15/10/2014

Paulo Emilio em movimento



Contrariando uma tradição brasileira, a passagem dos anos, ao invés de condenar ao esquecimento, tem tornado cada vez maior a imagem do pesquisador e crítico Paulo Emilio Salles Gomes. Durante décadas ele foi o mais destacado propositor de uma compreensão histórica e cultural do cinema brasileiro, tendo exercido um papel de liderança nas atividades tanto de análise fílmica quanto de conservação – sobretudo em São Paulo, mas não só na grande metrópole. Trinta e cinco anos após seu falecimento, a figura e as idéias do mestre paulistano continuam sendo rememoradas, influenciando os caminhos da historiografia e da difusão de filmes – vez por outra através de citações mal interpretadas, mas muitas vezes também de uma maneira salutar e ainda provocativa. Se o bordão agressivo de que “o pior filme brasileiro é mais interessante do que o melhor filme estrangeiro” acabou se tornando uma amarra bastante redutora para suas idéias e propostas, por outro lado ele condensou a força da perspectiva culturalista que movimentou Paulo Emilio em suas últimas décadas: tratava-se de compreender e amar o cinema como manifestação e índice em movimento da sua cultura.

 Com a força deflagradora das suas provocações, Paulo Emilio foi mestre de diversos grupos e gerações – isso desde a década de 1950, quando as atividades de exibições e debates de filmes na Filmoteca do Museu de Arte Moderna (que depois se tornou a Cinemateca Brasileira) formaram a geração de Jean-Claude Bernardet, Gustavo Dahl e Maurice Capovilla. Por fazer parte dos corpos docentes dos primeiros cursos de cinema do país (deu aulas na UNB até o curso de cinema ser fechado, em seguida tornou-se professor do nascente curso de cinema da USP e também lecionou no curso da Escola São Luiz), sua influência foi marcante para diversas personalidades do meio cinematográfico, de Capovilla a Carlos Reichenbach, de Dahl a Carlos Augusto Calil, de Bernardet a Rogério Sganzerla, de Maria Rita Galvão a Ismail Xavier, entre muitos outros.

 O lugar de mestre crítico ocupado por Paulo Emilio nos seus últimos anos foi registrado por dois curtas-metragens produzidos quando ele ainda estava em atividade, ambos feitos pela mesma geração de alunos da ECA-USP. O primeiro deles foi Nitrato, filme dirigido por Alain Fresnot em 1975 - que atualmente pode ser visto pela internet numa página do site da Cinemateca Brasileira dedicada a Paulo Emilio (disponível em www.cinemateca.gov.br/pauloemilio/). Esse curta-metragem composto por imagens em preto e branco fantasmagóricas (com fotografia assinada por Pedro Farkas), remetendo à atmosfera dos filmes de horror, começa com as imagens de rolos de filmes pegando fogo ao som do rock de Janis Joplin, indicando o risco que corria o acervo naqueles dias. Em seguida, tendo um tango como trilha sonora, são mostradas as instalações precárias em que se encontrava então a Cinemateca Brasileira, junto com citações de falas de Paulo Emilio, Bernardet e Capovilla. No final, Paulo Emilio surge para dar um curto depoimento, com pouco mais de dois minutos (e que ele inicia falando de gatos), em que explica com lucidez e serenidade as dificuldades políticas encontradas para se fazer a estrutura social e física das instalações para a preservação dos filmes, mencionando os preconceitos que encontrou junto à elite paulistana, inclusive da área de cinema, em relação à necessidade de preservar os filmes.

 O outro curta-metragem feito pelos discípulos uspianos de Paulo Emilio teve dele uma participação mais fundamental - foi Tem coca-cola no vatapá, cujo texto de diálogos e narrações foi escrito por ele próprio, sob a direção Pedro Farkas e Rogério Corrêa. Logo no início deste curta notável, Paulo Emilio está conversando com seus alunos e começa sua fala afirmando: “Vocês têm razão...”. Neste filme, suas teses defendidas em tantos escritos ganham forma cinematográfica: a relação de forças entre a precariedade do cinema brasileiro, representativo de sua sociedade, e a potência econômica das produções estrangeiras; a necessidade de ver, analisar e preservar os filmes brasileiros; a grandeza dos precursores Humberto Mauro e Adhemar Gonzaga e a importância do encontro dos dois. O filme reencena as cenas cruciais daquele encontro: o instante em que Gonzaga e Pedro Lima propuseram a Mario Behring, co-editor da Cinearte (que é interpretado com muito humor e ironia no filme por Rudá de Andrade), a fazer um concurso para escolher o melhor filme brasileiro de 1927; a ida de Gonzaga a Cataguases para conhecer Mauro, com o primeiro encontro dos dois; e as filmagens de Thesouro Perdido. Há ainda uma análise feita por Gustavo Dahl (na porta de sua casa, com um copo na mão, enquanto sua filha Catarina promove uma pequena algazarra) da relação entre o cinema brasileiro e sua sociedade, além de um passeio de Paulo Emilio pelos espaços da Cinemateca Brasileira, contando um pouco da trajetória dela. Este filme criticamente militante e eufórico termina com uma grande cena musical de chanchada (com trilha sonora feita por Arrigo Barnabé), apresentando alguns dos ícones tradicionais da cinematografia brasileira até aquele momento. É uma pena que um filme tão relevante para a nossa historiografia tenha se tornado raro, sem estar disponível para acesso em DVD, nem na internet.

 Outros curtas foram feitos sobre a figura histórica e o papel cumprido por Paulo Emilio Salles Gomes após seu falecimento no final de 1977 – um foi dirigido por Ricardo Dias, outro foi feito por David Neves. Mas estes dois curtas aqui enfocados têm essa característica importante de terem sido finalizados com ele ainda vivo – claramente na posição de mestre, mas não na de mito. Nesse sentido, são fundamentais inclusive como parte do seu trabalho: junto com seus escritos diversos, esses filmes se tornaram espaços de defesa de suas teses históricas e propostas estéticas. No momento em que já se tornou clara a aura mítica em torno da memória de sua figura, é tanto na revisão destes filmes como na releitura dos seus principais textos que nós podemos reencontrar a vitalidade das idéias que propôs – sem qualquer traço de dogmatismo, nem de deslumbramento ou complacência diante da precariedade (ao contrário daqueles que repetem suas frases de forma acrítica e preguiçosa para tentar justificar uma espécie de condescendência com filmes ruins).








Publicado na Filme Cultura nº60, de julho de 2013