07/06/2009

Hélio Silva, elemento nobre

Hélio Silva é um mestre. Não apenas por já ter lecionado – em Cuba, na escola de San Antonio de los Baños – mas sobretudo porque fez parte de uma geração que reencontrou um certo viés realista para o cinema brasileiro e que, com sua opção por uma imagem diversa daquela imposta pela escola dominante no cinema, abriu caminho para a transformação estética que se seguiu no período dos anos 60.

Ao falar de sua carreira, logo um dado salta à frente – cuidou das luzes do marco Rio Quarenta Graus, que Nelson Pereira dos Santos rodou em 1954 e que se tornou a inspiração assumida da geração que surgia. Mas não se resume a isso a sua carreira extensa – ao contrário, isso é apenas o início de tudo.

Hélio, nascido em Minas Gerais, chegou ao Rio no início dos anos 50, já disposto a se engajar no meio cinematográfico. Arrumou emprego na Companhia Industrial Cinematográfica, onde prestou todo tipo de serviço até se fixar como assistente de câmera. E foi como segundo assistente que trabalhou em Agulha no Palheiro, de Alex Viany, onde conheceu Nelson Pereira, assistente de direção do filme. Ainda viria a trabalhar em São Paulo, como assistente do papa Edgar Brazil no filme de Alberto Cavalcanti Mulher de Verdade, antes de ser convidado por Nelson para fazer a fotografia do seu longa-metragem de estréia, Rio Quarenta Graus.

As condições de filmagem já são razoavelmente conhecidas, depois de biografia (de Nelson Pereira, por Helena Salem), exposição (realizada em 1998) e até documentário em vídeo (Nelson Quarenta Graus, de Carlos Sanches), com todos seus episódios folclóricos (como o da filmagem de um plano no teto do bondinho do Pão-de-Açúcar, quando o óleo espalhado no piso do teto impedia qualquer espécie de equilíbrio de ator, diretor e fotógrafo, quanto mais fixar a câmera em algum ponto) e todos os seus apertos financeiros e alimentícios . Lá parecia que estava se definindo na prática o que Paulo Emílio notou depois, a tendência de um certo cinema brasileiro em encontrar na precariedade suas soluções, em passar a ter como proposta cotidiana tirar leite de pedra.

Ali, principalmente, as idéias tão defendidas por Nelson nos Congressos Brasileiros estavam encontrando na prática a sua contrapartida técnica e estética. Fugia-se do equilíbrio de luz feito por pesados refletores, em busca de uma nova imagem que diferisse da estética filhote da indústria cultural, na época célebre pelos “céus de Figueroa”, uma referência ao fotógrafo mexicano Gabriel Figueroa, que, discípulo de Gregg Toland, procurava trazer aos seus filmes latinos o barroquismo que lhe interessava, com quadros estetizados e pouco afeitos a imagens cruas, terminando por passar uma sensação de frieza por trás de todo aquele apuro visual. Aquilo, decididamente, não serviria a Rio Quarenta Graus, com sua história que acompanhava os garotos da favela que iam vender amendoim nos pontos turísticos da cidade. E fez-se a nova luz, menos compensada, dando menor relevo aos cenários de fundo e preocupando-se mais em mostrar os personagens. Toda a revolução dos céus estourados de Luiz Carlos Barreto, por mais influenciada que fosse pelo Cartier-Bresson, já encontrava aí seu ponto de partida.

Depois de todo o quiproquó em que o filme se envolveu na época de sua estréia, por conta do delegado-censor Menezes Cortes, que até se reverteu em publicidade que gerou boa bilheteria, Hélio deu continuidade à carreira fotografando Roberto Pires (Redenção, A Grande Feira, Tocaia no Asfalto), o segundo filme de Nelson (Rio Zona Norte), Roberto Santos (O Grande Momento, o filme que está sendo apresentado no Festival do Rio, A Hora e a Vez de Augusto Matraga, e em seguida a sua fabulosa versão de O Homem Nu), isso para lembrar apenas daqueles filmes que hoje chamamos de “clássicos”. Já que foi mencionada a transformação da luz feita por Barreto em Vidas Secas, vale lembrar a curiosidade – seria Hélio quem faria a fotografia do filme, na primeira versão do projeto. A história é bem conhecida: foram todos ao Nordeste para fazer o filme, caíram as chuvas e Vidas Secas se inviabilizou. Nelson, então, improvisou uma história de bangue-bangue no nordeste, fazendo Mandacaru Vermelho – que, se pelo diretor é considerado apenas um rascunho mal-feito de um possível filme, para nós pode ser interessantíssimo pelo seu aspecto visual. Já absolutamente distante dos “céus de Figueroa” (a comparação pode ser feita com o filme Seara Vermelha, que foi apresentado pelo Festival do Rio no ano passado), Mandacaru... também está distante dos céus estourados que viriam pela frente. Novamente estava Hélio fazendo milagres com o pouco equipamento que tinha para amenizar a luz solar sem depender de milhares de kilowatts em refletores para compensar – para filtrar minimamente a luz do sol valia o que estivesse à mão.

