23/08/2016

E agora, Mojica?



De que maneira você vê o seu percurso em relação aos outros cineastas que foram seus companheiros de geração?

José Mojica Marins: Eu sou filho de um toureiro com uma dançarina de tango. Meu pai fazia touradas no Largo Arouche, isso acontecia quando eu era criança – não era tão comum no Sul, mas na Bahia também faziam touradas. E eu era levado por eles para essas apresentações, porque era filho único e eles tinham que cuidar de mim, não tinha com quem deixar. Depois, quando resolvi fazer cinema, comecei sendo um elemento estranho no Brasil, principalmente depois que fiz À meia-noite levarei sua alma e criei o personagem do Zé do Caixão, um louco violento que sonha encontrar a mulher perfeita para ter filhos. Ninguém havia feito filmes de horror no Brasil até então, e até hoje a produção é muito pequena, quase não existe - já tentaram até fazer co-produções internacionais, mas nunca dá certo, nunca deslancha. É uma pena, porque a cultura tem muitas lendas que poderiam ser aproveitadas nos filmes. O caso é que para fazer filme de horror bom tem que gostar de verdade do gênero, não é uma questão de fazer comércio. E eu sempre gostei. Desde adolescente, bem jovem, eu lia muitas revistas de terror, como Sexta-Feira 13 e Terror Negro, e queria fazer filmes daquele gênero. Depois, muitos críticos associaram meus filmes a de diretores que me admiravam e que eu considero muito bons, como o Rogério Sganzerla, o Luís Sérgio Person, o Ozualdo Candeias, o Carlão Reichenbach. O Jairo Ferreira falou isso naquele livro dele, Cinema de Invenção, que até hoje eu ainda quero conseguir um exemplar. Eu fiquei muito amigo do Jairo, do Sganzerla. Eles me ajudaram muito quando eu fiz O despertar da besta, muita gente me deu negativos de graça para conseguir fazer o filme.

Após finalizar a trilogia do Zé do Caixão, que precisou de quatro décadas para poder ser terminada, como você vê a repercussão do seu trabalho nas novas gerações?

Existem vários jovens cineastas tentando fazer seus filmes, e sempre costumam mostrar muito interesse pelos meus filmes nos festivais. Apesar de ainda não termos uma produção grande, eles podem ter condições melhores do que as que eu tive em quase todos os filmes. Aqui no Brasil a gente sempre teve dificuldade para continuar a produção, o que dava certo mesmo era pornochanchada. Eu mesmo tive que fazer filmes pornográficos em certo momento para poder trabalhar, e aí fiz os filmes mais escatológicos que podia. O despertar da besta ficou interditado durante vinte anos pela censura – imagina como eu fui prejudicado por isso! E ele sempre foi meu filme favorito entre os que eu fiz, junto com Finis Hominis. De todos os filmes que eu fiz, só dois tiveram um custo de produção mais alto: o Exorcismo negro, produzido pelo Aníbal Massaini, e A encarnação do demônio, meu filme mais recente. No caso do Exorcismo, eu ainda consegui filmar tudo na metade do cronograma que o Massaini costumava seguir. Esse é um filme que eu gosto muito, queria ter uma cópia dele, já ate pedi à empresa do Massaini.

E quais são seus próximos projetos?

Agora estou envolvido com a preparação das filmagens de Maldito, um filme que vai ser feito com base na biografia que o André Barcinski e o Ivan Finotti publicaram anos atrás sobre mim. Eu estou colaborando no roteiro, que vai contar com relatos de coisas que eu vi, que eu mesmo presenciei. Além da minha infância, eu quero contar de quando eu trabalhei num jornal como especialista em casos sobrenaturais. Muitas vezes eles me levavam para acompanhar casos que rendiam semanas e mais semanas de reportagens de capa, como nos casos mais conhecidos do bebê diabo e do vampiro de Osasco. Ou seja, vai ser um filme sobre a minha vida, a do cineasta José Mojica Marins, mas também vai mostrar o mundo segundo a minha visão. O Barcinski prevê que vamos filmar tudo até o final do ano.

Filmes-faróis

A torre de londres (Tower of London, 1939)
É um filme com o Boris Karloff, eu assisti quando era bastante jovem e tinha cenas que nunca saíram da minha memória. Tem um momento em que uma criança enfia  a mão por debaixo de um portão, aí o Karloff vê a mão e pisa ela com força – era muito forte. Isso me inspirou em muitas cenas, a crueldade do Zé do Caixão vem daí.

E o vento levou...
É uma obra prima, um filme da época em que se faziam grandes produções. Eu sempre gostei de mergulhar nesse mundo fantástico que o cinema trazia.

O bebê de Rosemary
É um terror violento, marcou muito aquela época. É uma pena que o Roman Polanski nunca mais tenha feito outro filme no mesmo nível.

Festim diabólico
É um filme fabuloso, tudo é mostrado como se fosse num plano só - a câmera fica rodando a sala, vai para cima e para baixo sem cortar. É muito criativo, tudo feito artesanalmente, só com imaginação. No Encarnação do demônio a gente fez assim, não tinha quase nenhum efeito, foi muito artesanal.

Psicose
Foi uma fita que marcou muito. Até hoje todo mundo lembra dela quando vai ao banheiro e olha para as cortinas do chuveiro.

O mágico de Oz
Esse foi outro filme que eu vi ainda jovem, e era um filme que trazia uma alegria interna muito grande quando eu era adolescente.

A bela da tarde
Aí já é um filme que entra mais no meu gênero, filme sem trucagem, só a vida cotidiana. E aquilo é uma história que  pode acontecer com qualquer mulher, não é mesmo?

Os pássaros
Outro filme do Hitchcock, esse porque é um terror feito só com pássaros – ele conseguiu deixar todo mundo com medo de passarinho. Eu lembro que, quando eu era escoteiro, fui com vários amigos ver o filme no cinema. Todo ficou morrendo de medo, menos eu. Eu já tinha visto mais filmes, então fiquei fascinado com tudo aquilo.

Os brutos também amam
Lembro  muito da relação do caubói com a criança. Esse é um faroeste que mexe com o lado humano, não é só ação.

Spartacus

Eu sempre gostei de fitas históricas, e essa era incrível, com romanos, escravos, era uma época tremenda. É uma fita muito dramática, com aquela imagem inesquecível do Kirk Douglas crucificado. Aparece ele e mais um grupo de gente na cruz, mas ele que era o grande galã, então era muito forte.


Entrevista publicada na Filme Cultura nº 61, de novembro de 2013.

E agora, Adirley?





Com
A Cidade é uma Só?, você ganhou o prêmio da 15ª Mostra de Tiradentes em 2012. Atualmente, como você se vê dentro do panorama dessa nova geração que está surgindo?

Adirley Queirós - Acho que o cinema desse pessoal que está aparecendo agora e se apropriando do uso das tecnologias digitais tem uma potência grande. É um cinema que, na maior parte das vezes, tem sido feito praticamente sem incentivos e por isso pode contar com uma certa liberdade. Isso tem um recorte geracional: são pessoas jovens que estão fazendo isso e os filmes delas dialogam muito com os lugares em que eles vivem - e o cinema não tem a preocupação de fazer um discurso maior, de apresentar uma visão de todas as coisas. Esse cinema já está sendo percebido a partir de filmes como O som ao redor, que fala de uma forma muito interessante sobre a classe média das grandes cidades. É uma geração que está tentando se livrar das pechas que ainda atiram sobre os filmes brasileiros, como as de que são filmes feitos para o umbigo ou que poucas pessoas assistem. Doméstica, do Gabriel Mascaro, também deve provocar uma boa discussão. Esse cinema ainda procura uma certa legitimação. Não dos festivais ou da crítica, porque nesse meio eles já se fizeram respeitar, mas existe uma legitimação social mais ampla que esse cinema procura, ou seja, conseguir ser visto por mais gente. Eu estou dentro dessa história, mesmo que tenha algumas diferenças – que são basicamente as do local de fala. Não quero dizer que é preciso ser de um local para falar dele, nem que o meu local é melhor ou pior: é só que os locais de onde a gente parte são diferentes e isso é parte dos filmes, a gente assume os locais de fala. O que talvez me diferencie desse grande grupo são questões de enfoque, de gramática, de escolher que tipo de personagens que aparecem. O que me incomoda ainda é que, apesar do discurso de fazer um cinema “fora do centro”, as representações não saem do que se pode chamar de “centro”. Nos meus filmes eu tento mostrar uma fala diferente, uma linguagem diferente – essa coisa de mostrar a gagueira, mostrar personagens meio estranhos, que vivem num outro mundo inclusive na fala. A diferença básica dos meus filmes para os outros que eu vejo é essa busca, que eu ainda estou no caminho e não sei até onde consigo chegar, de uma linguagem que provoque um estranhamento maior  em relação aos locais e às maneiras dos personagens, esse interesse por um desajuste.

E como são seus próximos projetos?

