edward Scissorhands ainda me parece a melhor e mais bem-resolvida fábula (ou, para ser mais exato, conto-de-fada) de Burton, ao menos até o momento, onze anos depois de ter sido feito o filme. Justamente por assumir este olhar fabulesco e infanto-juvenil, me parece que o intento da narrativa cabe nela mesma, uma vez que funciona à perfeição a história do rapaz que trava seu primeiro contato com o mundo e se vê incapaz de tocar nas coisas com o cuidado necessário para não as destruir. O jovem Edward é um caso exemplar de adolescente que não consegue adaptar suas esquisitices aos preconceitos e medos do chamado “mundo normal”. Com seu olhar “de criança” diante desse “mundo normal”, Edward Mãos-de-tesoura certamente é um dos filmes que criticam o cotidiano dos subúrbios americanos, com vários de seus personagens-protótipos, de forma mais mordaz e inteligente – e olha que a concorrência é grande...

Achei interessante notar que, no final, Edward termine por se esconder novamente em seu castelo, desistindo de encarar e conviver com seus semelhantes-mas-não-muito, atitude que até poderia ser confundida com um desejo secreto de um imaginável cineasta-autor, uma vez que esta opção em tudo difere do caminho escolhido e percorrido por Tim Burton, o diretor que encara os orçamentos e desmandos dos grandes estúdios em nome da feitura de filmes com um estilo pessoal, único. Interessante, de fato, ainda mais se contraposto ao final do seu Cavaleiro sem Cabeça, onde a etapa de crescimento termina com a superação das dificuldades, esclarecimento das mistificações e reconhecimento de que a vida tem seus mistérios definitivos, uma saída sem sombra de dúvida mais madura, uma vez que transcende o conflito entre os desejos pessoais e as expectativas sociais. Vendo assim, hoje temos então um cineasta mais consciente dos conflitos que deve encarar e da sua responsabilidade diante deles.

Mas isso é mera interpretação da vida que não aparece nas telas. Na tela, Edward é um filme de contos-de-fadas com uma moral em defesa do respeito às diferenças, brilhantemente narrado, musicado e interpretado. Os elogios aqui às interpretações de Johnny Depp, perfeito, Wynona Rider, Dianne Wiest ou Alan Arkin, delicioso com seu jeito preguiçoso, seriam mais do que justos, mas ainda assim banais. No entanto, não há como classificar a curta e bela homenagem ao grande Vincent Price (que Burton já havia reverenciado na animação Vincent, anos antes) senão com os maiores elogios. Se já não tivesse todos os motivos que citei aqui para rever esse filme e mais muitos outros, preciso notar que somente esta homenagem já me traria prazer mais do que suficiente para justificar essa revisão.


Texto publicado em agosto de 2001.

Alguém aprende samba no colégio?

Das muitas questões que se pode colocar sobre o ensino universitário de cinema, certamente a que precisamos ter em mente todo o tempo é acerca das suas intenções: o que se espera, afinal, de uma escola de cinema? Não há uma única resposta, e é em torno dessa opção (quando há chance de escolha...) que cada escola vai encontrar seu caminho e suas características.

E quais seriam as respostas à questão? Uma possível seria esperar fazer muitos filmes ao longo do curso. Outra, ter a possibilidade de entrar em contato com equipamentos tecnológicos de ponta, ou então aprender a fazer as tarefas tradicionais técnicas ou de assistência, para estar preparado para o mercado de trabalho. E também se pode querer de uma escola que dê aos seus alunos uma ampla formação humanista, ou então uma formação aprofundada em determinados aspectos da teoria cinematográfica. Além disso, colocar em contato gente com intenções e projetos semelhantes e complementares é um papel nada desprezível de uma escola que faça jus a esse nome.

Certo. Então é bom que se diga que não há notícia de qualquer escola que possa vir a cumprir todos estes papéis, pelo menos não em língua portuguesa. Portanto, é preciso considerar qual deles terá prioridade sobre os demais.

Costuma-se dividir esses caminhos principais em duas vertentes básicas, a “técnica” e a “teórica”. Assim, pode-se considerar que, embora tenham intenções diferentes, pessoas interessadas em fazer muitos filmes ou em aprender as tarefas básicas ou em conhecer novos equipamentos estarão todas buscando escolas com um perfil “técnico”, enquanto pessoas que priorizam encontrar um ambiente de debates e estudos preferirão escolas “teóricas”, seja se preferirem estudos mais plurais ou mais centrados.
Visto assim, é preciso notar que não há escolas essencialmente teóricas no Brasil, nem tampouco existem de fato práticas, o que há, na verdade, é uma grande confusão. As escolas universitárias federais, UFF e USP, têm como orientação antiga e justificável que seus alunos devam ser preparados como profissionais mas também como cidadãos, para assim poderem retornar à sociedade o investimento em seus estudos.
São, no entanto, escolas inconstantes. Que, em determinados anos, podem oferecer ensino técnico bastante razoável, por conta de raras verbas ou de convênios ocasionais, para em pouco tempo voltarem à situação em que o aprendizado técnico é severamente limitado pela falta de grana. Da mesma forma, seus salários espremidos dificultam a contratação de profissionais adequados em ambas as áreas, o que atrapalha especialmente o estudo teórico, e esse problema só pode ser resolvido a partir da disposição de uns poucos, que se dispõem a ganhar pouco em troca de um trabalho fixo, de um ponto no currículo ou mesmo apenas do prazer de dar aulas.

A impossibilidade de escolher entre o caminho técnico ou o teórico dificulta a resolução desses empecilhos, a partir do momento em que, tudo sendo prioridade, não há prioridade em qualquer aspecto. Essa inconstância da escola, agravada ainda por problemas eventuais na escolha do corpo docente ou na administração dos cursos, faz com que a disposição do aluno para decidir como será seu próprio curso seja necessária muito além do ideal, encontrando finalmente o problema da defasagem e sucateamento de material técnico.

