26/12/2009

Listas de prediletos

2020

- o argentino "La Flor" (que, com suas 14 horas, já vale pra fazer essa lista ter dez filmes...)
- o palestino "O paraíso deve ser aqui"
- os americanos "O caso Richard Jewell" e "A cor que caiu do espaço"
- e os curtas brasileiros "República" e "O colírio do Corman me deixou doido demais".
E a obra audiovisual mais incrível lançada nesse ano foi o blu-ray do show "João Gilberto in Tokyo", registrado em 2006.


2019

- Dor e glória
- The mule
- Morto não fala
- Nós
- Parasita
- Era uma vez em Hollywood
- Border
- Ad astra
- O irlandês (pela meia-hora final)


2018

- The other side of the wind
- Antes que tudo desapareça
- As boas maneiras
- Deixe a luz do sol entrar
- Jogador número um
- Abaixo a gravidade
- Roda gigante
- First reformed
+
- Cristiane Brasil e seus amigos numa lancha, defendendo seu direito de ser ministra




2017


- Twin Peaks, o retorno
- Na vertical
- Poesia sem fim
- Fragmentado
- Na praia à noite sozinha
- O ornitólogo

Também curti ver:
- Gabriel e a montanha
- Eu sou o Rio

e rolou a alegria de ver ficar pronta e linda uma produção da Duas Mariola, dirigida e produzida pelos meus sócios: Não devore meu coração.



2016

- A academia das musas
- Elle
- O abraço da serpente
- A bruxa
- Julieta
- Meu amigo hindu
- Creepy


dos lançamentos brasileiros, além desse do Babenco, meus preferidos entre os que vi pela primeira vez esse ano foram os seguintes:
- Sinfonia da necrópole
- Maresia
- Para minha amada morta
- Exilados do vulcão



2015

pela ordem:
- Adeus à linguagem
- A pele de Vênus
- Mad Max
- Mia madre
- Timbuktu
- A visita
- Divertida mente
- She's funny that way


+ dois brasileiros que ainda não entraram em circuito:
- O animal sonhado
- Teobaldo morto, Romeu exilado

Mas o melhor filme que vi nesse ano que passou é um curta-metragem de 2011, talvez o melhor filme da década até agora:
No, do Abbas Kiarostami.
Pra quem ainda não viu:
https://www.youtube.com/watch?v=jxpKOlQ4L4I




2014



longas:
- Maps to the stars (Cronenberg)
- Jauja (Alonso)
- Nervos de aço (Capovilla)
- Jersey Boys (Eastwood)
- Já visto, jamais visto (Tonacci)
- Teorema zero (Gilliam)
- Jodorowsky's Dune (Pavich & Jodo)
- Bacanal do diabo (Ivan)
- La jalousie (Garrel)
- e o episódio "KD" (André Sampaio, no final do longa que produzimos, "Rio em chamas")

bordas:
- O Passinho do Faraó + O Passinho do Faraó, Clipe oficial (MC Bin Laden)
- Love never felt so good (Michael Jackson feat. Justin Timberlake) (melhor filme de zumbi do ano)
- Alemanha 7 x 1 Brasil (J. Low e F. Scolari) (segundo melhor filme de zumbi do ano)

pior cineasta do ano: João Santana



2013



- Passion
- La danza de la realidad
- Doce amianto
- O estranho do lago
- A batalha do passinho
- O que se move
- Django livre
- This is the end
- Na carne e na alma
- Invocação do mal
- Em trânsito



2012

- Tabu
- O som ao redor
- Cosmópolis
- Habemus papam
- Esse amor que nos consome
- Killer Joe
- Caminho para o nada
e os curtas:
- Piove, il film di Pio
- Dizem que os cães vêem coisas




2011



- As praias de Agnes
- A pele que habito
- Caverna dos sonhos perdidos
- O palhaço
- Além da vida
+ dois que eu já tinha mencionado no ano anterior e estrearam esse ano: Riscado e Cópia fiel.
+ um que ainda não entrou em circuito: O homem que não dormia.
+ outro a estrear: O Gerente.
+ um curta: Quando morremos à noite.