Eu estou terminando um novo filme, um documentário – eu tenho que dizer que é documentário, senão não ganho nenhum edital... Claro que isso é brincadeira porque eu adoro fazer documentários, mas, enfim, é um documentário que fala sobre o movimento Black na Ceilândia , que foi algo muito marcante a partir dos anos 80 e virou referência em todo o Brasil – os músicos Black depois de tocar em São Paulo vinham tocar na Ceilândia por conta daquele movimento. Que de certa forma se contrapunha ao rock de Brasília da mesma época. O movimento Black era muito forte e juntava até três mil pessoas a cada baile, até o momento em que esse baile foi criminalizado, mais ou menos como o funk carioca uns anos atrás. O baile black foi massacrado, foi afastado para longe de onde era e o filme fala disso – até o dia em que a polícia mata um, atira em outro, que perde a perna... Eu encontrei esses personagens, mas eles não querem contar essa história de maneira direta, então eles me propõem inventar um outro filme. Eles queriam fazer uma ficção científica, então é esse o filme que a gente partiu para fazer. O filme se apresenta como ficção, claro que com orçamento de documentário. Esse filme já está quase pronto, vou mandar para alguns festivais, mas não vou lançar ele em Brasília porque aqui a gente não tem diálogo. E estou fazendo outro filme sobre um concurso que fizeram em Brasília em 1995, era um concurso de cartas de pessoas das periferias que seriam abertas em 2010 – iam ser abertas, mas não foram, e o tema era para que cada um falasse do seu amor por Brasília. Agora nós estamos achando esses personagens. Dessa vez eu vou ter que trabalhar com muitas personagens femininas, é uma experiência diferente para mim – eu sou um cara das quebradas, do universo da periferia, machista. E o filme também trata disso, desse universo por onde essas mulheres circulam e vivem.

Filmes-faróis

Django, de Sergio Corbucci
Eu não sou cinéfilo desde novo, a minha cinefilia é muito recente, de uns anos para cá. Hoje em dia eu tenho até que me segurar, porque a curiosidade acaba sendo grande sobre um universo que eu ainda estou descobrindo. Mais jovem, os filmes que eu curtia eram os de caratê ou bangue-bangue. E esse filme é uma coisa fantástica.

Se encontrar Sartana, reze pela sua morte, de Gianfranco Parolini
Outro faroeste e, como o Django, outra história de vingança. É uma história que ficava na imaginação das cidadezinhas do Brasil – ia chegar um forasteiro e aconteceria a vingança.  Eu ainda quero fazer um filme de vingança, já tenho até título para ele: Grande Sertão: Quebradas, uma vingança contra o poder instituído.

Robocop – o policial do futuro, de Paul Verhoeven
Foi um filme que eu vi no cinema na época, na tela grande, e isso me marcou muito, acho que permanece até hoje no meu imaginário.

Blade Runner, o caçador de andróides, de Ridley Scott
Foi outro filme que me abalou muito quando vi no cinema, saí da sala meio fora do eixo... Não ficava pensando em estética do cinema, mas mexeu comigo.

Serras da desordem, de Andrea Tonacci
Aí já é um filme do tempo em que eu comecei a fazer cinema e a querer conhecer mais. É um filme que eu já vi mais de dez vezes e acho que é filme que eu mais gosto.  Se eu tivesse que dizer qual é o melhor documentário do mundo, eu ia dizer que é esse.

O homem-urso, de Werner Herzog
Eu fiquei impactado com essa narrativa dele, como ela te joga para aquele lugar.

Lucio Flávio, o passageiro da agonia, de Hector Babenco
É um filme que eu só vi na televisão e me marcou bastante, era o que a gente podia chamar de cinema policial brasileiro.

O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho
É um filme que parece ser um documentário, é um grande documentário!

Fantasmas, de André Novais
Eu passei esse filme outro dia para uma turma de estudantes e é impressionante como os moleques ficam arregalados com aquela narrativa, com as falas do Gabriel e do Maurílio, aquele sotaque mineiro das quebradas.

São Bernardo/ABC da greve, de Leon Hirszman

Sempre que começam a falar para a gente do Cinema Novo vem a figura do Glauber - e eu gosto muito dos filmes dele, tem que falar dele mesmo. Mas eu não conhecia nada sobre o Leon e o São Bernardo quando vi o filme e gostei demais. Também é um faroeste, do jeito dele. A minha memória é toda de filmes de faroeste, o Fantasmas também é um... E o ABC foi um filme que me impressionou pelas cenas da greve no estádio, eu não tinha idéia de como tinha sido a coisa no ABC.



Entrevista publicada na Filme Cultura nº 60, de julho de 2013

E agora, Helvécio?



Como você vê o seu cinema em relação aos filmes do outros jovens realizadores dos últimos anos? Quais são as proximidades e as distâncias que você percebe?

Helvécio Marins: Eu não me identifico com isso que chamam de “novíssimo”. Eu costumo brincar com a expressão do “cinema de caixinha”. A cada hora surge uma para encaixar os filmes que estão sendo feitos: agora é a caixinha do cinema dos coletivos, dos “novíssimos”, antes era o da “videoarte” e por aí vai...  Pessoalmente eu me identifico com alguns dos chamados novíssimos, mas artisticamente estou noutra. Além disso, sou de uma geração intermediária, que lidou com a mudança de tecnologia, as formas de produção. Até mesmo a cinefilia: a gente tinha que ver os filmes em VHS, cinematecas, festivais, cineclubes... Há pouco tempo, em 2001 ou 2002, os festivais no Brasil ainda estavam engatinhando para aceitar filmes em diferentes suportes. Antes os filmes eram separados em competições diferentes, competição em 35mm, 16mm, vídeo. A minha geração ainda associou o cinema à película, montei o meu primeiro curta na moviola, quer dizer, eu não sou tão “novíssimo” assim. (este ano chego aos 40). Não quero ser leviano, eu gosto de alguns filmes dessa galera, mas a maioria não me agrada.

Por outro lado, pouco depois que você e a Clarissa Campolina filmaram o curta Trecho, Cao Guimarães fez o Andarilho – e são dois filmes com várias características em comum, mesmo que vocês sejam de gerações diferentes.

Pois é, tem essa relação mesmo. E, como um pessoal precisa achar uma caixinha para dar nome, já começaram a falar na “vídeo-arte mineira”, apesar dos filmes terem fotografia naturalista, cortes secos etc - ou seja, linguagem cinematográfica. Há quanto tempo que não se revê esse conceito de vídeo-arte? Depois que eu tanto reclamei da “videoarte”, virou “experimental”, uma nova caixinha. Enfim, eu acho que essa proximidade tão grande entre os filmes acabou sendo uma “infeliz coincidência”, mesmo que o projeto de Trecho tenha sido pensado em 2003 e filmado em 2005 - Andarilho foi feito anos depois. Mesmo assim, acho os dois filmes bem diferentes, principalmente em termos de abordagem e na forma de tratar os personagens. Mas para os que adoram uma caixinha foi um belo presente!

Tanto Trecho como Girimunho procuram “ouvir uma voz”, registrar uma certa prosódia popular – tanto que Girimunho foi relacionado muitas vezes com os textos do Guimarães Rosa.

Guimarães Rosa... é complicado. Grande Sertão: Veredas talvez seja a obra de arte da minha vida, mas já falaram também que Nascente era inspirado em A terceira margem do rio. Eu agradeço, é uma honra, mas eu nunca pensei nisso, cada um no seu lugar, jamais quero me comparar ao um artista do nível do Rosa. Claro que existe alguma inspiração - se você ouvir a Bastu ou a Dona Maria falando, naturalmente o fraseado delas remete a alguns personagens do Guimarães Rosa, não só do Grande Sertão, mas também do Magma, onde há um poema chamado Batuque, e por aí vai... Coincidências existem, mas nada foi escolhido em função disso. Girimunho tem personalidade própria, é um filme de um Brasil interiorano, contemporâneo, desconhecido dos próprios brasileiros, com seu vocabulário e sintaxe regional. E este regional é autêntico, sintetiza a condição humana e psicológica das personagens - isso vem de uma longa observação da vida sertaneja, da vida deles, da paixão que tenho por aquele lugar, por aquelas pessoas. Foi um prazer enorme e aprendi muito com eles durante os oito anos de pesquisa (eu continuo indo visitá-los, anos após o filme) E essa experiência documentária, essa convivência e intimidade durante tanto tempo, deu lugar a um estudo profundo, a observação daquele cotidiano e à invenção da história (devo muito a Felipe Bragança) que contamos no filme. Como diz Antônio Cândido: “Tudo se transforma em significado universal graças à invenção, que subtrai a obra do regionalismo para fazê-lo exprimir os grandes lugares-comuns, sem os quais a arte não sobrevive: dor, júbilo, ódio, amor, morte, para cuja órbita nos arrasta a cada instante, mostrando que o pitoresco é acessório e, na verdade, o Sertão é o mundo”.

E seus próximos projetos?

Desde que saí da Teia, ando escrevendo muito. Aprendi muito com o Bragança. Dois projetos estão mais adiantados. Um deles é A mulher do homem que come raio laser, inspirado pela canção O circo chegou, do Jorge Ben. Não é um filme de circo, e eu já nem sei se vou usar a canção – mas este é um filme digamos, 100% ficção e com “atores profissionais”. O outro ainda tem título provisório, por enquanto se chama Fazenda bordada, mas deve mudar. Esse é um filme mais próximo de Girimunho, com personagens reais interpretando a si mesmos, e se passa numa fazenda no noroeste de Minas.


Filmes faróis

Odeio listas. Recentemente rejeitei um convite de uma revista inglesa, pois julgava impossível eleger apenas dez filmes da história do cinema. Dessa vez, o convite da Filme Cultura era irrecusável, mas consegui convencer a equipe da revista a me deixar fazer uma lista com dez filmes internacionais e dez brasileiros. Para minha sorte, aceitaram. A única ressalva é que, por motivos de espaço, os curtíssimos comentários sobre as obras se restringiram apenas à primeira lista. Tentei... Provavelmente amanhã escolheria outros dez filmes.
Da lista dos dez internacionais, antecipo duas calamidades gravíssimas. Não tem nenhum filme dos Estados Unidos! E nenhum filme do Godard, o cara que sempre considerei meu cineasta favorito! Vai entender... por essas, odeio listas! Qualquer um dos dez brasileiros poderia estar listado junto dos dez “gringos”. Estão em ordem alfabética e eu optei por não repetir filmes de um mesmo cineasta.