Nas escolas particulares, também poucas, temos uma única opção comum a todas, que se propõem a tornar o aluno “capacitado para o mercado”. Uma vez que o tempo total de estudos precisa ser curto, já que este será pago, prioriza-se então a questão técnica e o aprendizado do manejo de equipamentos, o que novamente será complicado devido à limitação de verbas para produzir. Mas, se certamente o ensino privado tem depondo contra si seu aspecto elitista, é importante reconhecer que as escolas pagas serão muito mais constantes e coerentes que as universidades públicas, pela sua maior agilidade em lidar com problemas e definir prioridades, enfim, pela sua própria natureza.

O que se poderia aprender com modelos de outros países?

Imagino que se possa aprender bastante, pessoalmente pude eu mesmo descobrir algumas coisas. Primeiro, que mesmo em países ricos as escolas estatais definem suas prioridades. Na França há o exemplo das escolas FEMIS (http://www.femis.fr/), mantida pelo Ministério da Cultura, e Louis Lumière (http://www.ens-louis-lumiere.fr/), mantida pelo Ministério da Educação. A primeira tenta abarcar todas as possibilidades listadas lá em cima, porém produzindo relativamente pouco e consumindo muito tempo de estudo, enquanto a segunda é curta, também não produz muito, mas produz com todas as condições técnicas e se volta exclusivamente para a formação técnica específica de técnicos em imagem e som, contratando inclusive pessoas para produzir os filmes dos estudantes. Na FEMIS, que durante muitos anos foi conhecida como IDHEC, onde estudaram vários cineastas de todos os cantos, o estudante fica cinco anos, três dedicados à teoria e história de cinema e cultura geral e dois para trabalhar em filmes com sua turma e se dedicar ao aspecto técnico de sua escolha. Na Louis Lumière, o aluno só entra depois de três anos em outra escola superior (o equivalente aos três anos iniciais da primeira), e desde o início se dedicará somente a aprender tudo sobre uma área específica, seja imagem ou som, e o aluno de uma área não aprende nada sobre a outra. Uma escola busca formar intelectuais capacitados, a outra busca formar técnicos, e ambas são oferecidas pelo Estado. Em que se pese a diferença de verbas e estrutura, vale a lição de que estabelecer as diretrizes de cada escola e torná-las claramente diferentes umas das outras permite ao aluno estruturar melhor seu aprendizado.

Por outro lado, as escolas pagas precisam igualmente escolher suas prioridades. Se a intenção for de fazer seus alunos se revezarem em todas as funções no maior número de filmes e no mais curto espaço de tempo possíveis, vale a pena conhecer o modelo da escola inglesa London International (http://www.lifs.org.uk/), que em dois anos faz seus alunos produzirem um mínimo de seis filmes, cada um produzido de forma diferente. No entanto, se a intenção for preparar os alunos para funções específicas do mercado de trabalho (enfrentando a concorrência dos cursos técnicos típicos), a curiosidade valeria para a comparação entre as duas escolas de Nova Iorque, a da Universidade Columbia (http://www.columbia.edu/) e a da NYU (http://www.nyu.edu/), onde uma se dedica mais a formar técnicos e a outra a formar produtores.

Isso parece distante, no nosso pobre e desorganizado mundo. Mas não é tanto assim. Pode-se comparar então com as faculdades argentinas, onde a Universidade do Cinema (http://www.ucine.edu.ar/faccinema.htm), particular mas com apoio do estado, se guia pelo viés da produção, e na década de noventa, entre vários curtas e um festival de cinema, produziu três longa-metragens, sempre coisa rara no meio universitário, enquanto a ENERC (http://www.incaa.gov.ar/universidades/enerc/index.asp) focaliza especialmente o lado histórico/teórico.

Nosso falso desenvolvimentismo engana a realidade, e com isso a UFF se propõe a ser ao mesmo tempo uma escola de Comunicação, uma escola de teoria e história do cinema e uma escola de capacitação de profissionais. Quem conhece o cotidiano dela sabe que todos os lados saem prejudicados na história. A ECA/USP, durante um bom período, foi um oásis devido à sua boa organização e ao orçamento muito mais regular que no caso niteroiense. No entanto, nos últimos anos o curso arriscou-se numa empreitada que o juntou com o curso de Rádio e Tv, criando um novo curso com o amplo nome de Audiovisual. Se funcionará, só o tempo dirá.

No entanto, mais uma vez isso sinaliza uma disposição de fazer um curso em tese abrangente, mas cujo principal sintoma é essa falta de coerência em estabelecer prioridades, como continua a acontecer em Niterói, onde a disposição tecnicista e produtivista de sua direção se contrapõe à dedicação de alguns professores da área histórico/teórica.

O resultado? Bem, a um sujeito que pretende se dedicar a um curso de cinema a primeira coisa que eu aconselharia é que estabeleça suas prioridades. Isso feito, considere a necessidade de compensar por conta própria as eventuais omissões de seu curso. E, certamente o mais importante, trate de encontrar seus pares, seus díspares e suas figuras ímpares. O mais importante de uma escola de cinema, e nisso todas são comuns, é juntar num mesmo espaço pessoas com idéias, propostas e educações diversas, mas com a mesma intenção de fazer cinema. Daí surgem as discussões, idéias, projetos e produções que por si só justificam plenamente a existência de tais academias.

Texto publicado em julho de 2001.

O Homem-sanduíche (1983)

A história se passa em 1962, uma história de subúrbio, singela, um jovem que, para poder ter seu primeiro filho com sua mulher, aceita sub-empregos para se sustentar. Simples, né?

