Ainda existe controvérsia sobre a volta do uso do termo
“chanchadas” para caracterizar a nova safra de comédias de grande sucesso de
difusão – após as originais chanchadas dos anos 50 e 60 e as pornochanchadas
nos anos 70, temos as neochanchadas ou globochanchadas. Mesmo que seja estranho
esse uso amplo de um termo (“chanchada”) que, justamente por ser tão vago,
acaba se tornando indefinível, talvez seja possível caracterizar esses
conjuntos de filmes dentro da produção através da relação, diferente e até
oposta em cada época, entre humor e erotismo. Se esse elemento era muitas vezes
insinuado nas chanchadas e se tornou fundamental (ao menos em intenção) nas
comédias eróticas, agora se tornou praticamente proibido. De toda maneira, nos
três momentos se impuseram modelos de filme com regras bem claras.
Muito já se escreveu sobre a oposição apresentada em Carnaval Atlântida entre as pretensões
do produtor Cecílio B. De Milho e a realização final de uma chanchada. No
entanto, nem sempre é apontado que essa oposição pode ser compreendida de duas
maneiras um pouco diferentes entre si: numa interpretação mais disseminada, o
projeto do produtor representa um modelo industrial, sisudo e conservador,
inviável para um país tão desigual e desorganizado, enquanto o modelo vencedor
é aquele que consegue potencializar o valor dessas desigualdades e requebrados
graças à música e ao humor. Visto de um ponto de vista mais desconfiado, o
projeto do produtor De Milho representaria um cinema movido principalmente por
uma forte ambição estética – que fracassa diante de um contexto de desinteresse
por tudo que não for carnavalesco. Ao final, cabe ao produtor De Milho sonhar
que o próximo projeto poderá ser feito conforme seus planos – e manter o humor
em alta. Seu sonho era filmar uma versão da história de Helena de Tróia. Ao que
se saiba, um filme assim ainda não foi feito no Brasil (ao contrário dos EUA,
Itália e Inglaterra). Mas é curioso lembrar que em 2007, mais de 50 anos depois
de Carnaval Atlântida, Julio Bressane
fez um dos seus melhores filmes a partir da história de Cleópatra, outra
personagem histórica transformada em mito feminino do ocidente.
Visto a partir da primeira interpretação mencionada, Carnaval Atlântida representava a defesa
de um cinema anti-industrial, inteiramente aberto à inventividade chanchadesca.
Visto através da segunda intepretação proposta, trata-se de um diagnóstico
pouco otimista. Novamente, podemos desconfiar se o ambiente da chanchada
brasileira é de fato tão aberto assim à inventividade – ou se quem fez o filme
apontava ali um ponto de divórcio, talvez sem solução, entre a ambição estética
e a viabilidade econômica do cinema brasileiro. Desde então, os vários casos de
exceção a essa regra de divórcio mais a confirmam do que corrigem. José Carlos
Burle, diretor de Carnaval Atlântida,
tinha projetos bem diferentes para o estúdio cinematográfico que ajudou a
criar, mas “tristezas não pagam dívidas”, conforme já lembrava o título do seu
segundo longa, o primeiro musical da Atlântida.
Esse divórcio entre a ambição estética e os esquemas de
produção, entre as regras da arte e as demandas do mercado, pode ser percebido mais
tarde numa circunstância decisiva do ciclo de filmes chamado de Cinema
Marginal, aquele produzido entre meados dos anos 1960 e os primeiros anos da
década seguinte. Os raros sucessos de bilheteria entre os filmes marginalistas foram
os que definiram um subgênero: o cinema
cafajeste – aquele que, feito por parte do grupo paulista dos cineastas, se
diferia dos demais filmes marginalistas por não tratar as convenções com
desprezo, mas com humor e ironia agressiva; filmes como O bandido da luz vermelha, As
libertinas, O Pornógrafo e A mulher de todos. Destes, dois foram
dirigidos por Rogério Sganzerla – que, no entanto, após este último, A mulher de todos (que acabou sendo o
maior sucesso de bilheteria de sua carreira, segundo Helena Ignez), reorientou
completamente sua carreira a partir da experiência radical da produtora Belair,
que montou com Bressane no Rio de Janeiro.
