26/02/2012

Margem no centro

A historiografia tradicional da produção de filmes no Brasil disseminou o uso da expressão Cinema Marginal para agrupar um conjunto: um ciclo determinado de filmes produzidos entre 1967 e 1971 e seus realizadores, na maior parte das vezes caracterizando-os como oposição e, ao mesmo tempo, um prolongamento radical do cinemanovismo, cujo grupo central na época estava trilhando novos rumos em busca do contato com o público. É preciso lembrar, antes de tudo, a contestação frequente destes próprios realizadores ao rótulo que se grudou neles e em seus filmes. Nenhum deles aceitou de bom grado ser classificado dessa maneira, como um marginal - a dita marginalidade sempre foi caracterizada a contragosto. Como afirmou Rogério Sganzerla certa vez, os filmes não almejavam se colocar à margem de nada, mas foram todos marginalizados pelo circuito exibidor, pelo público, pelos mecanismos de fomento à produção e também pela maioria dos críticos e historiadores, que muitas vezes os relegaram a notas apressadas de pé de página. A estranheza, a melancolia e a agressividade eram as características mais mencionadas daqueles filmes que, a partir de certo momento, ninguém parecia querer ver.

No caso da crítica historiográfica, isso começou a mudar sobretudo a partir de meados dos anos 80. Até então, foram poucas as exceções, sendo a mais notável a de Paulo Emilio Salles Gomes, que mencionou essa geração no célebre Cinema: Trajetória no subdesenvolvimento e falou dela em mais alguns textos (escrevendo, por exemplo, sobre Bang Bang, de Andrea Tonacci). Já em 1985, Fernão Ramos dedicou um livro ao assunto; no ano seguinte Jairo Ferreira publicou o seu precioso Cinema de Invenção, enquanto uma visão bem menos entusiástica pôde ser encontrada em O Cinema Dilacerado, de José Carlos Avellar. Poucos anos depois, Jean-Claude Bernardet lançou O Vôo dos anjos, focado nos filmes de Julio Bressane e Sganzerla (que na época se enfureceu com o livro), e Ismail Xavier destinou boa parte do seu Alegorias do Subdesenvolvimento para lançar um novo olhar sobre O Bandido da Luz Vermelha e outras produções do período. Os filmes e realizadores daquele ciclo do passado foram reabilitados em parte pela crítica – ao menos em parte, ao menos pela crítica mais interessada.

O mesmo, no entanto, não acontecia com as carreiras destes mesmos cineastas naquele momento. A maior parte dos chamados marginais estava, de fato, marginalizada, relegada ao ostracismo ou à produção em condições precárias, sem verbas. Em alguns casos, é possível atribuir isso a uma espécie de atitude de não-aceitação, por parte destes cineastas, dos procedimentos exigidos pelos mecanismos de fomento; em outros casos, o esforço evidente de alguns deles para articular novas produções tornou gritante a limitação que era imposta à suas propostas – era, novamente, uma marginalidade a contragosto. Se a produção foi restrita a poucos títulos, pior ainda era o desinteresse de exibidores, do grande público e da maioria da crítica. A partir deste momento, em meados dos anos 80, passaram a se consolidar as duas exceções fundamentais dentro deste panorama: as carreiras de Julio Bressane e Carlos Reichenbach. De certo modo, foram eles os grandes sobreviventes daquele grupo, que já naquele período de “redemocratização” conseguiram se adaptar aos novos procedimentos de produção de filmes. Como ambos fariam novamente alguns anos depois, já em meados da década de 1990.

No entanto, estas duas exceções, cada uma do seu modo, confirmavam uma regra: o circuitão tem horror a experimentalismos. Horror que se estende à maior parte da produção crítica, de modo geral pouco afeita a reconhecer alguma relevância dos filmes ditos “marginais” nos seus esforços panorâmicos. Para boa parte dos historiadores e críticos dos filmes brasileiros, cinema marginal já era um episódio esquecido do passado. E assim continuou acontecendo durante a década de 1990. Não é difícil observar isso – basta averiguar o grande número de projetos daqueles realizadores que não foram produzidos, ou observar o pequeno interesse despertado pelos poucos que foram feitos com orçamentos ínfimos. Além disso, é possível encontrar livros e artigos com amplas pretensões de análise histórica que simplesmente ignoraram a existência dos filmes novos destes cineastas. Foi o caso, por exemplo, de filmes notáveis como O Vigilante, de Ozualdo Candeias, e Tudo é Brasil, de Rogério Sganzerla, que foram esquecidos em quase todas as análises históricas do período, a despeito da relevância inegável destes cineastas em décadas anteriores.

Contudo, em determinado momento do início dos anos 2000 isso passou a ser diferente – e talvez hoje possamos dizer que essa perspectiva se alterou por completo. A realização de uma ampla mostra dedicada aos filmes hoje “clássicos” do período marginal, com organização e curadoria de Eugênio Puppo (e, ironicamente, patrocinada e apresentada pelo centro cultural de um banco: nada mais institucional e menos marginal que isso), permitiu que uma nova geração de críticos e cineastas descobrisse a força explosiva que aquelas produções guardaram através dos anos. Nos anos seguintes, a energia potencial dos novos filmes daqueles mesmos realizadores que até então eram pouco lembrados foi fundamental para provocar o encanto da nova geração; mas essa potência poderia ter passado despercebida mais uma vez, se esses filmes não estivessem sendo vistos por novos olhos: desta vez, olhos que querem ver.