Simples nada. A coisa é dureza.

Na verdade, o título do filme, traduzido, seria O Bonecão do filho, e é um episódio de curta-metragem num longa composto por mais outros três filmes, este sim intitulado O Homem-sanduíche.

E é justamente o protagonista do filme de Hsiao-Hsien que trabalha como homem-sanduíche, um sujeito vestido de palhaço que carrega placas como um outdoor ambulante, e que ao fim se descobre e se aceita como um bonecão para seu filho.
Taiwan, subúrbios, 1962, o país não tinha nem quinze anos, Chang Kai-Check no poder, até tem uma grana chegando dos americanos e dos japoneses, mas a vida não devia estar nada fácil não, ainda mais para um casal de jovens nem sequer alfabetizados.

Não é mole não. O sujeito, chamado Kun-Chu, casa, quer garantir a família, não consegue emprego decente, convence um outro a contratá-lo para ficar trabalhando de homem-sanduíche e fica todo contente ao poder contar para a mulher, chamada Ah-Chu, que já podem ter um filho, vai se chamar Ah-Lung... Mas pensa que é fácil? Fácil nada, trabalhar o dia inteiro, vestido como um palhaço, saindo antes do filho acordar, chegando depois dele dormir, e você só vê ele na rua, durante o dia, fantasiado de palhaço, teu filho só te vê fantasiado de palhaço. E tem que topar ficar sendo espezinhado pela garotada, tendo até que ouvir da própria família que aquela situação envergonha a todos, essa mesma família que não dá apoio nenhum... Aí você chega em casa depois de ouvir uma bronca desmoralizante do patrão, e aí a comida não está pronta na hora de sair, e aí pronto, você não se segura, trata a mulher mal. Justo ela, que cuida da criança e ainda lava roupa o dia inteiro para dar uma força no orçamento... Brabeira, cara, tremendo perrengue.

Mas tem que segurar a onda. Até porque com esforço e um pouco de sorte as coisas melhoram. E o sorriso da criança vale isso tudo. Quem sabe uma hora não aparece uma chance de melhorar de trabalho, até ganhar um pouco mais? E aí nem vai mais precisar se vestir de palhaço...

E se depois o garoto não te reconhecer mais sem a fantasia?

Simples? É simples no jeito de abordar a história, mas incrivelmente sofisticado, seja nos cuidados com os detalhes mostrados, seja nos flash-backs, seja na força do trabalho de toda equipe, atores, da música e da narrativa.

E tem algo de profundamente ligado à vida, às vísceras do mundo, e isso a gente sabe que não se explica.

Texto publicado em agosto de 2001





Cemitério de Elefantes (2001)

Por ocasião do debate realizado no Teatro da UFF, após a sessão do Festival Universitário em que foi apresentado Cemitério de Elefantes, tive a oportunidade de fazer uma pergunta ao realizador do filme, Rodrigo Lorenzetti. Eu tinha uma dúvida na mente, e tentei descobrir se algo havia me escapado ao longo da sessão. Minha pergunta foi simples : Por quê fazer este filme?

Não que tenha me parecido que o filme tenha algo de errado, de anti-ético, como chegaram a cogitar alguns. Talvez até tenha, uma vez que procura seduzir sua platéia mostrando a degradação alheia. Mas isso pode ter um propósito, e tendo um propósito é plenamente justificável. Afinal, sendo a realidade desagradável, não há razão em mascará-la.

Só que a resposta não fugiu do que ele já falava diante de outras perguntas, e não me satisfez muito. O diretor argumentava que sua motivação é que queria fazer o filme para misturar ficção e documentário, para ver os limites entre um e outro.
Eu continuei com a impressão de que ele não sabia o que o levou a fazer esse filme. E fiquei pensando nessa disposição de partir para um projeto sem saber o que se espera dele. E daí fazer filmes que não sabem bem o que pretendem.

Sim, porque há uma curiosidade de Lorenzetti pelo mundo que ele investiga, mas ele mesmo parece não saber o que quer investigar neste mundo. “Entendê-lo”? Ora, isso ele e todos nós sabemos que não dá pé. Mas o problema é que o filme é um documentário que não sabe o que quer descobrir. O diretor que partiu para fazer um documentário não acreditava em documentários, ao menos não da forma tradicional, como ele mesmo notou. Então, ao invés de se colocar em seu filme, como fazem, por exemplo, os seguidores de Eduardo Coutinho, preferiu colocar um ator para fazê-lo, mascarando sua intenção documental com uma falsa ficção.

Porque, na verdade, não há ficção no filme. Há um ponto de partida ficcional, mas o próprio diretor reconheceu seu fascínio em documentar reações de seu “ator” inesperadas e perdidas entre realidade e atuação. O filme é, portanto, essencialmente um documentário, e só isso já é bastante, mas não parece ser o bastante para quem o concebe.

Talvez porque, se não há ficção, do mesmo modo o documentário não parece ter razão de ser. Afinal, sobre o que ele trata? Sobre os bêbados de rua? Mas o que aprendemos com eles, em que eles nos fazem pensar, refletir? Parece que o tema mais palpitante nos debates sobre o filme era a baba elástica que pendia do lábio de um dos bêbados, que Lorenzetti se orgulhava em ter mantido na película, porque, afinal, “o mundo é assim”.

Certo, é assim mesmo. E aí? Troca-se a supremacia do belo pela supremacia do feio, e então?

Não há intenção em documentar aquela situação, porque a única maneira de apreender aquele mundo, ao menos na visão do filme, é conviver diretamente com ele, associando-se tal como um ator tenta incorporar um personagem. Mas a atitude de colocar um ator para fazer seu papel denuncia essa atitude medrosa que significa mais que uma simples recusa a estruturas tradicionais de documentário.