1 – A Noite, de Michelangelo Antonioni
Antonioni é pra mim a elegância na forma de abordar e filmar. Blow up, O Eclipse...

2 – Os irmãos da família toda, de Yasujiro Ozu
Ozu é quem mais me fez amar o cinema.

3 – Close-up, de Abbas Kiarostami
Filme-Cinema. Talvez o meu mestre contemporâneo.

4 – Era uma vez no Oeste, de Sergio Leone
Pra deixar um Ford fora da lista, só mesmo Leone.

5 – Ivan Rublev, de Andrei Tarkovsky
O cineasta que mais me instigou e fez pensar (até  um minuto atrás seria O Espelho... e Stalker?)

6 – O Espírito da Colméia, de Victor Erice
O mais puro encantamento que um filme provocou em mim.

7 – O Rio, de Jean Renoir
O filme que é mais a minha cara.

8 – Persona, de Ingmar Bergman
O realizador que mais contribuiu para elevar os meus sentidos.

9 – Shoah, de Claude Lanzmann
Jamais senti tanta dor ao ver um filme. E tem quase dez horas de duração.

10 – Um condenado à morte escapou, de Robert Bresson
O realizador que mais me inspirou a fazer cinema.

+ dez brasileiros:
1 – A hora e a vez de Augusto Matraga
2 – Cabaret mineiro
3 – Cabra marcado para morrer
4 – Iracema, uma transa amazônica
5 – Limite
6 – O bandido da luz vermelha
7 – São Bernardo
8 – Serras da desordem
9 – Terra em transe
10 – Vidas secas

Nota de pesar: Ganga Bruta de fora? Como?


Entrevista publicada na Filme Cultura nº 59, de abril de 2013

E agora, Ricardo?

Ricardo Miranda



Em anos passados você dirigiu diversos documentários para a televisão, em parcerias com a TV Cultura, e mais recentemente tem produzido filmes por conta própria, como foi o caso de Djalioh. Como você observa atualmente as condições de produção?

Ricardo Miranda: Olha, por um lado é menos complexo produzir, graças à tecnologia digital. E eu filmei pouco em película, desde cedo fui um entusiasta do vídeo - até por ter trabalhado na TV ainda jovem. Meu primeiro longa, Assim na tela como no céu, de 1991, já misturava trechos em vídeo e em película. Por outro lado, a produção em vídeo não altera as questões de produção com que os filmes se defrontam. Elas são as mesmas: figurino, cenários, fotografia e tudo mais. Não adianta pegar uma câmera e ficar balançando ela na frente de alguém. Mas essa tecnologia facilita muito na hora de finalizar o trabalho. No caso do Djalioh, eu marquei a luz e cor do filme na minha casa, com a TV conectada ao computador por um cabo HDMI. O programa que eu usei pode ser um pouco mais simples do que aquele usado pelas empresas finalizadoras, mas o resultado final em vídeo é o mesmo. Nesse caso, o que é importante não é a máquina, mas o homem, a consciência que aperta o botão. Não adianta nada ter uma grande máquina e usar sem pensar.

O embate que continua difícil é distribuir os filmes. É possível exibir em festivais e cineclubes, e existe o Canal Brasil, que exibe a nossa produção na TV a cabo, mas chegar aos cinemas é difícil. Parece que a gente faz filmes para duas ou três pessoas, mas eu quero que os filmes sejam vistos pelas multidões.


E como você vê o panorama atual da produção brasileira?

Tem uma coisa estimulante, que é essa geração nova que está se formando com a descoberta de um outro cinema. Eu dou aulas, então eu também tomo parte diretamente nessa ação de mexer com a cabeça dos caras, para não ficarem restritos a um cinema americanóide ou globonóide, restritos a essa discussão sobre “mercado”. Para mim, mercado é lugar de comprar banana. E é legal ver a garotada que consegue tirar isso da cabeça e pensar cinema de um jeito diferente. Eu fiz uma experiência recente que foi muito boa, quando apresentei a uma turma os filmes do Carmelo Bene. Eles nunca tinham ouvido falar dele, que não teve nenhum filme lançado no Brasil, mas é uma figura fundamental da dramaturgia do século XX e fez a cabeça de muita gente – do Pasolini e do Glauber quando esteve na Itália, por exemplo. Vasculhando o Youtube, meus alunos encontraram alguns filmes dele e puderam montar vídeos a partir do que acharam, além de produzir textos sobre o trabalho dele. A internet permite isso. Há algum tempo, Carmelo Bene só podia ser conhecido por meia dúzia de pessoas no Brasil, eu só conseguia conversar sobre o trabalho dele com o Julio Bressane.

Com isso, essa garotada percebe a porcaria que se está fazendo atualmente no Brasil e tenta fazer outra coisa. Conhecendo os filmes do Apichatpong Weerasethakul ao invés de Woody Allen, eles podem fazer coisa melhor. Além disso, essa nova geração se aproximou de cineastas que já faziam um outro cinema – como Luís Rosemberg, Andrea Tonacci e outros – e isso mudou o panorama. Não importa o nome, hoje existe esse outro cinema, um cinema de invenção. Não um cinema “de arte”, mas com arte no seu fazer.

Após Djalioh, seu segundo longa de ficção, quais são seus próximos projetos?

Depois de anos dedicado a fazer documentários, eu estou tateando a ficção novamente. O meu primeiro filme, um curta de 1969 chamado A Ceia, era uma ficção. Era sobre um homem que era castrado num ritual sádico, que obviamente remete à tortura, à ditadura e ao contexto da época. A castração fazia dele um Cristo, com o uso de uma inversão de negativo para dar essa impressão. Depois, nos meus documentários, a ficção estava sempre dentro deles - eu sempre prego que o bom documentário é aquele em que é tudo mentira. Sobre o meu novo projeto, eu quero fazer um duplo do Djalioh. É a partir do segundo conto do Flaubert, chamado Virtude e Paixão, e o filme vai se chamar Paixão e Virtude, com essa pequena inversão dialética. Os dois filmes vão ser duplos que se completam, porque falam de sexualidade e brutalidade, a partir de contos que o Flaubert escreveu em outubro de 1837 e dezembro de 1837, aos 16 anos. Esse segundo conto ao mesmo tempo antecipa Madame Bovary e remete à história de Medéia: é uma mulher que mata o marido e os filhos em busca do desejo, da paixão pelo amante. É uma manifestação de histeria, um diagnóstico antecipado pelo Flaubert aos 16 anos de idade, décadas antes do Freud.

Além de cineasta, você é um dos principais montadores do Brasil nas últimas décadas. Qual a sua impressão dos usos da montagem nos filmes feitos nos anos recentes?

Nos filmes ditos de mercado, basicamente se usa a lógica do raccord, que o Jean-Marie Straub já definiu como uma idiotice. Eu concordo um pouco isso, eu gosto de cortes que quebrem o raccord tradicional, aquele que parece ter sido feito com duas câmeras, o raccord das telenovelas. A TV inutilizou o raccord. A grande vantagem das facilidades digitais é poder praticar livremente, como o Méliès já fazia. Méliès é que foi o grande cineasta, foi ele que criou o cinema de invenção. Isso aparece no Fausto do Sokurov, com usos de montagem que não se restringem ao corte do plano – a montagem inclui também efeitos como inverter a imagem. Isso tudo já era feito pelo Méliès – só que agora a gente pode fazer isso apertando duas teclas do computador. Isso não quer dizer que todo mundo saiba fazer. A máquina ajuda a fazer, mas quem faz é a cabeça.




FILMES FARÓIS

Sem ordem, sem documento, sem saber como me vieram os dez filmes.

1. Três cantos para Lenin – É o filme em que Dziga Vertov põe em prática teorias produzidas desde os anos 1920, com total emoção. Fico extasiado cada vez que assisto.

2. O velho e o novo (A linha geral) – Os filmes de Eisenstein são filmes de cabeceira. Este não paro de ver e rever. A sequência da procissão transcende as teorias construtivistas do cinema. Em sala de aula é fundamental. Vi a primeira vez na cinemateca do Mam.

3.  Uma visita ao Louvre, Danièle Huillet e Jean-Marie Straub -  Enquadramentos   rigorosos e precisos vibram com cores e formas da pintura. Um filme de palavras. Extraordinário.

4. Fausto, de Sokurov,  é um daqueles filmes “que transformam você para sempre”.Um filme entre o pênis e a vagina. o conhecimento e o obscurantismo; Fenomenal  direção. ver e rever todos os dias. finalmente cinema, êxtase.

5. Crônica de Anna Magdalena Bach – Fenomenal filme de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub. Citando Straub, “uma das tarefas é achar imagens que não bloqueiem a imaginação do espectador”.

6. O leão de sete cabeças – Extraordinário filme de Glauber Rocha. Aqui Glauber engendra “um incêndio simbólico para fazer a libertação brotar das cinzas do ícone deposto.”

7. Mal dos trópicos, de Apichatpong Weerasethakul - Narrativa única municiada por estranha mitologia da Tailândia. Tradição/invenção; lenda/fato; sensação/história.

8. Medéia, de Pier Paolo Pasolini - Ritos, beleza, cinema. Instintos, paixões e sentimentos. Um filme que te acompanha no dia após dia.