Dessa maneira, boa parte da crítica (não apenas das novas gerações) pôde reconhecer a inventividade e até mesmo, digamos, a centralidade estética de filmes como O Signo do Caos, de Sganzerla, Serras da Desordem, de Tonacci (que, cabe notar, ganhou um livro de fortuna crítica organizado pelo autor deste texto, lançado na época do lançamento), Cleópatra, de Julio Bressane, A Encarnação do demônio, de José Mojica Marins, e Falsa Loura, de Reichenbach, no panorama do que se produziu de mais arrojado e interessante entre os filmes brasileiros dos últimos anos. Cada um a seu modo, todos eles faziam um movimento de atualização, de olhar para questões éticas ou sociais dos tempo atuais – sem perder a ambição fundamentalmente cinematográfica por excesso de esforço discursivo. O Signo do Caos pôs em crise o espaço de invenção ao rever a passagem de Welles pelo Brasil e a derrocada do cinema moderno; Serras da Desordem questionou as consequências da relação violenta entre culturas distintas, inclusive nos seus limites possíveis de representação e compreensão mútua; Cleópatra ironizou o regime de poder e desejo entre senhor e escravo, numa ótica pós-colonial que mostrou como a força hegemônica pode se dobrar ao que lhe é externo, ao marginal pela força do desejo de domínio: todos estes três filmes remeteram a uma compreensão política e histórica do uso das imagens e narrativas. Por sua vez, A Encarnação do Demônio, um reconhecimento de fim de percurso e passagem de geração, e Falsa Loura, espécie de versão crítica pós-marxista da fábula da Cinderela (um realismo à moda de Reichenbach), trouxeram aos dias atuais algumas obsessões cinematográficas dos seus realizadores.

Mas é necessário desconfiar da mitificação histórica, que eventualmente pode gerar o equívoco da imagem idealizada, de um período já distante do passado, e lá encarcerar as tendências e os realizadores que devem ser considerados “experimentais”, como se tivessem feito parte de um “clubinho” fechado. Nesse sentido, vale lembrar novamente do alerta dado em diferentes ocasiões por Jairo Ferreira e Julio Bressane: a tendência de invenção existiu em diversos momentos da produção de filmes no Brasil, tanto antes quanto depois do final da década de 1960. E depois daquele momento histórico surgiram vários cineastas que podem ser incluídos nessa tendência: Arthur Omar, Joel Pizzini, Carlos Adriano, entre outros. Talvez o caso mais bem-sucedido nos últimos tempos, depois de anos brigando com as dificuldades, seja o do realizador baiano Edgard Navarro, cujo início de carreira certamente nos permite situá-lo como um marginal tardio. Depois de enfim produzir seu primeiro longa, o bem sucedido Eu Me Lembro, Navarro atualmente está em vias de lançar o segundo, o impressionante O Homem que não dormia.

Do mesmo modo, vale lembrar que, se certos realizadores daquele período se tornaram tão canônicos quanto Humberto Mauro e Glauber Rocha, outros se mantiveram fora do baralho (para usar a expressão que intitulou um filme de Sganzerla). Alguns por terem simplesmente abandonado a profissão (como João Callegaro), outros porque não conseguiram filmar os projetos que pensaram ao longo dos últimos anos (como Neville D’Almeida e Luiz Rosemberg, por exemplo), e ainda houve os que não foram tão bem-sucedidos (como Ivan Cardoso, cujo manifesto autobiográfico A marca do terrir passou um tanto desapercebido, enquanto Um lobisomem na Amazônia sofreu com os problemas de lançamento e os conflitos com o produtor Diler Trindade).

No panorama atual, não há como negar que essa tendência experimental continua marginal para os mecanismos de fomento e para o circuito exibidor. Mas, graças a diversos fatores - como a consolidação do circuito de festivais, o barateamento de custos graças a novas tecnologias e a disseminação de uma cultura cinefílica no país – esta tendência pôde se fazer conhecer e espalhar de maneira inédita e cada vez mais forte. Talvez ainda não seja possível medir nem indicar as influências que eles exercem sobre os novos filmes – mas não há dúvida de que aquela tendência estética que era chamada de “marginal” se tornou um horizonte fundamental para muitos dos jovens realizadores que despontaram nos últimos anos.

(É curioso notar que, de um modo diferente, coisa parecida também aconteceu dentro da tradição cinemanovista: a sua tendência mais influente nos últimos anos, sobretudo desde 1998, foi aquela sustentada por um realizador que, décadas atrás, era visto como uma figura menor ou marginal dentro do Cinema Novo. Estou me referindo, é claro, a Eduardo Coutinho.)


texto publicado no livro Cinema sem fronteiras, lançado na mostra de Tiradentes de 2012.