21/12/2013

Quem dá mais?

O riso e o desejo de seduzir o público


Ainda existe controvérsia sobre a volta do uso do termo “chanchadas” para caracterizar a nova safra de comédias de grande sucesso de difusão – após as originais chanchadas dos anos 50 e 60 e as pornochanchadas nos anos 70, temos as neochanchadas ou globochanchadas. Mesmo que seja estranho esse uso amplo de um termo (“chanchada”) que, justamente por ser tão vago, acaba se tornando indefinível, talvez seja possível caracterizar esses conjuntos de filmes dentro da produção através da relação, diferente e até oposta em cada época, entre humor e erotismo. Se esse elemento era muitas vezes insinuado nas chanchadas e se tornou fundamental (ao menos em intenção) nas comédias eróticas, agora se tornou praticamente proibido. De toda maneira, nos três momentos se impuseram modelos de filme com regras bem claras.

Muito já se escreveu sobre a oposição apresentada em Carnaval Atlântida entre as pretensões do produtor Cecílio B. De Milho e a realização final de uma chanchada. No entanto, nem sempre é apontado que essa oposição pode ser compreendida de duas maneiras um pouco diferentes entre si: numa interpretação mais disseminada, o projeto do produtor representa um modelo industrial, sisudo e conservador, inviável para um país tão desigual e desorganizado, enquanto o modelo vencedor é aquele que consegue potencializar o valor dessas desigualdades e requebrados graças à música e ao humor. Visto de um ponto de vista mais desconfiado, o projeto do produtor De Milho representaria um cinema movido principalmente por uma forte ambição estética – que fracassa diante de um contexto de desinteresse por tudo que não for carnavalesco. Ao final, cabe ao produtor De Milho sonhar que o próximo projeto poderá ser feito conforme seus planos – e manter o humor em alta. Seu sonho era filmar uma versão da história de Helena de Tróia. Ao que se saiba, um filme assim ainda não foi feito no Brasil (ao contrário dos EUA, Itália e Inglaterra). Mas é curioso lembrar que em 2007, mais de 50 anos depois de Carnaval Atlântida, Julio Bressane fez um dos seus melhores filmes a partir da história de Cleópatra, outra personagem histórica transformada em mito feminino do ocidente.

Visto a partir da primeira interpretação mencionada, Carnaval Atlântida representava a defesa de um cinema anti-industrial, inteiramente aberto à inventividade chanchadesca. Visto através da segunda intepretação proposta, trata-se de um diagnóstico pouco otimista. Novamente, podemos desconfiar se o ambiente da chanchada brasileira é de fato tão aberto assim à inventividade – ou se quem fez o filme apontava ali um ponto de divórcio, talvez sem solução, entre a ambição estética e a viabilidade econômica do cinema brasileiro. Desde então, os vários casos de exceção a essa regra de divórcio mais a confirmam do que corrigem. José Carlos Burle, diretor de Carnaval Atlântida, tinha projetos bem diferentes para o estúdio cinematográfico que ajudou a criar, mas “tristezas não pagam dívidas”, conforme já lembrava o título do seu segundo longa, o primeiro musical da Atlântida.

Esse divórcio entre a ambição estética e os esquemas de produção, entre as regras da arte e as demandas do mercado, pode ser percebido mais tarde numa circunstância decisiva do ciclo de filmes chamado de Cinema Marginal, aquele produzido entre meados dos anos 1960 e os primeiros anos da década seguinte. Os raros sucessos de bilheteria entre os filmes marginalistas foram os que definiram um subgênero: o cinema cafajeste – aquele que, feito por parte do grupo paulista dos cineastas, se diferia dos demais filmes marginalistas por não tratar as convenções com desprezo, mas com humor e ironia agressiva; filmes como O bandido da luz vermelha, As libertinas, O Pornógrafo e A mulher de todos. Destes, dois foram dirigidos por Rogério Sganzerla – que, no entanto, após este último, A mulher de todos (que acabou sendo o maior sucesso de bilheteria de sua carreira, segundo Helena Ignez), reorientou completamente sua carreira a partir da experiência radical da produtora Belair, que montou com Bressane no Rio de Janeiro.