9. Di-Glauber – Pequeno, grande, enorme, fundamental filme.
10. Número dois, de Jean-Luc Godard - Godard após os experimentos do Groupe Dziga Vertov. Cotidiano e sexualidade. Ver revendo. ReveЯ.




Entrevista publicada na Filme Cultura nº 57, de outubro de 2012.

E agora, Gustavo?



Como você vê as circunstâncias atuais da nova geração de cineastas, no Rio e no Brasil?

Gustavo Pizzi: Tem muita gente bacana. Uma coisa boa dos últimos anos é que atualmente qualquer um pode fazer filmes. E há uma sintonia entre o que se faz aqui e em outros estados. Não sei se dá para chamar de geração, mas tem gente com bons filmes tanto no Rio como em Pernambuco, Minas Gerais, Ceará... Isso faz diferença. Muitos desses novos realizadores fazem seus filmes sem edital e sem patrocínio. E existe uma cultura cinematográfica, que é algo que começou lá atrás, com as grandes mostras internacionais de cinema, as do Rio, a de São Paulo, chegando a essa consolidação dos festivais. Isso permitiu o encontro desses novos filmes e cineastas, como na Mostra de Tiradentes - é a primeira que vem à cabeça, mas tem outros festivais. O acesso a filmes do mundo inteiro hoje também é mais fácil, e isso leva a uma situação cada vez mais interessante. E atualmente há alguns editais voltados para filmes mais baratos, com perfis mais autorais. São filmes que, pelas regras do mercado, têm menos cópias, menos divulgação, então acabam tendo menos público por conta da própria estrutura de difusão. É fundamental que o Estado garanta que eles existam, e também precisa dar suporte para que eles sejam vistos em outros países. Se um filme fizer cem mil espectadores em vários países, na França, nos EUA e outros, isso é bom em todos os sentidos. Se tem uma nova geração com boa pegada de cinema, esses filmes podem encontrar público no mundo inteiro. Por isso, ela precisa tanto desse empreendedorismo, que é uma marca desses dias, como de um apoio estatal para existir e se difundir.


Quais são seus próximos projetos?

Eu não me movo pela ambição de produzir filmes cada vez maiores – tudo depende de cada projeto que me interessa fazer. Tenho feito trabalhos para televisão, o que é bom por ser um exercício constante. Tenho me dedicado à segunda temporada de uma série para a TV Brasil, chamada Onqotô, co-dirigida pelo Daniel Tendler e produzida pela L. C. Barreto. É uma série documental, a partir das idéias do Jorge Mautner sobre o Brasil – nessa temporada a gente vai enfocar a Região Sul, fazendo um diálogo das idéias do Jorge com entrevistas feitas com intelectuais, artistas e cientistas da região. E tenho um projeto de longa metragem que é anterior ao Riscado, chamado Gilda. O Riscado foi um projeto urgente, que tinha que ser feito naquele momento, então foi feito antes, porque não poderia ser feito depois. Já o Gilda era uma coisa cinco anos atrás e hoje é outra, completamente diferente. Isso foi bom, o projeto amadureceu. Com o Riscado eu não podia fazer isso, ou fazia naquele momento ou não faria nunca mais.


Como é a idéia desse filme?

A protagonista de Gilda é uma mulher que cria porcos e galinhas e, em certo momento, entra numa guerra contra a sua vizinha Cacilda, que desconfia que a Gilda tem um caso com o seu marido. Começa então um embate, e o filme é sobre essa guerra e sobre o amor, digamos assim. O roteiro foi inspirado numa peça que a Karine [Teles, sua esposa, protagonista de Riscado] fez, um monólogo escrito pelo Rodrigo de Roure que ela apresentou entre 2003 e 2004. Desde que eu vi a peça, pensei que poderia ser um filme. Um tempo depois, em 2007, a gente tomou coragem e escrevemos um primeiro tratamento de roteiro que tinha quase duzentas páginas, com todos os personagens que ela citava no monólogo. Na peça, a personagem conta toda a vida dela; no filme, a idéia é mostrar cenas dessa vida. É uma personagem aberta, sincera, até ingênua, e as pessoas entendem mal esse jeito de ser. E tem essa questão da vizinhança, das pessoas que vivem juntas e, por qualquer bobagem, de repente podem virar inimigas. Além disso, ela cria galinhas, quer dizer, é uma coisa um pouco mal vista. É uma história simples, como o Riscado era, eu gosto disso. Tentar partir de uma história simples, que qualquer um entende, que mantenha uma força estética, uma intenção de mostrar as coisas de um determinado jeito e que, ao mesmo tempo, isso não se sobreponha à vida da personagem que está ali. Esse é um equilíbrio que eu acho interessante.



DEZ FILMES FARÓIS:


Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos, 1963
Esse filme me fez ver o cinema de outro jeito. Eu já tinha visto muito cinema na televisão - aí vi Vidas Secas com 17 anos, logo depois que minha família se mudou para o Rio de Janeiro, e ele me fez entrar naquele ambiente e me marcou muito.


Laranja mecânica, de Stanley Kubrick, 1971
Eu lembro que, quando entrei na cinefilia, tinha aqueles filmes que eram obrigatórios, mas eram muito chatos. Eu tinha medo disso antes de ver os filmes do Kubrick. Aí fui ver Laranja mecânica no cinema, sem saber nada sobre o filme, e fiquei vidrado. Dele, eu poderia lembrar ainda de O iluminado, que me provocou um choque no mesmo nível.

                                                                                               
Acossado, de Jean-Luc Godard, 1960
Poderia ser Alphaville. O cinema do Godard é cerebral e me estimula muito. Eu prefiro os filmes mais narrativos dele, mas mesmo os mais cansativos têm uma coisa forte. Não é um tipo de cinema que eu tenho vontade de fazer, mas me deixa com vontade de fazer cinema.


Uma mulher sob influência, de John Cassavetes, 1974
Poderia ser Noite de estreia. O Cassavetes, a partir de um momento da carreira, acertou um jeito de fazer cinema que parece simples e relaxado e não é nada simples nem relaxado. A relação da câmera com os atores parece fazer alguma coisa acontecer de verdade, o que é muito difícil e é a coisa mais bonita do cinema. Eu gosto dessa verdade que a gente vê no olho dos atores, a mise en scène desses filmes é impressionante.


Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, 1969
O estilo de atuação nem é meu preferido, é grandioso e teatral. Mas as imagens do filme são muito marcantes, eu já me peguei várias vezes lembrando e pensando em imagens e pedaços do filme. Eu poderia ter lembrado O padre e a moça, que tem mais a ver com meu estilo de filme, mas o Macunaíma marcou a memória de um jeito diferente.


8 e ½, de Federico Fellini, 1963.
Pode ser o maior chavão de listas de melhores, mas não tem jeito. É muito visceral e cerebral, tem um lado cínico misturado a um lado pessoal - toda vez que eu vejo de novo, encontro coisa nova.


Em busca da vida (Still life), de Jia Zhang ke, 2006
É um filme que entende o cinema anterior a ele e repensa tudo isso. Ele filmar a China naquele momento, com aquela represa e as pessoas tendo que sair das suas casas, enfim, me deixou curioso e instigou a conhecer um pouco mais da cinematografia chinesa.


O dragão da maldade contra o santo guerreiro, de Glauber Rocha, 1969
Glauber não era dos meus cineastas prediletos – dos brasileiros, eu preferia Joaquim Pedro. E eu já tinha visto O dragão numa fita VHS e tinha detestado. Aí eu fui ver o filme restaurado, em 35mm, e saí abalado do cinema, foi uma experiência estética muito forte. Eu sou totalmente a favor do digital, mas esse é um filme que precisa da película, do batimento, daquele visual dele.


Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho, 2007
É o limite entre a ficção e o documentário, e fala de uma questão que é muito importante para mim: a relação do ator com a emoção. E isso com todo mundo sentado, sem mais nada. É uma aula de simplicidade, mesmo que nada seja simples ali.


O sabor da melancia, de Tsai Ming-liang, 2005

Porque é um filme musical e eu sempre adorei musicais.



Entrevista publicada na Filme Cultura nº 57, de outubro de 2012

E agora, Carlos Alberto Prates Correia?



Você vê relações entre o seu cinema e os filmes de outros realizadores em atividade?

Carlos Alberto Prates Correia: Não vejo nem nunca vi relações do meu cinema com algo que alguém mais ande fazendo, mas pode ser que elas existam. Essa pretensão à originalidade, no entanto, já teve que ultrapassar obstáculos: quando terminei o roteiro de Minas Texas, por exemplo, fui ver um filme de Almodóvar e me deparei na tela com a dublagem de Johnny Guitar para o castelhano, justamente de uma cena que sob forma de paródia eu tinha incluído em meu roteiro. Fiquei constrangido e a substituí. Anos depois, ligo a TV e vejo uma cena de outro filme dele, com a mesma gravação de uma música da trilha de Perdida, que ele certamente não viu. Apesar das coincidências, não me sinto relacionado a Pedro Almodóvar.

Depois de um filme memorialístico como Castelar e Nelson Dantas no país dos generais, você tem novos projetos de filmes em vista?

Todos que realizei são de alguma forma memorialísticos. Veja como surgiu Terra de Grande Beleza, o próximo. Rio 2003: estava enfermo e ganhei uma biografia do presidente JK, um volume pesado. Cerrando as pálpebras, JK surgia como candidato, o povo o cercava na Praça da Matriz e ele atravessou a rua para abraçar a minha mãe. Montes Claros, anos 50. Eu era adolescente.
Em sua primeira versão, Terra de Grande Beleza seria a história do sentimento que experimentei, isto é, do ciúme que começa naquela praça, se prolonga quando o político arrebata ao futuro cineasta sua prima querida e chega ao clímax quando se vê o diamantinense lhe subtraindo sua companheira de militância num partido extremista.
No projeto atual, o filme passou a ser a crônica de uma geração que virava a noite no bar discutindo os rumos da Revolução brasileira.
O enredo cobre com humor um período de 35 anos do itinerário dessa geração, inclusive o destino daqueles que deram cabo à vida pelo caminho ou preferiram ingressar na guerrilha contra a ditadura militar e tiveram um fim trágico.

