18/05/2018

Uma Copa do Mundo Pós-Colonial



Foi uma Copa e tanto.

Quem iria imaginar que os velhos colonizadores holandeses teriam uma atuação tão espetacularmente adequada, chegando até a final e assumindo por completo o papel de malvados, com chutes e pontapés que os faziam dignos de personagens de histórias em quadrinhos? Em campo, os holandeses pareciam ser o time do João Bafo-de-Onça, Mancha Negra e Irmãos Metralha. Como um bom folhetim, a Copa da África do Sul teve vilões pérfidos – nela, os ex-colonizadores mostraram sua força e, claro, sua fragilidade final.

Depois de momentos tão cheios de emoção, quem apostaria que a Copa seria vencida por um time de futebol hipnótico como a seleção espanhola? Taticamente, tratou-se de um desenvolvimento maneirista sobre o dispositivo que moveu a seleção brasileira de 1994: manter a posse de bola e jogá-la de um lado ao outro até que o outro time fique tonto.

Foi isso que fez a Espanha de 2010: tocou a bola de um lado ao outro, de um lado ao outro, de um lado ao outro, de um lado ao outro, de um lado ao outro, de um lado ao outro, de um lado ao outro, de um lado ao outro, de um lado ao outro, de um lado ao outro, de um lado ao outro, de um lado ao outro, de um lado ao outro, de um lado ao outro, de um lado ao outro, de um lado ao outro, de um lado ao outro, de um lado ao outro, de um lado ao outro, de um lado ao outro... até que o outro time se deixava hipnotizar, a bola passava e eles, espanhóis, perdiam um gol. Aí eles começavam tudo de novo, até conseguirem fazer a bola entrar. Futebol-arte pós-alguma-coisa.




O futebol da Espanha talvez tenha algo a ver com a tendência comum na arte contemporânea de buscar o rigor e a quebra do fluxo apressado do dia-a-dia. O futebol da seleção espanhola é minimalista, estilo que eles tornaram sutilmente explícito com o seu saldo de gols.

Foi uma copa de personalidades e também foi uma copa de novas identidades. No primeiro caso, vários dos principais atores mantinham-se nas bordas do palco: Dunga, Maradona, Domenech. Enquanto o técnico brasileiro criava uma tensão clara com o espaço fora-de-campo (como fez na célebre fala do “cagão de merda”), o argentino, borderline como sempre, parecia estar sempre no limite de calçar as chuteiras e voltar a dar aulas de trato à pelota (não obstante o nome que dêem a ela). E o treinador francês, que teve para si um papel “morredor”, teve a sofisticação de organizar toda uma trama intrincada e inexplicável a que nós da plateia simplesmente não tivemos acesso senão por depoimentos contraditórios. Mas, mesmo com a narrativa opaca e personagens fechados, essa nouvelle vague francesa morreu na praia.

Tivemos os personagens gloriosos. Já se falou muito das participações especiais de astros que só apareceram para dar bom-dia, se tanto. Mais interessante é lembrar que aquele que foi considerado melhor jogador da copa é um atacante uruguaio de quase trinta anos, que sempre foi bom de bola, mas nunca havia sido muito badalado. E, assim como aconteceu com este herói inesperado, a copa deixou pelo caminho as suas maiores figuras.

Destas, dois jogadores em especial mostraram grande brilho dramático numa partida específica: aquela que confrontou a seleção do Uruguai e a de Gana. Como o leitor deste texto deve saber, no lance final desta partida, já na sua prorrogação, o atacante ganense cabeceou uma bola de forma certeira em direção ao gol – e, em cima da linha, um atacante uruguaio tirou a bola com a mão. O pênalti foi marcado, o uruguaio Luiz Alberto Suárez foi expulso e Asamoah Gyan, o artilheiro de Gana, não conseguiu converter o tiro livre em gol. Nas disputas de pênalti, a seleção uruguaia saiu vencedora, impedindo assim que uma seleção africana passasse pela primeira vez à semifinal de uma Copa do Mundo. Neste final de um jogo bem disputado, mesmo expulso Suárez se consagrou por ter impedido o gol que tiraria a sua seleção das semifinais da Copa; por sua vez, Gyan ganhou dimensão trágica por perder o pênalti fatal após ter jogado muitíssimo ao longo da partida.

Neste lance os dois marcaram a Copa, considerando-se os papéis que seus times desempenharam naquele momento. O Uruguai de passado glorioso encarou a ascendente seleção africana, que defendia solitariamente a esperança que foi depositada nas seleções do continente. Graças à transgressão, venceu o estilo clássico.