E esse medo se justifica plenamente, é um medo lindo, de tão humano.

Porque o filme não é sobre bêbados ou sobre um ator, é sobre Rodrigo Lorenzetti. E isso ele não quis ver.

Porque fazer um filme sobre bêbados perdendo a linha não ensina nada sobre esses bêbados, mas diz muito sobre as opções de um certo setor de produção artística brasileiro, especialmente paulista. Opções que resultam numa ambição mista de chocar a burguesia e de encontrar as flores no pântano, uma herança clara dos artistas modernistas somada à dos artistas marginais. Com sua baba elástica que tanto orgulho deu ao diretor, Cemitério de Elefantes certamente se saiu bem na atitude de chocar os burgueses, e por esse motivo está de parabéns, No entanto, não soube superar esse papel histórico já um tanto quanto antigo, digamos assim.

Porque é muito bacana que o realizador tenha curiosidade sobre o mundo q o cerca, e q tenha despertado essa curiosidade justamente por quem está no limite da lucidez e da sociedade.

Mas faltou perceber que ir até eles não significa compreendê-los de fato, e que seu filme não nos diz nada sobre eles, mas sim sobre ele, realizador, e sobre sua relação com o meio que o criou.

Se a intenção do filme era expulsar da sessão as tias de seus colegas, que foram assistir aos filmes de seus sobrinhos nas sessões do Festival de Curtas de São Paulo, o filme certamente foi bem-sucedido, e merece parabéns por ter irritado uns e divertido outros com esse tipo de reação.

No entanto, não me parece que se possa esperar ou depreender mais da obra que se vê. É um filme ao mesmo tempo corajoso em ir ao encontro de um outro mundo, e medroso demais para se colocar nele de fato. E, com essa atitude, acaba por não descobrir nada.


Texto publicado em junho de 2001.

As Feras (2001)


Para falar de "As feras", antes de mais nada, eu precisaria fazer uma pequena crônica de como foi complicado ver este filme. Depois de ficar guardado nas prateleiras por cinco anos, por conta das confusões do nosso mercado exibidor e, principalmente, por conta das confusões causadas pelos próprios produtores, o filme estreou numa única sala no Rio de Janeiro e ficou em cartaz ao longo de uma semana. E para ver o filme tinha que ir para um shopping center que fica na ponta da Barra da Tijuca, longe pra chuchu de onde moro, que é na zona sul, quase centro, demora algo em torno de uma hora de viagem, de carro, de ônibus seriam quase duas horas. Pois bem, convenci um casal amigo e fomos lá. Chegamos uns três minutos atrasados, e, bem, o cinema ia reapresentar o filme em seguida, mas as gentis normas do cinema UCI não permitem que o espectador veja os minutos que perdeu, enfim, não vi a abertura do filme.

De todo jeito, acabou que teve várias coisas que me chamaram a atenção, os problemas no filme são muitos, e ao mesmo tempo a discussão é pesada, triste pra caramba... Eu encontrei com meu colega e editor Ruy depois, sei que ele costuma não gostar dos filmes do Khouri, encontrei com o Gabriel, com todo mundo eu comentei uma coisa, que o Khouri passou décadas filmando belas mulheres em filmes carregados de uma amargura tremenda, as mulheres eram exibidas como se quem as mostrasse estivesse pensando algo como "isso não basta, isso não basta...", e agora o discurso muda pra "nem isso temos mais, nem isso mais...",, quer dizer, crepúsculo do macho é aquilo ali. E é incrivelmente corajoso um senhor da idade do Khouri fazer um filme desses, com um protagonista coroa vidrado por mulheres encarando o fato de que elas não precisam dele. O discurso de alguém que se sente dispensável.

Fiquei achando que o filme é ao mesmo tempo misógino e deslumbrado pelas mulheres, uma espécie de "O homem que amava as mulheres" com tendência maníaco-depressiva, isso me parece muito claro nas duas figuras masculinas, o Nuno Leal Maia sendo o típico protagonista do Khouri (dessa vez se chama Paulo) e o Luís Maçãs fazendo um ator que se confunde com seu papel na peça que está sendo ensaiada ao longo do filme, ele faz Jack, o estripador, na peça "Lulu", que conta a velha história da "A caixa de Pandora".

O problema mais evidente do filme me pareceu ser a atuação da Cláudia Liz, quando ela falava. Os diálogos são bons, e o Khouri parece ter confiado demais naquela velha fama de bom diretor de atrizes, mas aí pretendeu demais, infelizmente o anti-naturalismo de Cláudia não convence, embora ela impressione com seus olhares e sua sensualidade. Ainda há alguns problemas que podem incomodar um espectador mais rigoroso e impaciente, como certos detalhes na fotografia ou alguns exageros dramáticos, comuns em tramas fabulescas mas incômodo para os acostumados unicamente com a narrativa naturalista tradicional.

No entanto, o filme supera os problemas com seu vigor dramático. É comum em textos críticos lembrar que nos filmes do Khouri ele se retrata no protagonista, mas isso é muito limitado, pois afinal em vários de seus filmes, mais claramente em "As Amorosas", embora o protagonista tenha estreita ligação com o universo pessoal do autor, a gente pode perceber um julgamento ético nada favorável ao personagem. Nesse, quem é julgado é o espelho do Nuno, o Jack, mas o protagonista é tremendamente amedrontado, um marmanjo decadente traumatizado.