Um desdobramento: o que te interessa mais filmar nos dias de hoje?

Um outro lado do enredo me atrai igualmente: Terra de Grande Beleza é também a memória de um segmento da população de Minas que fazia da mudança para o Rio o grande sonho de sua vida.
O material de arquivo a ser inserido corresponde a uma parcela de menor porte da obra ficcional, mas seu uso intermitente deverá auxiliar na ambientação histórica das cenas relacionadas com o Rio de Noel Rosa, a FEB na Itália, Ipanema nos anos 50, Jânio, Jango, o golpe de 64, os períodos Médici e Fernando Collor.
Como se vê, contrariando meus argumentos anteriores, desta vez o fluxo da memória participa de um jogo com as imagens e as palavras mais comprometido com uma ostensiva ambição cosmopolita, originária do enredo de apelo popular A Mulher Guerreira, que abandonei para dirigir Minas Texas e uso aqui sob a forma de lembrança. A Mulher Guerreira pretendia ser um filme de ação, onde destinos individuais se entrelaçam com os destinos do país.
Terra de Grande Beleza toma dele os ingredientes picantes e muita ação, egressos do best-seller tradicional – lindas mulheres, negociatas, intrigas políticas, chantagens e assassinatos. O filme tem como objetivo prender o espectador do primeiro ao último plano sem perder a linha de sua sensibilidade apurada e jamais deixando de lado a visão poética e principalmente a percepção crítica.




FILMES FARÓIS:

1 - Chicoteada – Genival Tourinho, aos 18, e Maurício Gomes Leite, aos 15, subiam a Rua Camilo Prates para ver Barba Azul, com Cécile Aubry (impróprio até 18), achando graça da minha petulância quando eu me encontrei com eles, aos 10, perseguindo o mesmo objetivo. Não sabiam que meu tio, representante do juiz de menores na porta dos cinemas, facilitava minha entrada.
Pelo menos em Montes Claros havia diferença entre impróprio e proibido.
Foi por isso que consegui ver o obscuro Chicoteada, passado na província francesa, um filme que provavelmente Guimarães Rosa também viu antes de imaginar Diadorim.
 2 A Última Vez que Vi Paris – Eu não sabia o que era amor, não entendia Casablanca, que tanto agradava à minha mãe. Fui estudar num colégio interno, onde, aos 12, vi o Festival da Metro e parece que aprendi - com Scott Fitzgerald, Richard Brooks e, principalmente, Elizabeth Taylor.
Mandei carta para ela, que mandou como resposta foto lindíssima e dedicatória afetiva, mas lacônica. Considerei logo extinta a possibilidade de qualquer relacionamento.
Anos depois, filmei em Perdida uma sequência com Helber Rangel tentando reproduzir o sofrimento de Van Johnson diante da morte de Liz.
Não sei se ela entendeu como tal a minha declaração de amor.
3 – Picnic – Em Belo Horizonte, Férias de Amor. O dorso nu de William Holden subvertia a ordem. Kim Novak desce as escadas do picnic ao som de Moonglow. Havia Faulkner no ar, cinesmascope, som estereofônico. Kim Novak me enlouquece mas não consigo transmitir para o curta-metragem que escrevo sua sensualidade absoluta.
4 – Vidas Secas – Juvenil, saio da sessão especial convencido de que o sertão verdadeiro estava ali, na tela grande do Cine Palladium, sem a falcatrua do cangaço, da jagunçada. Na sala de espera ouço a viúva de Graciliano dizer que a miséria era a maior grandeza nacional. Fico perplexo e concluo que nada mais havia a fazer a partir daquele assunto, através daquela linguagem. Apego-me inconscientemente apenas ao desejo de filmar um dia com Maria Ribeiro, a protagonista.
5 – Contos da Lua Vaga - Depois do sucesso de Macunaíma, Joaquim Pedro resolve produzir Cidadão Cana para mim, com Grande Otelo no papel inspirado em Adolfo Bloch, construtor de um império jornalístico atormentado por sua estatura muito baixa. Comecei a esboçar o roteiro com ele, mas logo na 1ª reunião percebi que a realização cairia fatalmente num viés tropicalista, que não me agradava de todo – e cada um foi para seu lado. O que eu desejava era cruzar racismo com ascensão social citando os Contos da Lua Vaga. O que me interessava era contar os sonhos de Poder daquele alfaiate e a busca da sua Princesa Wasaka, que precederam a loucura que o dominou.
6 – Ano Passado em MarienbadEscrevi algumas críticas sobre o filme, chegando até a explicar sua montagem através do jogo de palitinhos chinês. Tempos depois, eu varava as madrugadas com um colega, militante da POLOP, tomando perventin para estudar sociologia e fazer prova no dia seguinte. Numa delas, ele me confessou que preferia Os Companheiros à obra-prima de Alain Resnais, mas notei que ele estava mesmo era se divertindo com a minha alucinação, recebendo em troca por sua avaliação errônea minha afetuosa e superior compreensão. Mais alguns anos, e eu construo a fantasia de que a bárbara tortura a que Beto, o meu colega, foi submetido em Petrópolis, antes da morte, deveu-se não à sua liderança no movimento guerrilheiro mas à sua inquestionável capacidade de seduzir. A montagem de Castelar e Nelson Dantas é uma ressonância longínqua de Marienbad, mas também um sorriso compreensivo para ele.
7 – A Adolescente – De Buñuel só tinha visto Robinson Crusoé, e me lembrava pouco, de forma que ficava meio deslocado à mesa do bar quando se falava de surrealismo. A Adolescente me apresentou um diretor que eu não esperava, primeiro porque sua escrita trazia poucas lembranças do surrealismo, depois porque os enquadramentos do filme eram rigorosos e iluminados com primor por Figueroa. Mas o que me atraiu mesmo foi seu cinema sem maniqueísmos, que tentei homenagear em Cabaret Mineiro numa sequência (agora sim) surrealista, em que o personagem de Nelson Dantas assa e devora uma adolescente no espeto.
8 – A Grande IlusãoChego em Montes Claros e me encontro com João Luiz Lafetá, meu primo, no Mangueirinha. Acabo de pagar a dívida de Crioulo Doido. Ele vem de São Paulo, onde dá aulas de literatura. Eu falo que fiz o pior filme da história do cinema, que ele viu na Cinemateca e gostou. Informo que vou ser produtor executivo daqui pra frente e ele tem um trabalho danado para me convencer do contrário, elogia algumas cenas, analisa, fala da boa repercussão. Com mais algumas doses vou me reerguendo, aceitando suas ponderações, ganhando ânimo. Ele só faz uma pequena restrição, devido à sinuosidade do meu estilo, mas aí eu já estou forte e digo que meu modelo foi A Grande Ilusão, de Renoir, descarto a crítica e começo naquela mesma noite a escrever o sinuosíssimo roteiro de Perdida.
9 – O Tesouro da Sierra Madre – Fui rever no Paissandu antes de filmar Minas Texas. Mais por causa de Tim Holt, que sempre foi meu cowboy favorito. Fiquei surpreso com a exata movimentação da narrativa, destituída de travellings viciosos que apenas enfeitam a cinematografia praticada nos últimos decênios. Eliminei então o maquinista do meu orçamento, retornando à simplicidade de uma câmera sustentada por um bom tripé, como em meus primeiros filmes. Ganhei de bônus a cena com um delirante Walter Houston vendo o ouro em pó se espalhar pela ação do vento, para usar a gosto em Terra de Grande Beleza.

10 – Intriga Internacional – Diante dos novos tempos, hesito agora em conservar intocáveis os componentes de um estilo que inclui certo humor, o olhar na direção das mulheres e a presença do trem. Os filmes desprovidos de trem me causam grande enfado, chego a pensar que eles não mereciam ser feitos. Em Crioulo Doido, que reeditei há pouco, ocorria essa lacuna. A personagem era filha de um ferroviário, mas não havia a imagem do trem porque a linha férrea fora desativada em Sabará, a locação. Aproveitei a oportunidade e na trilha sonora usei com desenvoltura o inolvidável ruído de uma locomotiva chegando à estação. O filme virou outra coisa.


Entrevista publicada na Filme Cultura nº 56, de junho de 2012

E agora, Lúcia?

Seus filmes sempre foram marcados pelo interesse pela história da sociedade brasileira. Como se apresenta  um cinema assumidamente político nos dias de hoje?

Lúcia Murat - Eu tenho alguma resistência contra essa expressão, “cinema político”, porque primeiro vira um clichê e depois se torna depreciativo. Aí acaba virando sinônimo de um cinema panfletário, de mensagens - e eu não me vejo assim, não me interessa fazer proselitismo. O aspecto político dos meus filmes trata da memória – e eu, por uma série de circunstâncias, a começar pela idade em que estou chegando, tenho tido cada vez mais interesse pelas questões da memória. Recentemente me identificaram como uma cineasta focada nos anos da ditadura militar, mas até poucos anos atrás eu só tinha dois filmes que falavam de algum modo daquele período, Que bom te ver viva e Quase dois irmãos. Nos últimos anos eu lancei Uma longa viagem e A memória que me contam, aí deu essa impressão. Mas, na verdade, os dois são filmes sobre as memórias de pessoas que me eram próximas e que haviam falecido – no primeiro foi o meu irmão, que teve uma vida de sexo, drogas e rock’n’roll, e no segundo foi a minha amiga Vera Lúcia. E todos os meus filmes sempre foram movidos por fatos que aconteceram no presente e me fizeram tratar do passado. Eles não começavam no passado, eles estavam respondendo a questões do presente - até porque o passado continua presente, o passado não morre.