2010


- O que resta do tempo
- Ervas daninhas
- Toy Story 3
- The ghost writer
- Avatar


uma lista dos prediletos vistos fora do circuitão:


- Copie Conforme
- Riscado
- Um dia na vida
- Histórias extraordinárias




2009


1 -  A troca
2 - Bastardos Inglórios


e ainda:
- Milk
- Abraços partidos
- Up – Altas aventuras
- Gran Torino
- Arraste-me para o inferno
- É proibido fumar
- Se nada mais der certo




2008

- Serras da desordem
- Falsa loura
- Encarnação do demônio
+
- Sweeney Todd - O barbeiro demoníaco da Rua Fleet
- A Espiã
- Fim dos tempos


+ festivais:
- Diário dos Mortos
- O Fim da Picada
- Deixa ela Entrar
- Na Cidade de Sylvia
- Sonata de Tóquio
- Aquele Querido Mês de Agosto.


+ curtas e média:
- Ocidente
- Benzedeiras de Minas
- Estafeta




2007
(publicada na Contracampo)

Os prediletos, em ordem alfabética:
1. Anjos Exterminadores, de Jean-Claude Brisseau
2. Antes Só do Que Mal Casado, de Peter e Bobby Farrelly
3.
4. Em Busca da Vida, de Jia Zhang-Ke
5. Império dos Sonhos, de David Lynch
6. Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho
7. O Passado, de Hector Babenco
8. Tropa de Elite, de José Padilha (por ser o fenômeno do ano)




2006
(publicada na Contracampo)

1. Brasília 18%
O Crocodilo
O Céu de Suely
O Plano Perfeito
Os Infiltrados
Reis e Rainha


2. 2046
Amantes Constantes
Caché
Crime Delicado
Eu Me Lembro
Munique
Volver




2005
(publicada na Contracampo)

- O signo do caos
- Um filme falado
- O fim e o princípio
- Menina santa
- Penetras bons de bico
- Terra dos mortos
- Menina de ouro
- Desejo e obsessão (apesar da cópia digital de péssima qualidade)
e também
- Capitão Zum e os anais da república




2004
(publicada na Contracampo)

Kill Bill
O Prisioneiro da Grade de Ferro
Má Educação
Peixe Grande
Garotas do ABC
La Ciénaga (O Pântano)
Antes do Pôr-do-sol


+ dois fascinantes e problemáticos:
Dogville
e A Vila


+ Tom Jobim – As Nascentes (TV Cultura)
+ Olhos de Vampa, inédito nos cinemas e direto para DVD.




2003
(publicada na Contracampo)

Hollywood Ending - Dirigindo no Escuro
Mystic River - Sobre Meninos e Lobos
Nelson Freire
T3 – O Exterminador do Futuro 3: A Rebelião das Máquinas
Houve uma Vez Dois Verões
Lisbela e o Prisioneiro
Femme Fatale
Bônus: Conto de Verão
Filme-acontecimento do ano: Tiros em Columbine




2002
(publicada na Contracampo)

- Mulholland Dr.
- Madame Satã
- Edifício Master
- Fale com Ela
- Lucia e o Sexo
- Ônibus 174
- O Invasor
- Os Excêntricos Tenenbaums
mais três diversões:
- Minority Report
- Tá Todo Mundo Louco
- Fantasmas de Marte


2001
(publicada na Contracampo)

1. Câmera, do Cronenberg
2. Yi Yi, do Yang
3. Tabu, do Oshima
4. AI - Inteligência Artificial, do Spielberg
5. Onde a Coruja Dorme, da Márcia Derraik e do Simplício Neto
6. Os Outros, do Amenábar
7. Vive l'Amour, do Tsai Ming-liang
8. Cecil Bem Demente, do John Waters



2000
(publicada na Contracampo)

Estorvo
Amélia
Dançando no Escuro
Caubóis do Espaço
O Mundo de Andy



1999
(publicada na Contracampo)

1. Santo Forte
2. O Primeiro Dia
3. Dois Córregos
4. Os Idiotas
5. Tudo Sobre Minha Mãe
6. De Olhos Bem Fechados
7. Hana-Bi
8. Toy Story 2
9. Desconstruindo Harry
10. A Eternidade e um Dia




favoritos do Festival do Rio - 2001
(publicada na Contracampo)