Mas me parece também, retomando a interpretação do filme como um discurso de alguém que se sente dispensável, que o Khouri mais uma vez cria um jogo de espelhos, em que ele tematiza a própria tentativa de estabelecer um contato com o público de um jeito que a este parece apelativo e desagradável. O desencanto de se sentir não mais necessário é um medo de não ser mais reprodutor, mas também de não ser mais produtor. O público de cinema se sente mal com a gratuidade do nu, com o apelo óbvio da beleza que o diretor usa para motivar a discussão. O homem artista tem a coragem de se confessar com medo de não ser necessário, pior, não ser querido, pior ainda, ser visto como desagradável. Khouri parece descobrir desconfortavelmente que o público de cinema mudou muito nos últimos trinta anos e, assim como as suas personagens mulheres, não é possível ter certezas sobre o que o público quer, o que ele deseja. A platéia parece ser tão instável e temperamental quanto suas personagens. A reação do autor é incômoda e discutível, mas demonstra uma sinceridade emocional incrivelmente corajosa.

Texto publicado em setembro de 2001.

Hannibal (2001)

Dino de Laurentiis, Ridley Scott, David Mamet, Anthony Hopkins, Julianne Moore, Ray Liotta. Tanta gente boa, quantos filmes bons a gente não associa a esses nomes? Pois é, mas dinheiro é importante pra todo mundo. Será que é tão importante assim?
"Hannibal" é até um filme que mexe com a gente, deixa nervoso, bravos à eficiência da indústria.

Pena que é uma merda. E de péssimo caráter.

A produção é nota dez, Hopkins está realmente se divertindo naquele papel, e quem sabe dessa vez o de Laurentiis não consegue esquecer que não quis o roteiro do "silêncio dos inocentes"?

Mas não há ética, mister Mamet! Isso é apelação, é jogar com as formas mais baixas de seduzir o espectador. Que já acha estranho que a protagonista do filme tenha mudado de cara, enquanto o canibal continua o mesmo.

Mas pra quê o rosto mutilado do Gary Oldman? É pra fazer a piada de não botar o nome dele nos letreiros? Puxa vida, engraçadíssimo, hein? E porque o canibal não jantou ele? porque assim não tem filme? Ora, que razão nobre... bem, mesmo assim ele continua careteiro.

Não há personagens no filme, nada fica claro sobre o policial italiano, nem sobre o policial americano, só que um quer grana e o outro quer ser sacana. pra que explicar mais, se ninguém quer entender, a gente só quer ver o Hannibal exercitar nosso sadismo?

Baixo nível, baixo nível. A verossimilhança já foi deixada de lado por motivos mais nobres e por gente mais ética. Não precisava abrir a cabeça do Liotta e cortar o cérebro dele pra gente notar que tá valendo tudo pra divertir a turma que gosta de rir vendo gente sofrendo na tela. Vale tudo pelo seu ingresso, espectador...
Se abrissem o cérebro do diretor e dos roteiristas, pelo menos a ciência estudava o efeito da cobiça nos neurônios de uns e outros.

Outro dia, numa outra sessão da revista, eu tava elogiando a cena final do "Procissão dos Mortos", episódio de Luís Sérgio Person, parte do filme “Trilogia do Terror”, eu comentava especificamente a coragem em expor uma criança numa situação daquelas. Nada mais oposto que o final de "Hannibal", igualmente utilizando uma criança, apenas para fazer a piada mais baixo nível de que eu tenho notícia. Bem, deve ter gente que acha engraçadíssimo ver uma criança querendo experimentar a carne descongelada do cérebro de um cara morto.

É Adam Smith: tem gente querendo ver, logo, teremos quem mostre.
Só não me peçam para gostar.

O mais lamentável é lembrar que o filme foi proibido para até dezesseis anos. É desagradável lembrar disso, até porque isso dá publicidade. Mas o filme de Carlos Gerbase, “Tolerância”, foi proibido pra dezoito anos só porque mostrou os peitos da Maitê Proença ou o bumbum da Maria Ribeiro. E “Hannibal”, que tem o Anthony Hopkins cortando o cérebro do Ray Liotta e fritando, e mais tarde mostra uma criança comendo isso, foi visto pelos nossos censores como algo menos grave, menos agressivo. Fascinante. Criança comendo cérebro humano é grave, só pode ver a partir dos dezesseis anos. Mas mostrar transas com a Maitê ou com a Maria Ribeiro é gravíssimo, aí só depois dos dezoito, né? Talvez nossos briosos censores sejam fãs do Hannibal. Ou então talvez tenham ficado revoltados com a má forma física do Roberto Bontempo, sei lá...

Texto publicado em fevereiro de 2001.

Banquete (2002)

Banquete não é um filme agradável. Sequer se pode dizer que seja bastante criativo – a situação se resume a dois mendigos que devoram os restos de um restaurante enquanto conversam da forma mais esnobe possível. Não é, portanto, um filme sedutor, sob qualquer aspecto – e, parecendo ter a intenção de ser um filme divertido, tem aí um problema sério para as suas ambições.

No entanto, há algo em Banquete que pode ficar embatucando as idéias por algum tempo. Há algo ali que traz um incômodo difícl de se livrar para os que preferem “esquecer os filmes ruins”, algo bastante difícil de digerir neste Banquete. Vamos dar nomes aos bois, porque o elemento que torna presente este incômodo tem nome e sobrenome: Norma Benguell.

Seu parceiro no filme é José Wilker. Há aqui o que os americanos chamam de miscasting, a escolha do ator errado. Wilker encarna bem o seu papel, porque mau ator não é, mas aqui o caso não é de ator encarnar, aqui a interpretação precisa de uma representação simbólica. No lugar de Wilker, apenas um ator seria apropriado: Guilherme Fontes.

Para os que vivem no planeta Marte cinefílico, cabe esclarecer que Norma Benguell e Guilherme Fontes têm em comum o fato de terem sido acusados – por uma certa parcela da imprensa – de malversação de verbas de origem pública na feitura dos seus filmes O Guarani e Chatô (além de terem dividido o set de A Cor Do Seu Destino na década de oitenta). Se esta malversação aconteceu de fato ou não, isto é assunto para os tribunais. O que interessa aqui (porque é o que o filme desperta) é o significado que adquiriu a figura de Norma nas telas.