Em termos de geração e proximidades, como você se vê no panorama da produção de filmes brasileiros?

Acho que os filmes que marcam a nossa vida são aqueles que a gente viu na adolescência. Isso não quer dizer que não posso ter tido encantamento em outros momentos, ver um filme e pensar: “Poxa, queria ter feito isso!”. Mas os filmes que marcam o encantamento são os dessa fase. Eu era geração seguinte à do grupo do Cinema Novo, eles eram dez anos mais velhos, e o grupo do Cinema Marginal tem mais ou menos a minha idade, o Julio Bressane e o Sganzerla são um pouco mais velhos que eu. Eu fui formada por essas gerações: eu comecei a me envolver com a militância política quando eles estavam lançando os primeiros filmes deles. Quando eles vieram brigando com o Cinema Novo, a minha geração estava com eles. Eu lembro que, quando a gente já estava na clandestinidade, eu e Zé Roberto, que era um grande amigo meu, fomos ver O bandido da luz vermelha, armados e tudo, nos arriscando para poder ver o filme – a gente tinha que ver aquele filme, ele era o filme da guerrilha! Claro que Deus e o Diabo na terra do sol também foi um dos filmes que mais me marcaram, mas a nossa geração era a do Bandido. Ele representava muito mais a guerrilha e a luta armada do que o Cinema Novo. E eu só passei a fazer cinema bem mais tarde, depois de ter passado um período na cadeia... O cinema não surgiu na minha vida como uma profissão, mas como uma maneira de resgatar uma questão do passado, como eu fiz no meu primeiro filme, na Nicarágua, O pequeno exército louco. Era uma tentativa de entendimento da minha geração, e aí eu vi que fazer cinema era um barato. Aí, mais tarde consegui o financiamento da Embrafilme para fazer um média-metragem documental e fiz um longa, Que bom te ver viva. Daí eu entendi que não podia ter medo do risco para fazer filmes. Quem já viveu perto da morte não sente medo dessas coisas. Por isso eu optei por produzir mesmo em condições precárias. Se eu tentado fazer produções para o mercado, poderia ter ganhado muito mais dinheiro. E se eu tivesse esperado algum dia na vida para ter o orçamento e a produção ideais para um filme, não teria feito nem o primeiro. O cinema acabou se tornando minha maneira de sobrevivência. Hoje, eu tenho muitos amigos e pessoas com quem converso bastante entre os colegas de profissão, como, por exemplo, com o Murilo Salles, que é da minha geração, ou a Tata Amaral, que é mais nova que eu. Mas não existe um movimento conjunto de filmes, o que existe são laços de amizade.

E quais são seus próximos projetos?

Recentemente ganhei apoios para dois projetos, um se chama Quatro histórias e meia – ainda é um nome provisório. É uma retomada da relação com os índios da tribo que fez comigo Brava gente brasileira. Eu quero falar das mudanças que ocorreram nesse período sem forçar julgamentos – são quatro personagens e um que já morreu. A produção de Brava gente brasileira foi a que mais mexeu comigo, então eu quero voltar a trabalhar com tudo aquilo. O outro projeto se chama O corpo e a palavra, e começou quando eu ganhei um prêmio em Gramado, que me deu um monte de latas em 35mm. Achei que era a minha última chance de filmar em 35mm, então pensei em filmar dois espetáculos, um da Angel Vianna e outro da Fernanda Montenegro – é um projeto sobre o ciclo da vida, então eu não quero cair nem na lamentação da velhice, nem no oba-oba. Também tenho pensado em um filme de ficção falando do Rio de Janeiro do tempo do Lima Barreto e dos dias de hoje.


Filmes faróis

O encouraçado Potemkim, de Sergei Einsenstein
Foi um dos filmes que me formaram na minha adolescência.

Roma cidade aberta, de Roberto Rosselini
Se eu tenho que escolher um filme neo-realista para essa lista, é esse.

Rocco e seus irmãos, de Luchino Visconti
É a questão familiar e a política, uma análise da luta de classes incrível.

A guerra acabou, de Alain Resnais
A questão da ética na política já estava toda aqui.

Hiroshima mon amour, de Alain Resnais
Eu fui da Geração Paissandu, e esse filme conjugava com muita força a história íntima dos personagens e a memória da guerra.

Viridiana, de Luís Buñuel
Um filme que não é complacente com a caridade e com as classes populares.

Belle de jour, de Luís Buñuel
Para uma menina de classe média que tinha acabado de perder a virgindade, esse filme era tudo!

A regra do jogo, de Jean Renoir
Acho que é o grande filme da minha vida, é o grande retrato da vida burguesa.

Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha
Foi um filme que eu vi quando estreou, toda a minha geração recebeu o impacto desse filme.

O bandido da luz vermelha, de Rogério Sganzerla
Foi o último filme que vi antes de entrar de vez na vida clandestina e depois passar um período na cadeia. Só voltei a ver outro filme seis anos depois.

Lúcia Murat


Entrevista publicada na Filme Cultura nº 60, de julho de 2013.

Patinho feio – o negócio da animação

Um esquema eficaz de difusão comercial de filmes precisa ter um modelo de negócio bem definido e sólido para que possa se sustentar prolongadamente. Nos seus últimos anos, foram várias as vezes que Gustavo Dahl mencionou a necessidade de encontrar os modelos de negócio possíveis atualmente para os filmes brasileiros. De certa maneira, é isso que a atual política de apoio aos filmes de animação (com linhas próprias de apoio em alguns editais recentes) pretende conseguir: trata-se de um direcionamento razoavelmente claro de uma estratégia de ocupar um espaço de circulação de filmes. Não é por acaso que uma estratégia assim pode ser implantada atualmente. Isso só é possível por conta das facilidades trazidas pelo uso da tecnologia digital. Durante boa parte do século passado, os filmes de animação podiam ser classificados como patinhos feios no meio da cinematografia brasileira: dependeram exclusivamente do esforço heróico de seus realizadores e, com raras exceções, obtiveram pouca repercussão e reconhecimento. Sendo assim, mesmo que alguns filmes de alto nível tenham sido feitos, a produção não teve como manter sua continuidade. Atualmente, o antigo “patinho feio” promete virar cisne, mostrando um invejável potencial de crescimento graças a várias características - em que o acesso ao público infantil é parte fundamental, por abrir mais possibilidades para a difusão da produção, e se soma às novas formas de produção e difusão trazidas pela tecnologia digital.

Durante a maior parte do século XX, o modelo de negócio estabelecido para o cinema de animação eram os desenhos animados de Hollywood. Naquele momento, mesmo países com cinematografias mais ativas não produziam opções para esses desenhos animados (com algumas exceções notáveis, sobretudo nos países do Leste Europeu). Os cineastas de fora do esquema de Hollywood dedicados à produção de filmes de animação precisavam contar com financiamento do Estado dos seus países, ou então, como já foi dito, produziam seus raros filmes heroicamente – o que, em vários casos, possibilitou instantes notáveis de inventividade. Vale lembrar, inclusive, a produção de belos filmes de animação feitos por cineastas normalmente lembrados entre os maiores do cinema dito experimental e nem sempre associados à história dos filmes animados (como foram os casos, por exemplo, de Stan Brakhage e Marie Mencken). Mas estes eram filmes produzidos de forma independente das grandes empresas, e por isso permaneciam inacessíveis à maior parte do público por falta de difusão. Assim, durante várias décadas não havia nenhuma outra cinematografia produzindo filmes de animação em ritmo constante, só a da indústria norte-americana.

Isso não era por acaso: a produção de animações demandava um esforço trabalhoso que, se não pudesse ser sustentado em ritmo industrial, seria inevitavelmente lento. Em Hollywood, a partir dos anos 1930, o investimento nesse setor, somado à forte estrutura internacional de comércio de filmes, permitiu, como se sabe, o surgimento e consolidação da Disney Company, que com seus filmes açucarados acabou demarcando um padrão de “boa qualidade” de produção. Por outro lado, se os filmes da Disney representam o cinema americano no que ele tem de mais tradicional e careta, a força da indústria dos EUA também possibilitou a produção de alguns filmes de comédia mais furiosos já feitos, sobretudo pelo grupo que marcou os primeiros anos do setor de animação da Warner Bros – os filmes feitos por Fred “Tex” Avery, Isadore “Friz” Freleng, Charles “Chuck” Jones, Robert Clampett e outros nas décadas de 30 e 40 -, mas também em produções dos anos seguintes que eram claramente influenciadas por aquele grupo (como os desenhos do personagem Pica-pau) ou mesmo produzidas por eles separadamente (como a Pantera Cor-de-Rosa, que Friz Freleng produziu, o período de Tom&Jerry dirigido Chuck Jones e, acima de todos, os incríveis filmes de Tex Avery para a MGM entre o final dos anos 1940 e meados da década seguinte). Quando se afirma que esses filmes dependiam de uma estrutura industrial, isso significa que seus realizadores recebiam salários para produzir; tinham material disponível regularmente; tinham certeza (na verdade, obrigação) de produzir filmes que seriam imediatamente distribuídos pelo mundo afora. E tinham inclusive alguns colaboradores de alto nível produzindo no mesmo ritmo: cada um dos filmes da Warner ganhava uma trilha original composta e regida por Carl Stalling, enquanto os da MGM, fossem os de Avery ou os da dupla Hanna&Barbera, contavam com trilhas compostas por Scott Bradley; além disso, é conhecido o alto nível das dublagens dos filmes da Warner, feitas quase solitariamente por Mel Blanc - responsável por dar voz a personagens como Pernalonga, Patolino e muitos outros.