O que há de misterioso e revelador neste episódio é o
seguinte: por que Sganzerla, que havia feito dois filmes de razoável sucesso de
venda de ingressos, trocou em definitivo esse modelo por outro? É certo que
seria preciso considerar aí em que medida o projeto da Belair manteve a crença
de chegar ao grande público como “a nova chanchada”, por mais que a
radicalização de recusa narrativa dos filmes indique o contrário. Mas ao longo
dos anos seguintes a produção da pornochanchada se estabeleceu tanto em São
Paulo quanto no Rio de Janeiro. É certo que o repertório de vulgaridade
incomodava não apenas a burguesia mais sofisticada, mas também qualquer um que
não aceitasse os diversos preconceitos reforçados pela maioria daqueles filmes;
no entanto, eram filmes que se baseavam sobretudo no humor e no erotismo. Ou
seja, elementos que já estavam presentes em O
bandido da luz vermelha e em A mulher de todos.
Quem veio a fazer essa relação voltar a existir foi Carlos
Reichenbach, anos depois, quando aceitou a proposta de Antonio Galante (que
havia sido co-produtor de A mulher de
todos) para dirigir A ilha dos
prazeres proibidos - título, como se sabe, inspirado no filme de Sganzerla.
Vale lembrar que, pouco tempo antes de aceitar a proposta de Galante,
Reichenbach também havia feito declarações totalmente céticas sobre as
possibilidades inventivas no gênero da pornochanchada (numa reportagem da
revista Visão de 1976, ele chegou a afirmar que aderir à pornochanchada seria
“uma atitude de entrega”). Pois acabou sendo neste filme e em Império do desejo que Reichenbach, tal
como Sganzerla havia feito, voltou a unir humor e ambição inventiva. Se no caso
destes seus filmes podemos supor que a relação com as exigências do público
pelo padrão já conhecido enfim transcendia o mal-estar presente tanto em Carnaval Atlântida quanto em A mulher de todos, cabe registrar também
que Império do desejo foi o último
filme de Reichenbach em que predominou o tom de comédia. Ao longo das décadas
seguintes, com todos os altos e baixos da sua carreira, o único herdeiro do
marginalismo que continuou se calcando no humor satírico e na relação irônica
com o repertório vulgar foi Ivan Cardoso.
Se agora as comédias voltaram a se tornar o principal filão
da produção brasileira em termos de boa difusão junto ao público, isso
aconteceu a partir de uma reorientação radical dos interesses que movem o
público ao cinema. Uma discussão interessante sobre estas comédias recentes foi
proposta por Jean-Claude Bernardet num texto publicado no seu blog, no qual
dizia que o filme De pernas pro ar 2
“é um filme atual que trata de problemas que angustiam boa parte da classe
média como: o trabalho da mulher, a relação da mulher que trabalha com o
marido, os filhos e a casa”, comparando ele a Carnaval Atlântida e afirmando que “se o filme não abordasse
comicamente questões do seu interesse, o público não teria sido tão numeroso”
(o texto pode ser lido neste link: http://jcbernardet.blog.uol.com.br/arch2013-04-07_2013-04-13.html). A fala de Bernardet
provocou uma resposta publicada por Raul Arthuso na Revista Cinética, em que o
crítico observou que, por ser “um representante do centro do sistema de
produção (de) hoje, projeto nascido com o destino de ser grande e batizado para
o sucesso com todas as armas aprendidas com a indústria americana de cinema”, De pernas pro ar 2 “institucionaliza os
valores conservadores do bem-estar social” (texto disponível aqui: http://revistacinetica.com.br/home/jean-claude-bernadet-e-as-comedias/).
Arthuso tem razão em apontar o aspecto fortemente
conservador do filme, mas vale a pena voltar ao filme para rever um aspecto
fundamental da relação que produtores e diretores atualmente têm com relação à
produção voltada “para o grande público”. Trata-se justamente da relação que o
filme tem com o humor e o erotismo. Como a maior parte das comédias de grande
sucesso nos últimos anos, De pernas pro
ar 2 se calca na performance da sua estrela – neste caso, Ingrid Guimarães.