Norma come os restos. Devora, e a câmera não se furta a buscar o close mais obsceno e desagradável do seu mastigar das sobras dos outros. Entre os grã-finos, Norma é uma mendiga que se locupleta. Sendo culpada ou inocente – e sem que isso represente justificativa para coisa alguma – ela é uma mendiga. Nós somos mendigos.

Sim, bela e batida metáfora, todos nós brasileiros somos mendigos no baile internacional dos grâ-finos. Mas é mais do que isso.

Marcelo Lafitte é presidente da associação carioca de curta-metragistas. Não há muito o que escolher nessa situação. É preciso mendigar por restos e é preciso tentar manter um discurso elegante e digno – no de apresentação do filme, misturaram-se vivas ao presidente eleito Lula e ao time do Fluminense (que logo foi desclassificado do campeonato nacional).

Norma é atriz, diretora e produtora de cinema. Fez seus filmes com o patrocínio do MinC. Com os restos de verbas do fechamento da Embra e dos impostos dos gringos (não custa lembrar que ela entregou os filmes que prometeu e cujos projetos foram aprovados).

Nossos filmes atuais são feitos dos restos dos impostos devidos, dos restos da produção e circulação de capitais.

Mendigos somos nós. Nós brasileiros, como imaginaria o clichê? Sim, mas o recado é pra quem vê (e faz) o cinema que está à margem (quase toda a produção nacional). Mendigos somos nós. Nossas possíveis malversações são mendigas, nosso discurso empolado não disfarça nossas humilhações. Mas os restos... bem, os restos estão aí, para serem devorados por quem souber se tornar amigo do garçom. E, mal ou bem, são restos caros.


Texto publicado em dezembro de 2002.

Coisa mais linda (2005)

É mais difícil do que parece definir com exatidão aquilo que se chama por Bossa Nova – se é um movimento cultural próprio de uma geração, se é apenas uma batida de violão e uma maneira diferente de tocar o samba, se define uma determinada postura estética ou mesmo se é tudo isso e um pouco mais (ou um pouco menos, segundo suas próprias regras). Ao considerarmos válidas as noções de que Bossa Nova define-se pelo violão e pelo canto de João Gilberto e, ao mesmo tempo, pela produção musical de um certo grupo ao longo de alguns anos, surge então o problema de precisão na definição de Bossa Nova: a produção de um único artista é (naturalmente e com certeza neste caso) mais coerente do que a produção de um grupo, de uma geração. Portanto, analisar a Bossa Nova como o resultado da produção de João Gilberto e a influência que teve apresenta um sentido, enquanto analisá-la como movimento de uma geração tem outro sentido, um tanto diverso. Coisa mais linda, de Paulo Thiago, apresenta vários momentos agradáveis e repete didaticamente algumas das idéias mais interessantes sobre essa tal de Bossa Nova, mas limita-se a partir do momento em que procura ignorar este problema de definição do seu objeto retratado e, a partir daí, torna-se de certa maneira a tentativa de conciliar, num olhar panorâmico e superficial, ambas as versões. Assim, acaba por trair ambos os espíritos: se não tem o rigor e a inventividade da arte de João Gilberto, tampouco consegue manter a atmosfera de simplicidade e amizade próprios do grupo e do momento histórico. Como filme, não apresenta o rigor de uma análise séria dos sentidos e significados que a Bossa Nova ganhou nem consegue, em meio aos seus infindáveis letreiros explicativos, criar o clima de “crônica de uma época”. No entanto, se breca no meio do caminho, perdido entre a crônica de uma época e a análise de uma estética, o filme traz consigo alguns momentos realmente emocionantes soltos em meio à sua narração. Mal comparando, é como um conjunto dos anos 50 que, mesmo tocando a música mais careta, inclui em seu elenco algumas feras capazes de trazer brilhos eventuais a certas gravações, como grandes solistas perdidos em meio a uma orquestração bem-comportada e nada original.

É pena que assim o seja, uma vez que ambos os caminhos merecem um ou muitos outros filmes. Na verdade, é como crônica de uma geração, quase como filme de família, que Coisa mais linda se sai melhor. O filme menor, da relação de causos e amizades, é mais interessante do que a revisão didática dos lugares-comuns históricos – melhor seria que o filme se dedicasse a ser somente um filme de galera assumido, um “Carlinhos & Menesca”, libertando-se dos chatíssimos e intermináveis letreiros pretensamente explicativos (do tipo “João Donato nasceu no Acre”...). Lyra e Menescal são personagens interessantes, ainda que se revelem muito pouco e tenham relações diferentes com a geografia apresentada – quando são levados de um lado para o outro, como se fossem os cicerones do filme (sendo mais interessantes, na verdade, como personagens em seus próprios depoimentos), Menescal parece se sentir bem mais à vontade, seja no cais ou no anfiteatro da UFRJ. Já o filme maior pretendido, por ser inviável, apresenta um resultado banal, como logo se torna evidente – Donato, Johnny Alf, Marcos Valle, Alaíde Costa (para citar exemplos de artistas que, por si só, já merecem grande atenção) são vistos apenas de relance, às vezes tendo tempo para tocar uma música bonita, contextualizados pelos onipresentes letreiros. Dezenas de outros nem são citados, quase nenhum instrumentista – trata-se de um panorama que não cita Milton Banana nem Edison Machado, por exemplo.