Essa estrutura toda de produção e comércio, característica da penetração do cinema dos EUA no mundo, permitiu que os desenhos animados de Hollywood marcassem a memória de uma era do cinema e possibilitou também, que nos anos seguintes, a partir do final dos anos 1950, a produção migrasse rapidamente para a televisão. Essa mudança de contexto provocou também uma mudança de modelos de negócio – o que, nas décadas seguintes, permitiu alguma transformação no panorama e o aparecimento de produções feitas fora dos EUA. Já não se tratava mais de exibir filmes curtos antecedendo longas em sessões para o grande público, tal como acontecera com boa parte das produções das décadas anteriores. Se os ainda raros filmes de animação de longa metragem da indústria (os “desenhos animados”) focavam sobretudo o público infantil, a chegada da televisão intensificou isso consideravelmente. O público infantil sempre demonstrou interesse em animações e em rever seguidamente os mesmos filmes, ou variações dos mesmos – ou seja, era o foco ideal para uma indústria. Sua tolerância permitia inclusive que a realização do processo de desenhos não fosse tão cuidadosa, feita quadro-a-quadro, o que simplificava a produção dos filmetes. Se Hollywood já trazia de décadas anteriores essa estrutura para manter a hegemonia dos espaços, a mudança de meios de difusão e a consequente definição de um novo modelo de negócios permitiu que diversos focos de produção se consolidassem nas décadas seguintes - fosse através de filmes feitos direto para a TV, ou fosse conciliando isso ao lançamento nos cinemas, mais tarde em VHS e depois em DVD. Um caso notável aqui no Brasil foi o das produções de Maurício de Sousa nos anos 1980 - mais tarde interrompidas pela crise histórica da produção audiovisual brasileira no início dos anos 1990. Mas na TV brasileira de anos passados foi possível observar também os casos de outros países que estabeleceram produções contínuas de animação distribuídas internacionalmente em canais de TV, como por exemplo os filmes da série Pingu, criada em meados dos anos 1980 em co-produção Suíça/Inglaterra. Isso continuou a ocorrer desde então: por exemplo, nos últimos anos tornou-se bastante popular a série do personagem Pocoyo, co-produção Espanha/Inglaterra, e mais recentemente a série Peixonauta, uma produção brasileira, tem obtido notável sucesso em TVs de outros países. Se Pingu era feito ainda de forma bastante artesanal em seus primeiros anos, com o uso de bonecos de massa animados quadro-a-quadro, estas produções recentes são inteiramente baseadas na tecnologia digital – o que permite uma escala de trabalho bem mais simples do que aquela necessária nas décadas em que não havia alternativa constante à produção hollywoodiana.

No entanto, novas mudanças vêm acontecendo rapidamente com os modelos de negócios. As platéias de cinema dos dias de hoje se concentram cada vez mais em menos filmes, conforme se pode perceber pelas estratégias de lançamento dos filmes mais caros, com números de cópias inimagináveis décadas atrás – em que eram vendidos muito mais ingressos, como se sabe. Se as pessoas vão menos ao cinema e, quando vão, procuram ver os mesmos filmes, Hollywood soube se adaptar para esse modelo de comércio “para toda a família” desde meados dos anos 1980. Esse direcionamento amplo logo foi bem realizado pelos filmes de animação, sobretudo depois da parceria estabelecida entre a Disney e a empresa Pixar, com a produção do primeiro Toy Story (lançado em 1995) – cujo nível de sofisticação (não apenas técnico) demorou alguns anos a ser igualado mesmo na indústria norte-americana e acabou se tornando o modelo do que veio a se estabelecer entre os mais bem sucedidos lançamentos cinematográficos de animação. Se o grande público das salas de cinema ficou ainda mais concentrado e permanece afeiçoado ao modelo hollywoodiano, abrindo raras brechas para exceções eventuais aqui e acolá, e o espaço das TVs vem pouco a pouco se tornando mais plural com os efeitos da Lei 12.485, hoje um novo modelo de negócios surgiu para se somar ao mercado de DVDs ou, mais provavelmente, tomar o lugar dele: estou falando, evidentemente, da difusão dos filmes através de downloads pela internet.

Antes os filmes podiam ser vistos em telas de salas de cinema; depois, nas telas dos aparelhos de TV; agora, com o fortalecimento dos novos modelos de negócio, os filmes podem ser vistos nas telas de computadores, tablets e celulares, seja através de sites como o youtube ou a partir de aplicativos diversos que podem ser comprados nos sites das grandes corporações. Assim, já é possível que pais interessados em mostrar novos “desenhos animados” para seus filhos baixem em seus tablets um aplicativo como, por exemplo, o PlayKidTV. Este aplicativo, apresentando um trem comandado pelo cachorrinho Lupi, traz em seus “vagões” várias séries de filmes de animação produzidas no Brasil (em certos casos, em co-produções internacionais), como A Galinha Pintadinha, Meu Amigãozão, Luan Cometinha, Pequerruchos ou os palhaços Teleco e Teco - todas elas com vários episódios disponíveis para download, nos quais tratam de transmitir cantigas tradicionais e mensagens ecológicas para entreter os pirralhos. Além da programação dos canais de TV (que ainda são o mais popular dos meios de difusão da produção audiovisual – sobretudo os canais abertos), também estes espaços de difusão criados pela difusão on-line estão na mira dos atuais incentivos à produção.  Esses novos modelos ainda precisam mostrar solidez diante do dilema da sustentação financeira, já habitual a tudo que se relaciona à Internet e, mais ainda, a tudo que se relaciona com produção de filmes no Brasil. Mas, tanto por serem novos (com o potencial de substituir os DVDs a curto prazo) como por poderem chegar diretamente ao público infantil, tradicionalmente mais aberto aos filmes brasileiros, são modelos que parecem promissores. Resta agora esperar para ver se, com a consolidação da atividade produtiva dos filmes brasileiros de animação, essa produção conseguirá ter outras qualidades além da sustentabilidade comercial.


Texto publicado na Filme Cultura nº 60, de julho de 2013

Libreto sincopado: vozes e ruídos do cinema de invenção brasileiro

Dos três principais elementos básicos do som no cinema – a música, as falas e os ruídos – foi a música que recebeu maior destaque na recepção aos filmes feitos nos primeiros anos da produção no Brasil. Sabemos hoje que, mesmo antes de inventarem as técnicas de gravação simultânea de som e imagem nas películas, foram comuns as projeções em que cantores dublavam ao vivo as imagens na tela – eram os chamados filmes “cantantes”. E também sabemos que um filme como Limite, celebrado como um marco do cinema de invenção brasileiro, apresentava um diálogo contínuo entre suas imagens e a trilha sonora escolhida pelo diretor Mário Peixoto (apresentando compositores notáveis da arte moderna européia, como Erik Satie e Claude Debussy). Desde então, o uso inventivo da música sempre foi um aspecto notado e celebrado em diversos filmes – no seu livro “O som no cinema brasileiro”, Fernando Morais da Costa fez um minucioso levantamento de algumas das principais inovações que determinados músicos (como Remo Usai e Rogério Duprat) apresentaram em parceira com diversos cineastas.

O uso expressivo de ruídos para compor ambientes ou sincopar as narrativas, por sua vez, passou a ganhar espaço nos filmes graças ao trabalho do sonoplasta Geraldo José, já comentado em outro texto dessa mesma edição. Neste caso, embora José já tivesse feito outros trabalhos no cinema, foi somente com Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, que seu trabalho ganhou maior destaque – mais de três décadas após os filmes cantantes e Limite.

O terceiro elemento fundamental do som de cinema é a voz humana. Na imensa maioria dos casos, é o primeiro elemento a ser montado, assim como é o que conduz e elucida os enredos através de diálogos e narrações, quase sempre obedecendo ao padrão do sincronismo labial e de outros aspectos importantes para dar a impressão de realidade.

Sem desmerecer as muitas inovações no uso de músicas e ruídos, foi na relação entre o uso da voz gravada e a crítica da “impressão de realidade” que se desenvolveu a corrente mais inovadora esteticamente da cinematografia brasileira. Se, por um lado, até hoje o que há de mais comum é o uso convencional de vozes – em sincronismo, seguindo os padrões ditos “industriais”, ou em narrações em off com dramaticidade contida – alguns filmes fundamentais da nossa cinematografia se caracterizaram fortemente pelo uso, digamos, transtornado do registro vocal.