O que há de misterioso e revelador neste episódio é o seguinte: por que Sganzerla, que havia feito dois filmes de razoável sucesso de venda de ingressos, trocou em definitivo esse modelo por outro? É certo que seria preciso considerar aí em que medida o projeto da Belair manteve a crença de chegar ao grande público como “a nova chanchada”, por mais que a radicalização de recusa narrativa dos filmes indique o contrário. Mas ao longo dos anos seguintes a produção da pornochanchada se estabeleceu tanto em São Paulo quanto no Rio de Janeiro. É certo que o repertório de vulgaridade incomodava não apenas a burguesia mais sofisticada, mas também qualquer um que não aceitasse os diversos preconceitos reforçados pela maioria daqueles filmes; no entanto, eram filmes que se baseavam sobretudo no humor e no erotismo. Ou seja, elementos que já estavam presentes em O bandido da luz vermelha e em A mulher de todos.

Quem veio a fazer essa relação voltar a existir foi Carlos Reichenbach, anos depois, quando aceitou a proposta de Antonio Galante (que havia sido co-produtor de A mulher de todos) para dirigir A ilha dos prazeres proibidos - título, como se sabe, inspirado no filme de Sganzerla. Vale lembrar que, pouco tempo antes de aceitar a proposta de Galante, Reichenbach também havia feito declarações totalmente céticas sobre as possibilidades inventivas no gênero da pornochanchada (numa reportagem da revista Visão de 1976, ele chegou a afirmar que aderir à pornochanchada seria “uma atitude de entrega”). Pois acabou sendo neste filme e em Império do desejo que Reichenbach, tal como Sganzerla havia feito, voltou a unir humor e ambição inventiva. Se no caso destes seus filmes podemos supor que a relação com as exigências do público pelo padrão já conhecido enfim transcendia o mal-estar presente tanto em Carnaval Atlântida quanto em A mulher de todos, cabe registrar também que Império do desejo foi o último filme de Reichenbach em que predominou o tom de comédia. Ao longo das décadas seguintes, com todos os altos e baixos da sua carreira, o único herdeiro do marginalismo que continuou se calcando no humor satírico e na relação irônica com o repertório vulgar foi Ivan Cardoso.

Se agora as comédias voltaram a se tornar o principal filão da produção brasileira em termos de boa difusão junto ao público, isso aconteceu a partir de uma reorientação radical dos interesses que movem o público ao cinema. Uma discussão interessante sobre estas comédias recentes foi proposta por Jean-Claude Bernardet num texto publicado no seu blog, no qual dizia que o filme De pernas pro ar 2 “é um filme atual que trata de problemas que angustiam boa parte da classe média como: o trabalho da mulher, a relação da mulher que trabalha com o marido, os filhos e a casa”, comparando ele a Carnaval Atlântida e afirmando que “se o filme não abordasse comicamente questões do seu interesse, o público não teria sido tão numeroso” (o texto pode ser lido neste link: http://jcbernardet.blog.uol.com.br/arch2013-04-07_2013-04-13.html). A fala de Bernardet provocou uma resposta publicada por Raul Arthuso na Revista Cinética, em que o crítico observou que, por ser “um representante do centro do sistema de produção (de) hoje, projeto nascido com o destino de ser grande e batizado para o sucesso com todas as armas aprendidas com a indústria americana de cinema”, De pernas pro ar 2 “institucionaliza os valores conservadores do bem-estar social” (texto disponível aqui: http://revistacinetica.com.br/home/jean-claude-bernadet-e-as-comedias/).



