08/04/2009

+ O Signo do Caos (2003)

Soaria simplista sugerir que é somente por se tratar do último longa-metragem do realizador que O Signo do Caos tem uma atmosfera tão agônica. Na verdade, o tom de agonia, tão evidente neste último filme, esteve presente em boa parte da obra de Sganzerla, inclusive em seus filmes mais solares, como A Mulher de Todos (1969). No entanto, em O Signo do Caos o sentimento agônico ganhou um rosto simbólico de contorno preciso. Não é preciso conhecer as trajetórias – nem a do gênio norte-americano nem a do realizador latino-americano – para perceber e compreender a natureza da dor que atravessa o filme. O último retorno a Welles e seu It’s All True serviu como McGuffin para trazer à tona o que em outros filmes mantinha-se submerso: o que interessava a Sganzerla era mostrar a relação entre o gênio artístico e a censura, fosse política ou econômica.

Não era por acaso, portanto, que encontrou seu espelho em Welles, o artista genial cuja carreira foi abortada pela indústria, após dois filmes polêmicos e fracos de bilheteria, mais uns tantos projetos abortados e acontecimentos míticos. “É preciso tirar o cinema do quarto de brinquedos” é uma frase lembrada no filme – e para isto acontecer seria preciso inventar um outro cinema. Não por acaso, o realizador dizia que O Signo do Caos era um antifilme. A criação de tais cinemas tende a ser abortada pela indústria, pela censura financeira ou pela política, e tanto o americano Welles quanto o brasileiro Sganzerla souberam disso – ambos foram, em seu tempo e seu lugar, jovens promissores. Através do espelho de Orson Welles, estrangeiro que, sendo parte de um projeto colonialista (como se sabe, It’s All True e a ida de Welles fizeram parte do programa de política da boa-vizinhança de Roosevelt), para Sganzerla representou a arte incompreendida pela boçalidade reinante.

Assim, O Signo do Caos parece retornar a um certo ponto da história do cinema para ali encontrar um caminho abandonado e por ele seguir e avançar. É, a seu modo, um filme sem igual – um cinema como o cinema poderia vir a ser, caso seguisse outros caminhos. Não seria equivocado dizer que o cinema de O Signo do Caos está décadas à frente do que se produz nos dias de hoje – mas não bastariam décadas para que o grosso da produção alcançasse o fluxo de idéias de O Signo do Caos, simplesmente porque não é mais este o caminho (em termos narrativos, imagéticos, sonoros) que o grosso da produção segue. Encenador de inventividade incomparável, Sganzerla fez assim uma obra sobre o fracasso do projeto de invenção de uma arte, sendo este próprio filme a realização única desta arte.

Talvez os filmes que se fazem possam não vir a saber do que o cinema pôde ser naquele momento, no esquema mais marginal existente dentro de uma cinematografia nacional de periferia. Isto não diminui em nada a força dessa obra, gerada por uma vontade de apreensão de um país, de apreensão de uma cultura feita a partir da imposição de outras culturas, de apreensão da vida de seu personagem e de representação do ponto de crise de seu realizador. Ao contrário, este enigma que guarda O Signo do Caos pode vir a ser benigno. Talvez um dia se possa retornar a este ponto crítico – e então este filme poderá ser tão estimulante quanto já é perturbador.


Texto publicado pela associação responsável pelo Festival de Cinema Brasileiro de Paris em outubro de 2005. Trata-se de uma versão extendida de outro texto já publicado neste arquivo.