E, na verdade, isso não importa, uma vez que os retratados “à distância” João Gilberto, Tom Jobim e Vinicius de Moraes são muita areia para o caminhãozinho de Coisa mais linda, que prefere girar em torno dos velhos clichês (e mitificações, historinhas folclóricas, no caso de João Gilberto) nos perfis traçados. Não há dúvida de que os depoimentos de Paulo Jobim sobre Tom e de Otávio Terceiro sobre João são interessantíssimos – mas cada um deles é apenas um pequeno pedaço de uma história gigantesca que Coisa mais linda mal entrevê, através de mais uns poucos comentários (os de Menescal, o de Durval Ferreira, o de Nelson Motta). Muitos assuntos interessantes uma revisão da Bossa Nova pode encontrar, sobretudo se não tiver receio de confrontar os contrários nem de especular significados. Mas Coisa mais linda prefere não correr o risco de ser original – ao contrário dos músicos do movimento, a narrativa do filme parece não gostar de dissonâncias.

Isto não tira do filme o mérito, no entanto, de registrar alguns instantes admiráveis – os melhores que Paulo Thiago filmou nos últimos anos, com certeza. Mas, como se sabe, entre as principais lições de João Gilberto estão o rigor e a concisão. Em certos momentos Coisa mais linda encontra seus personagens – é pena que não se concentre neles em nome de um repetitivo e superficial retrato pretensamente mais amplo.

Texto publicado em setembro de 2005.

Por dentro e por fora das pornochanchadas

Brasil, 2002.

Na maior rede aberta de televisão, um dos sucessos de ficção do momento, O Quinto dos Infernos, deve boa parte do seu sucesso na medição de audiência, sem dúvida, ao teor intencionalmente erótico de algumas cenas. Da mesma maneira, nos noticiários e peças de divulgação da principal atração "documental" , o chamado 'reality show' Big Brother Brasil, invariavelmente chama-se a atenção dos espectadores para a conduta sexual dos personagens participantes, o mesmo acontecendo no ‘reality show’ exibido pela concorrência, a Casa dos Artistas.

Bem, a intenção desse texto não é a de formular um juízo negativo sobre esse fascínio de muitas pessoas pelas estrepolias sexuais dos outros. Nem tampouco será analisar as atrações televisivas mais curiosas nos dias de hoje – para isso já temos aqui na Contracampo artigos específicos na nova seção de Televisão. O interesse desse artigo e de toda essa pauta é perceber pontos centrais da exuberante produção de filmes com tons eróticos, feitos num certo período do cinema brasileiro compreendido entre a década de setenta e o início da de oitenta. Especificando ainda mais, parece fundamental entender a relação estabelecida por este(s) gênero(s) de cinema e sua forma mais constante e representativa – a pornochanchada – e seu público. Mas não apenas aquilo que se convencionou chamar de "pornochanchada". Me parece evidente que precisamos olhar com novos olhos para o apelo que este cinema sedutor exerceu sobre a platéia, desde A Mulher de Todos, marco do cinema chamado Marginal – cujo sucesso nas bilheterias, que muito se deveu à generosa interpretação da estrela Helena Ignez, sugeriu um caminho a ser trilhado para vários produtores de cinema, sobretudo na capital paulista –, seguindo pelas comédias de costumes mais safadas, seguidoras de uma tradição próxima de um certo gênero italiano de cinema, até suas manifestações críticas e tardias, já em meados dos anos oitenta, incluindo nisso a conseqüente evolução de alguns realizadores e produtores para o cinema explicitamente pornográfico.

Não sei se é do conhecimento de todos os leitores, mas, há cerca de dois anos, o lançamento do filme Tolerância foi envolvido por uma falsa polêmica em torno de suas cenas com situações sexuais – coisa semelhante já tinha acontecido com Um Copo de Cólera, mas nesse caso sem dúvida com uma conotação bem menos negativa. No caso de Tolerância, bastante tinta foi desperdiçada para criticar o fato do cartaz do filme (e equivalentes capas de vídeo e afins) exibir a atriz Maitê Proença, protagonista do filme, vestida com um sumário baby-doll. É o tipo da imagem que chama a atenção de um grande números de possíveis espectadores, e decerto isso pareceu "apelativo" para os que esperam que o cinema nacional tenha bons modos.

Pois é. De alguma forma, ainda é preciso voltar a esse assunto. Em 2001 foram exibidos em telas brasileiras trinta e seis novos filmes nacionais e uma reprise. Não resisti a comparar as tabelas da virada dos anos setenta para os anos oitenta com a deste ano. Escolhendo 1978 à guisa de comparação, vemos que neste ano tivemos 81 filmes lançados no ano – sendo que vinte e dois deles tinham contratos de co-produção ou distribuição com a Embrafilme. Num país com quase três mil salas de cinema, o número de espectadores dos filmes nacionais foi de quase 62 milhões de pagantes – representando 29% da venda de ingressos no ano.

Peço licença aos leitores para seguir no emaranhado de números. (Antes de se eleger, George W. Bush fez do seu lema de campanha a frase: - Chega de números complicados!). Em 2001, 36 filmes foram lançados no ano, em sua maioria dependentes de grana vinda de renúncia fiscal, e tivemos pouco mais de 7 milhões de espectadores pagantes – representando 8,2% da venda de ingressos neste ano que acabou. Não custa lembrar, claro, que em 1999 foram lançados 26 filmes e em 2000 foram lançados 28 filmes.