Ao longo desta última década, graças ao talento de cada estrela e a outros
fatores eventuais, essa estratégia tem funcionado comercialmente em dezenas de
filmes, de Os Normais a Se Puder, Dirija!, passando por Os penetras e Minha mãe é uma peça. Alguns destes filmes tiveram resultados mais
interessantes (como os dois Se eu fosse
você ou Até que a sorte nos separe)
outros nem tanto – mas o sucesso nas bilheterias e demais circuitos de difusão
tem sido notável e constante. Ou seja, novamente graças à estratégia de colar a
câmera no grande comediante (tal qual nas chanchadas), alguns filmes
brasileiros conseguiram se fazer conhecidos pelo público. Mas as exigências de
mercado, como já é bem sabido, são diferentes das regras da arte – e o
erotismo, que se escondia nos duplos sentidos das chanchadas e aparecia no meio
das pornochanchadas, ficou recalcado neste cinema “popular” (como observou Andrea Ormond em outro texto
publicado na revista Cinética sobre o mesmo De
pernas pro ar 2, disponível aqui: http://revistacinetica.com.br/home/de-pernas-para-o-ar-2-de-roberto-santucci-brasil-2012/). E o que apresenta o filme do diretor Roberto Santucci e
da produtora Mariza Leão? Apresenta uma personagem plena de libido –
inteiramente destinado ao trabalho, que não por acaso é o de vender diversas
marcas e tamanhos de vibradores e consolos. Alice, a personagem de Ingrid
Guimarães, dedica-se com paixão desvairada ao trabalho, a ponto de enganar o
marido em inúmeras ocasiões – o prazer sexual só existe para ela no universo do
trabalho, como o filme mostra de forma bastante ostensiva. Nesse segundo filme
da série, Alice tem a oportunidade de terminar seu casamento (em que sua
relação com o marido é totalmente desprovida de tesão e baseada em mentiras) e
estabelecer uma nova relação amorosa com um homem fortemente ligado ao seu
ambiente de trabalho – ou seja, alguém que poderia penetrar no espectro do
desejo dela. Alice repudia a nova relação e reata os laços com o marido, sem
que isso represente nenhuma nova carga de tesão no casamento; ao contrário, no
final do filme ela já volta a projetar uma viagem a Paris que será novamente
dedicada ao seu gozo, ou seja, seu trabalho. Alice não pode ceder ao erotismo
que ela mesma anuncia, porque seu tesão é todo focado no sucesso profissional –
ou seja, em alcançar seu público... Sendo assim, De pernas pro ar 2 não trata
apenas dos “problemas que angustiam boa parte da classe média”, mas também da
relação que seu público está disposto a estabelecer – e da sua postura resignada
diante dessas exigências. Ampliando o dito de Bernardet: talvez, se o filme não
abordasse comicamente as questões do seu interesse e não acabasse com qualquer
vestígio de erotismo, o público não teria sido tão numeroso. É a regra do jogo,
atualmente.
Talvez então a forma mais
justa de separar os filmes brasileiros recentes seja a partir da classificação
indicativa: não mais entre filmes “de mercado” e filmes “de festivais”, mas
entre os de indicação etária para maiores de 18 anos e os de “censura livre”.
Hoje, com raras exceções, praticamente só filmes de “censura livre” entram no
circuito de difusão de larga escala das salas de cinema no Brasil – os outros
têm uma difusão bem mais complicada (inclusive pelas TVs a cabo e abertas). Há
aí algum espaço para um cinema crítico e até mesmo inventivo diante dessa
restrição, inexistente décadas atrás? Possivelmente, isso dependeria de novas
formas de fazer os filmes “para maiores de 18 anos” (ou quase) circularem de
fato, não apenas em casos excepcionais. Pode ser que também seja preciso
desarmar alguns discursos pré-estabelecidos de ambos os lados: seja acerca de
regras pretensamente inquestionáveis para estabelecer boa relação com um
público amplo, seja a desqualificação completa de qualquer filme que pretenda firmar
esta relação (sem que isso implique na restrição aos filmes que não se originam
deste tipo de ambição). Talvez assim seja possível encontrar novamente algum
espaço de movimento mais firme, algum grau de invenção.texto publicado na edição 61 da revista Filme Cultura, lançada em dezembro de 2013.