Arthuso tem razão em apontar o aspecto fortemente conservador do filme, mas vale a pena voltar ao filme para rever um aspecto fundamental da relação que produtores e diretores atualmente têm com relação à produção voltada “para o grande público”. Trata-se justamente da relação que o filme tem com o humor e o erotismo. Como a maior parte das comédias de grande sucesso nos últimos anos, De pernas pro ar 2 se calca na performance da sua estrela – neste caso, Ingrid Guimarães. Ao longo desta última década, graças ao talento de cada estrela e a outros fatores eventuais, essa estratégia tem funcionado comercialmente em dezenas de filmes, de Os Normais a Se Puder, Dirija!, passando por Os penetras e Minha mãe é uma peça. Alguns destes filmes tiveram resultados mais interessantes (como os dois Se eu fosse você ou Até que a sorte nos separe) outros nem tanto – mas o sucesso nas bilheterias e demais circuitos de difusão tem sido notável e constante. Ou seja, novamente graças à estratégia de colar a câmera no grande comediante (tal qual nas chanchadas), alguns filmes brasileiros conseguiram se fazer conhecidos pelo público. Mas as exigências de mercado, como já é bem sabido, são diferentes das regras da arte – e o erotismo, que se escondia nos duplos sentidos das chanchadas e aparecia no meio das pornochanchadas, ficou recalcado neste cinema “popular” (como  observou Andrea Ormond em outro texto publicado na revista Cinética sobre o mesmo De pernas pro ar 2, disponível aqui: http://revistacinetica.com.br/home/de-pernas-para-o-ar-2-de-roberto-santucci-brasil-2012/). E o que apresenta o filme do diretor Roberto Santucci e da produtora Mariza Leão? Apresenta uma personagem plena de libido – inteiramente destinado ao trabalho, que não por acaso é o de vender diversas marcas e tamanhos de vibradores e consolos. Alice, a personagem de Ingrid Guimarães, dedica-se com paixão desvairada ao trabalho, a ponto de enganar o marido em inúmeras ocasiões – o prazer sexual só existe para ela no universo do trabalho, como o filme mostra de forma bastante ostensiva. Nesse segundo filme da série, Alice tem a oportunidade de terminar seu casamento (em que sua relação com o marido é totalmente desprovida de tesão e baseada em mentiras) e estabelecer uma nova relação amorosa com um homem fortemente ligado ao seu ambiente de trabalho – ou seja, alguém que poderia penetrar no espectro do desejo dela. Alice repudia a nova relação e reata os laços com o marido, sem que isso represente nenhuma nova carga de tesão no casamento; ao contrário, no final do filme ela já volta a projetar uma viagem a Paris que será novamente dedicada ao seu gozo, ou seja, seu trabalho. Alice não pode ceder ao erotismo que ela mesma anuncia, porque seu tesão é todo focado no sucesso profissional – ou seja, em alcançar seu público... Sendo assim, De pernas pro ar 2  não trata apenas dos “problemas que angustiam boa parte da classe média”, mas também da relação que seu público está disposto a estabelecer – e da sua postura resignada diante dessas exigências. Ampliando o dito de Bernardet: talvez, se o filme não abordasse comicamente as questões do seu interesse e não acabasse com qualquer vestígio de erotismo, o público não teria sido tão numeroso. É a regra do jogo, atualmente.

Talvez então a forma mais justa de separar os filmes brasileiros recentes seja a partir da classificação indicativa: não mais entre filmes “de mercado” e filmes “de festivais”, mas entre os de indicação etária para maiores de 18 anos e os de “censura livre”. Hoje, com raras exceções, praticamente só filmes de “censura livre” entram no circuito de difusão de larga escala das salas de cinema no Brasil – os outros têm uma difusão bem mais complicada (inclusive pelas TVs a cabo e abertas). Há aí algum espaço para um cinema crítico e até mesmo inventivo diante dessa restrição, inexistente décadas atrás? Possivelmente, isso dependeria de novas formas de fazer os filmes “para maiores de 18 anos” (ou quase) circularem de fato, não apenas em casos excepcionais. Pode ser que também seja preciso desarmar alguns discursos pré-estabelecidos de ambos os lados: seja acerca de regras pretensamente inquestionáveis para estabelecer boa relação com um público amplo, seja a desqualificação completa de qualquer filme que pretenda firmar esta relação (sem que isso implique na restrição aos filmes que não se originam deste tipo de ambição). Talvez assim seja possível encontrar novamente algum espaço de movimento mais firme, algum grau de invenção.



texto publicado na edição 61 da revista Filme Cultura, lançada em dezembro de 2013.