O exemplo mais célebre é evidentemente o dos filmes do baiano Glauber Rocha. Se já foi bastante comentado o uso de uma narração cantada em cordel no filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, é preciso notar que o uso expressivo e não-realista da narração em off de Terra em Transe (que foi longamente analisado por Ismail Xavier no livro Sertão Mar e por Morais da Costa) foi na verdade uma primeira experiência ainda tímida do cineasta numa seara em que se aprofundou nos filmes seguintes. Se em Terra em transe a voz do personagem Paulo Martins, criada pelo ator Jardel Filho, era excessiva e desequilibrada em sua poesia militante (de forma coerente com todo o filme), ali já poderia ser percebido o que mais tarde ficaria evidente nos outros trabalhos de Glauber Rocha: as vozes “em off” não se contentam em se manter “em off”, elas invadem e reinterpretam a narrativa – um trabalho que, dali para diante, o cineasta reservaria para si próprio. Assim, já em Câncer - um filme em que, até por razões técnicas, o uso do som quebra inteiramente qualquer sugestão de realidade, já que as vozes foram gravadas com uma ligeira distorção – em determinado momento a voz de Glauber Rocha intervém na cena e participa dela, provocando insistentemente um ator em quadro. Ele retomou esse procedimento de intervenção radical na cena filmada em outras ocasiões nos anos seguintes, como num registro documental do filme Jorjamado no cinema. Depois de Câncer, em alguns dos seus filmes seguintes como Claro e A Idade da Terra, a voz do cineasta ganhou novo estatuto e, ao invadir a narrativa sem qualquer pudor, tratava de representar e explicar o projeto integral do filme – eventualmente aos berros, invertendo o papel tradicional com as imagens, que passavam a parecer então serem elas os comentários ao discurso do autor. No seu curta-metragem Di GlauberNinguém assistirá ao enterro formidável da sua última quimera, somente a ingratidão, essa pantera, foi sua companheira inseparável, a importância da voz e da narração de Glauber Rocha é radicalizada: entre sambas, choros e batuques, o filme só existe e se constrói a partir do seu discurso multitonal, fragmentado e não-linear, que celebra e defende, com sua conhecida veemência poética e acústica, a importância do pintor recém-falecido Di Cavalcanti.

Se boa parte das análises sobre os filmes da geração marginalista atenta para a recorrência dos gritos e das falas exasperadas nas bandas sonoras, o uso expressivo do som nos filmes desse grupo marcado pelo desejo de invenções radicais não se ateve a este clichê expressivo. O hoje clássico O bandido da luz vermelha, de Rogério Sganzerla, também foi diversas vezes analisado pela sua inovação narrativa, por fazer uso de dois narradores à moda dos programas sensacionalistas de rádio. Mas não foi apenas neste primeiro longa que Sganzerla inovou em relação ao uso do som. Se já em O bandido da luz vermelha o recurso da dublagem era apresentado de forma não-realista, paródica, este procedimento foi radicalizado em filmes como Nem tudo é verdade e O signo do caos. No primeiro filme, a presença do personagem estrangeiro (Orson Welles) sugeria que o recurso à perda de sincronia labial remetia ao universo da dublagem de estrangeiros; e, ao mesmo tempo, indicava a presença da precariedade chanchadesca no projeto de gênio wellesiano. Já em O signo do caos, toda a construção sonora parece se desvincular da imagem para afirmá-la como um espaço maldito, destrutivo – tal como o seu antifilme se apresenta.

Nos seus dois outros filmes sobre a passagem de Orson Welles pelo Brasil, Sganzerla fez uso de um método narrativo inteiramente baseado nos recursos da fala: tanto em Linguagem de Orson Welles quando em Tudo é Brasil, a linha narrativa foi dada pelos documentos sonoros utilizados, como trechos dos programas radiofônicos que Welles fez antes, durante e depois de sua estadia no país. Em Tudo é Brasil, um diálogo entre ele e Carmem Miranda no qual são apresentados os instrumentos usados pelos sambistas se tornou uma investigação histórica sobre a formação de um imaginário nacional nos moldes da ditadura varguista. Neste caso, a narração em off ganhou novo sentido por sua origem como documento histórico, permitindo ao filme a realização dessa montagem crítica.

O uso irônico das dublagens não foi uma exclusividade de Sganzerla – mais tarde, filmes de Carlos Reichenbach (como O império do desejo), Ivan Cardoso (em O escorpião escarlate) e Guilherme de Almeida Prado (em A hora mágica) procederam de maneiras parecidas em determinadas cenas. Os mesmos cineastas também fizeram uso do recurso à narrativa radiofônica, cada um à sua maneira – no caso de Cardoso e Almeida Prado, nestes mesmos filmes mencionados. Já Reichenbach, por sua vez, no prólogo de Audácia!, ou A fúria dos desejos (feito em parceria com Antonio Lima), fez uma bem-humorada “homenagem” ao recurso dos narradores em dupla de O bandido da luz vermelha. Ao final, depois de mostrar uma entrevista com José Mojica Marins, a voz do próprio Reichenbach apresenta a voz de Sganzerla em um depoimento sobre Mojica – cujo cinema, conforme é dito, representa “o homem brasileiro, boçal e recalcado”. Reichenbach também fez uso eventual da presença da sua “voz do autor” em alguns dos seus filmes seguintes, como em Alma Corsária e Falsa Loura. Mas seu uso mais expressivo desse recurso foi em Extremos do prazer, numa cena em que, ao som da Cavalgada das Valquírias de Richard Wagner, um dos personagens, um dramaturgo, apresenta, inicialmente com a voz do próprio ator, o universo dos seus colegas de enredo - ao final da cena, a voz do personagem é trocada pela voz do próprio Reichenbach, que assim apresenta o projeto estético do seu filme, apresentado como forma de revelar seu próprio universo (“quero mostrar o corpo para falar do espírito”); coisa que é sugerida pela imagem ao final do plano, quando este personagem pega um espelho e aponta para a câmera, que revela a presença do diretor – cuja voz então grita “ok, corta!”.

Não foram esses os únicos cineastas da geração marginalista a desenvolver idéias pouco convencionais em relação ao som. Já foi bastante comentado, por exemplo, o procedimento de Ozualdo Candeias em A Herança, filme em que o Hamlet shakespeareano ganha uma versão rural na qual os personagens não têm voz humana, tendo todas as suas falas substituídas por sons de animais (exceto o célebre “To be or not to be”). No seu livro, Fernando Morais da Costa analisa também os casos dos filmes de Andrea Tonacci, como Bang-Bang, e sobretudo dos de Julio Bressane, como O Anjo Nasceu e A família do barulho, entre outros, apontando o uso expressivo dos silêncios e da trilha sonora. Além deles, vale lembrar também os trabalhos de Jairo Ferreira em alguns dos seus filmes realizados em Super-8, como O vampiro da cinemateca e O insigne ficante. Nestes filmes, o cineasta e crítico apresentou um procedimento interessante na sua narração em off, feita por ele próprio. Assim, desenvolvem-se princípios de narrativas de ficção, calcadas em imagens muitas vezes registradas de forma documental - e a narração de Jairo Ferreira embaralha tudo isso explicitamente, misturando sem pudor as idéias ficcionais, os registros em forma de diário e os comentários de crítica e história não-oficial do cinema. É preciso observar, de todo modo, que a própria precariedade técnica dos registros em Super-8 levou vários realizadores a inventar narrações em off bastante invulgares para seus filmes – foi o caso, por exemplo, dos filmes de Edgard Navarro feitos na bitola, como Alice no país das mil novilhas.

Entre outros cineastas que experimentaram novas formas de elaborar os registros sonoros vocais – como a multiplicação de vozes em alguns dos documentários de Joel Pizzini ou a repetição obsessiva e fragmentada nos filmes de Carlos Adriano – há sobretudo o caso de Arthur Omar, cujo interesse pelo uso expressivo da banda sonora o levou inclusive a centrar no assunto um dos seus filmes mais conhecidos, O Som ou O tratado de harmonia. Neste curta (cujo trabalho de criação sonora já foi devidamente esmiuçado pela pesquisadora Guiomar Ramos em sua dissertação de mestrado), Omar logo rompe com a idéia de sincronia entre som e voz ao mostrar um técnico com seu microfone, enquanto a banda sonora nos apresenta sons diversos de uma orquestra e ruídos que não aparecem em quadro, além de uma breve voz em off. Depois, um ator recita com voz solene e ecoante alguns versos da tragédia Édipo Rei, de Sófocles, para que em seguida uma voz em off nos sugira que, caso fosse outra a atmosfera terrestre, feita de gás hélio as vozes se tornariam mais finas e esganiçadas, impedindo qualquer chance de criar a ambientação necessária ao espetáculo trágico. O ator respira então um pouco do gás mencionado, que assim o deixa com uma voz tão esganiçada como sugere a narração – então, quando o ator repete um trecho do texto de Sófocles, ele se torna ridículo. Mais ao final, uma nova voz em off (entre tanta usadas no filme) apresenta em tom emocionado e pessoal um possível projeto estético do filme (“eu quero tudo que não é onipotência, eu quero escancarar a fragilidade”). No entanto, a voz é feminina – e em seguida, ao se iniciarem os créditos, o filme revela o nome do seu diretor, quebrando a possibilidade de associação imediata e acrítica entre a voz e o autor (algo que o filme subverte desde o princípio, com sua diversidade de falas em off com vozes não identificadas).


Tendo em vista essa “tradição de rupturas” no uso das vozes, é tão curioso quanto revelador observar o conservadorismo comodista presente tanto na feitura quanto na recepção da maior parte dos filmes recentes. Se a narração em off, na maior parte das vezes em que foi usada no cinema, permitiu trazer um aspecto reconfortante de distanciamento da ação, no cinema brasileiro do princípio da década isso se tornou um procedimento padronizado. A despeito do alto nível técnico que o trabalho na área sonora ganhou com a implementação das tecnologias digitais, as inovações estéticas se fizeram presentes, por ironia poética, sobretudo na seara do documentário. Nas raras exceções entre as ficções, o trabalho passou praticamente despercebido, como se pode ver pela recepção dada aos filmes mais recentes já citados aqui.


Texto publicado na Filme Cultura nº 58, de janeiro de 2013