Ainda viria a trabalhar com Braz Chediak (no seu filme mais bem-sucedido, Navalha na Carne, e também em algumas das suas adaptações de Nelson Rodrigues), com Sylvio Back (Lance Maior), com Antônio Calmon (Eu matei Lúcio Flávio), entre inúmeros outros trabalhos. Voltou a trabalhar com Roberto Santos e com Nelson Pereira mais tarde – com o primeiro faria Vozes do Medo e Um Anjo Mau, com o segundo faria ainda El Justicero e, mais tarde, O Amuleto de Ogum e Tenda dos Milagres. Conta Hélio que apenas recebeu um convite de Nelson para visitar as filmagens do Amuleto, que o próprio diretor estava fotografando (já fizera todas as cenas de exterior/dia) e que, ao ver o perrengue que o outro passava para iluminar uma cena noturna, cuidou de ajudá-lo um pouco. Alguns minutos depois, ganhou o convite: “Você não quer vir nos outros dias também, não?”. Tenda dos Milagres veio em seguida. Como nota bem Hernani Heffner no verbete dedicado a Hélio na Enciclopédia do Cinema Brasileiro, ele soube “modificar pouco seu padrão estético com a chegada da cor, guardando rara coesão e coerência em obra tão extensa”.

Já decano, pouco era chamado para novos trabalhos recentemente – nos anos noventa só trabalhou na versão de Boca de Ouro filmada por Walter Avancini e nos longa-metragens de Otávio Bezerra A Dívida da Vida e O Lado Certo da Vida Errada. Neste, em inúmeras cenas noturnas novamente não havia possibilidade de usar os refletores necessários. E lá estava Hélio Silva de novo a tirar leite de pedra, a fazer luz queimando óleo de latas de sardinhas para registrar suas cenas. Que, no final, terminavam incrivelmente belas, elegantes.

Hélio Silva passou e ainda passa por sérios problemas de saúde, agravados pela falta de condições financeiras, e tem contado nos últimos tempos com o apoio de amigos como Severino Dadá e Walter Carvalho (que demonstrou que sua grandeza não é apenas técnica) e agora sobretudo da ABC, a associação profissional dos fotógrafos de cinema do Brasil, de criação ainda recente e que já se justifica plenamente ao oferecer apoio a um profissional do porte de Hélio Silva. Mas a vida continua e, com ela, seus problemas.

Por tudo isso, é justa e sobretudo necessária esta homenagem feita pelo Festival do Rio ao grande Hélio Silva – para que o público possa lembrar que cinema se faz com o trabalho de diversos técnicos, e não apenas com as idéias geniais de uns poucos autores. Lembro-me agora de uma outra homenagem feita a ele, já há quase uma década, na primeira edição Festival de Cinema Universitário, produzida pelos alunos da UFF, meus colegas na época. Vários filmes foram apresentados – e aí pudemos conferir a força e a integridade do trabalho de Hélio – e também ele foi convidado a dar uma palestra para os estudantes. Palestra talvez seja um termo por demais formal, diante da descontração com que Hélio conduziu a conversa.

Lembrando das suas idéias, suas histórias e seus filmes, só nos resta torcer por sua imediata recuperação – para que nos possa oferecer em breve novos frutos – e ver e rever seus trabalhos: Rio Zona Norte, A Hora e a Vez de Augusto Matraga, O Homem Nu, A Grande Feira, El Justicero, Navalha na Carne, O Amuleto de Ogum, A Viúva Virgem, Um Anjo Mau, Eu Matei Lúcio Flávio, O Grande Momento, As Aventuras Amorosas de um Padeiro, Lance Maior, O Lado Certo da Vida Errada, e por aí vai...



Texto publicado em setembro de 2002