Observando as estréias de 2001, acho curioso notar que quase nenhum dos filmes recentes arriscou adicionar teores eróticos à trama apresentada - claro, é preciso mostrar a uma certa platéia que o tempo da nudez apelativa passou. Há exceções, decerto – Minha Vida em Suas Mãos ou Bufo & Spallanzani, talvez. Mas os dois filmes com pendores eróticos mais claros a serem exibidos no ano passado, ao que me parece, foram As Feras e Dona Flor e Seus Dois Maridos (relançamento). Curioso, não? Dois filmes que, tendo sido exibidos, no entanto parecem não pertencer ao ano que passou. As Feras, o estranho e irregular filme de Khouri, já foi finalizado há anos – fora o fato de que conta em sua trama com imagens feitas no início dos anos oitenta. E Dona Flor é Dona Flor, o filme com o maior registro de venda de ingressos na história do país - e, no entanto, naufragou em seu relançamento. Relançamento este que, diga-se, acrescentou à trama original elementos que tornam ainda mais clara a filiação (ainda que envergonhada) do filme à tão temida pornochanchada.

Isso parece indicar que não há mais espaço garantido para o cinema erótico dentro deste formato de exibição de filmes que temos hoje nas salas de cinema, dentro de seus shopping centers bem-vestidos. O espectador do cinema erótico parou de ver seus filmes nas salas dos centros, refugiou-se em casa com seu vídeo (agora DVD). E com seu Quinto dos Infernos.

Certo. Mas nada justifica que se aceite esta grotesca simplificação de que os filmes eróticos levaram o cinema nacional à falência, nem tampouco este mito pedante e broxante de que não há nada a se descobrir de criativo nos filmes dessa época. Não justifica que aceitemos o mito de que filmes que claramente dialogam com o formato da pornochanchada e procuram seu público sejam vistos à parte, como se fossem um corpo estranho a lidar sofisticadamente com a podridão. Necas, nada feito. Quando Joaquim Pedro fez Guerra Conjugal ou o curta Vereda Tropical, quando Person fez Cassy Jones - O Magnífico Sedutor, quando Jabor fez Eu Te Amo – em todos estes momentos os diretores claramente flertavam com um público já predisposto a entrar nas salas para assistir aos filmes eróticos brasileiros (e, ao mesmo tempo, punham em crise os pressupostos do gênero, como mais tarde fez Reichenbach).

No entanto, cria-se essa bizarra diferenciação: Eu te Amo não é pornochanchada, é drama erótico – então o filme do Sílvio de Abreu, Mulher Objeto, então também passa a ser, não é? Dona Flor e Seus Dois Maridos não é pornochanchada, de fato é uma comédia erótica, mas tem grife, 'é bem-feito', Xica da Silva é filme histórico, não tem nenhuma relação com a pornochanchada... Bem, David Cardoso também produziu seus filmes históricos e suas adaptações ousadas de escritores brasileiros.

Me parece que mais uma vez surgiu o preconceito contra o cinema que agradava ao populacho, e esse rótulo 'pornochanchada' não me parece ser mais firme, mais consistente, que o rótulo que o inspirou, 'chanchada'. Vale como definição grosseira de um certo formato histórico, entendendo-se por grosseira o fato de que esta definição (comédias eróticas, ocasionalmente dramas, de baixo orçamento feitos num certo período, certo?) será por demais imprecisa e limitada. Chamar um filme de 'pornochanchada' foi inicialmente, mais uma vez, uma maneira de desmerecer a priori um certo tipo de manifestação cultural que, provocando o interesse da plebe, não foi digerido de imediato por uma certa classe "bem-pensante".

Como já disse um colega meu aqui da revista, quando se assiste a um filme, há quem ache obscena um cena de sexo que lhe pareça "gratuita", há quem ache obscena uma cena de assassinato que lhe pareça "gratuita" – a diferença estará no que cada um considera obsceno.

Não que aqueles filmes que se pode chamar de ‘pornochanchadas’, com mais ou menos precisão e purismo de ocasião, sejam todos obras-primas incontestes ou que aquela produção de cinema seja um modelo a ser seguido. Não, decerto teremos muitos pontos problemáticos a notar em cada enfoque, em muitos filmes. Mas não importa aqui descobrir exatamente a quantidade de obras-primas e de filmes péssimos. Cabe, sobretudo, notar a chance de dialogar e produzir idéias que um certo formato histórico teve, a partir da descoberta de um viés de contato com seu público – o viés erótico, sem pudores. Tendo, eventualmente, seu tom machista ou reacionário, mesmo assim teve esse formato o mérito de exibir para nós um imaginário que despertou o interesse em seu público – o que significa que ao mesmo tempo retratou-o e ajudou a moldá-lo. Que este imaginário tenha se voltado ainda mais reacionariamente contra essa produção, essa é a ironia histórica suprema – não estaria de acordo com a realidade a idéia de que o "feio" cinema brasileiro só mostra palavrão e sacanagem só existe nas classes abastadas, creio eu. Compreender o percurso dessa mudança é ver como um mito se estabelece como um preconceito cultural – mas, mais do que compreender, é preciso tentar desmistificar.

Já se falou bastante da função catártica da arte, da necessidade que todos temos em canalizar nossos sentimentos e desejos escondidos para personagens, estórias, imagens e sons. Fugindo um pouco de uma avaliação moralizante rastaquera, que poderia se indignar diante do oferecimento de mero circo à plebe, podemos tentar imaginar a riqueza do diálogo que se pode construir a partir daí – assim, ao mesmo tempo que sacia a sede da sua platéia por espetáculos violentos, o narrador pode também despertar nela curiosidades e questionamentos até então inesperados ou ocultos. Isso acontece com filmes violentos diversos – e também acontece com o melhor do cinema erótico. Exemplos estrangeiros não faltam – para ficar em nomes conhecidos, temos os filmes de Borowczyk, Oshima, D'Amato, Tinto Brass – mas eles ficarão para outras ocasiões. Quanto aos exemplos brasileiros, nunca é demais descobri-los ou reentendê-los – e a Contracampo trata de destrinchar alguns desse período específico nessa edição.

Texto publicado em março de 2002