Como sempre, o esporte assistido internacionalmente negocia e redefine as identidades assumidas por cada parte. Nesta Copa, Maradona redesenhou o caráter divertido, excessivo e falastrão do modo de ser argentino, enquanto Messi e seus colegas mantiveram-se à sua sombra. Isso se torna um clichê? O que importa é que o mundo acredita nele. Kaká e Robinho mostraram a cara de um Brasil jovem, novo-rico e precocemente envelhecido. A Larissa Riquelme ajudou a povoar a imaginação do mundo inteiro com as moçoilas paraguaias (para desgosto de várias outras, certamente).

E houve os casos da Holanda e da Alemanha, duas seleções que se tornaram multiétnicas, composta por filhos de imigrantes e jogadores naturalizados. Nestes casos, os estrangeiros são bem-vindos para ajudar a fortalecer os países no espetáculo do futebol. Os alemães, sobretudo, souberam tornar simpática e querida uma redefinição da velha imagem nacional, angariando boa torcida pela sua forma de jogar – que, fugindo às tradições, se apresentava instável e, nos seus melhores momentos, bastante criativa e ofensiva. Mas a seleção da Alemanha guardava uma outra característica curiosa: todos os seus jogadores titulares atuam em times do próprio país. Para ser alemão, parecia nos dizer o time dirigido por Joachim Low, não é preciso ter raiz familiar nem mesmo nascer no território do país – mas é preciso viver e atuar na Alemanha.

Isso cria uma relação especial de identidade entre o time e os torcedores do seu país. Para aqueles que são um pouco mais velhos, é fácil lembrar do sentimento que cercava as seleções compostas majoritariamente por jogadores que atuavam no Brasil, situação que só mudou na década de 1990. Até então, eram os craques que atuavam no exterior que se somavam aos locais, e não o contrário. Isto provocava sempre uma natural dose de controvérsia e outra de politiquice – era comum que o treinador tentasse escalar pelo menos um representante de cada clube forte do país, para não ficar mal com torcidas e dirigentes. Esse era um problema, mas o fato é que aquela situação fazia com que a relação entre torcedores e jogadores fosse bem diferente da que existe hoje. Antes, os principais ídolos defendidos por cada torcida se juntavam para garantir a união nacional em nome do caneco de ouro – o imaginário de nação se constituía de partes que nos eram próximas e de grande estima. Atualmente, é raro encontrar um torcedor que saiba quais são os clubes da maior parte dos jogadores titulares da seleção.

Claro, esta situação se deve à evasão de grandes talentos do futebol, uma vez que nosso país é menos rico e o mercado tem uma rentabilidade menor e menos organizada da que se encontra na Europa. Não faria sentido defender que a seleção seja composta por alguns dos inúmeros pernas-de-pau que atuam aqui. Chato é perceber que às vezes os técnicos preferem escalar pernas-de-pau que foram jogar no exterior. A tal ponto que, conferindo alguns nomes, podemos constatar que é mais fácil um jogador ser convocado se estiver jogando num time menor de um campeonato europeu de pouca expressão do que se estiver atuando bem no Brasil. Essa desvalorização explícita dos jogadores locais livra um pouco o técnico das pressões já comentadas para representar cada um dos grandes clubes – mas, assim, também faz com que seja mais interessante aos jogadores ir para times europeus pequenos do que permanecer no país. Depois, é só enviar um DVD com os melhores lances.

Talvez fosse possível formar uma base da seleção com jogadores locais, para se apresentar mais vezes nas cidades do país (algo que é bastante raro nos últimos anos), e chamar do exterior apenas os craques de alto nível. É preciso, no entanto, levar em consideração a hipótese pessimista de que isso não é possível simplesmente porque os jogadores de alto nível permanecerão todos no exterior.

Mas, se for assim, é preciso apontar o aspecto neurótico da imagem-nação que se faz durante esse espetáculo futebolístico – essa imagem-nação a que o discurso patriotesco de Dunga constantemente se referiu. Não se trata de dizer que a postura tática da equipe traía qualquer espécie de tradição do futebol brasileiro, mas sim de notar que essa seleção de jogadores brasileiros não consegue compor de fato uma seleção brasileira, uma seleção identificada como representante do futebol local. Ao contrário do que faz a Alemanha, a seleção brasileira, ironicamente, indica que o movimento diaspórico é fundamental para compor a identidade selecionável. Para a seleção da CBF, só é brasileiro decente quem conseguiu sair daqui.





Texto publicado no final de 2010 na Revista Lateral.