1 - Memórias do Cárcere, do Nelson Pereira, O Homem Nu, do Roberto Santos e Apocalypse Now, do Coppola,
2 - Lucía e o sexo, do Julio Medem, Desejo Insaciável, da Claire Denis e os filmes de Edgar Navarro,
3 - Os Demônios Batem à Porta, de Jiang Wen,
4 - Concorrência Desleal, do Ettore Scola, Insônia, do Dario Argento, Hora da Partida, do Tsai Ming-liang, A Ilha, de Kim Ki-Duk, Millenium Mambo, do Hou Hsiao-hsien, Coruja, da Márcia Derraik e do Simplício Netto
5 - A se considerar que não vi, até o momento, os badalados Rohmer, Godard, Lynch, Egoyan..




prediletos do Festival do Rio-2000
(publicada na Contracampo)

1. O Padre e a Moça
2. O Armário
3. No Quarto da Vanda




Filmes brasileiros prediletos estreados entre o início de 1990 e o final de 2006.
(publicada no Contra-Blog, da Contracampo)

Não necessariamente nessa ordem:

Serras da Desordem
O Signo do Caos
O Fim e o Princípio
Alma Corsária
Madame Satã
O Prisioneiro da Grade de Ferro
O Invasor
Lisbela e o Prisioneiro
Santo Forte
Brasília 18%
O Vigilante
Amélia
Nelson Freire
O Céu de Suely
Edifício Master
Tudo É Brasil
Crime Delicado
Amores
Eu me lembro
Coração Iluminado


também os curtas:


O Palhaço Xupeta
Ação e dispersão
Juvenília
Um Sol Alaranjado
A Menina do Algodão
Polêmica
Meu Cumpadre Zé Ketti
Vinil Verde


E ainda os médias:


Onde a Coruja Dorme
O Galante Rei da Boca
Futebol 3
Anchietanos
E a série  Capitão Zum.




uma lista de longas brasileiros preferidos dos últimos dez anos (1997-2007):
(publicada no Contra-Blog, da Contracampo)

em primeiro
- Serras da desordem
- O Signo do Caos
+
- O fim e o princípio
- O prisioneiro da grade de ferro
- Madame Satã
- Brasília 18%
- Lisbela e o prisioneiro
- Amélia
- Garotas do ABC
- O Invasor
- Nelson Freire
- Santo Forte



Uma lista de filmes brasileiros prediletos:
(publicada na edição dos "Dez Mais do Cinema Brasileiro" da Contracampo)

Nenhuma lista pode dar conta do afeto por diversas obras. Pior ainda, qualquer lista que peça tão pequeno número de filmes acabará por estabelecer critérios sempre discutíveis, ficando sempre a dúvida entre lembrar do filme "definitivo" que cresce na memória ou o filme "menor" que nos ganhou totalmente por uma sessão. Acabo por buscar os filmes mais marcantes na memória, o que nunca é confiável, e só desse jeito a lista já passou um bocado do estipulado, com todos os esquecimentos que ela inevitavelmente tem. Mas não daria para diminuir para dez. Para quatro ou cinco talvez, mas não para dez.


Rio Zona Norte + O Amuleto de Ogum + El Justicero
O Padre e a Moça + Couro de Gato + Macunaíma
A Mulher de Todos + O Bandido da Luz Vermelha
Di + Terra em Transe + Deus e o Diabo na Terra do Sol
As Amorosas
Limite (se possível, com orquestra ao vivo, maestro...)
Império do Desejo + Filme Demência + Extremos do Prazer
Tudo Bem + Toda nudez será castigada
Os Trapalhões nas Minas do Rei Salomão
Carnaval Atlântida
Nem Sansão, Nem Dalila + O Homem do Sputnik
Meu Nome é... Tonho
São Paulo S.A + Procissão dos Mortos + O Caso dos Irmãos Naves
O Rei da Noite + Pixote + O Beijo da Mulher-Aranha
O Assalto ao Trem Pagador
Xica da Silva
Bang-bang
O Despertar da Besta
Histórias que Nossas Babás não Contavam
Cabra Marcado para Morrer + Santo Forte
Amélia




Lista de filmes brasileiros "do coração"
( publicada na Filme Cultura em janeiro de 2011)

Minha lista tem lado A e lado B, como os velhos LPs:


Lado A – A mulher de todos, 1969, Rogério Sganzerla. Carnaval Atlântida, 1952, José Carlos Burle. Flamengo paixão, 1980, David Neves. O império do desejo, 1981, Carlos Reichenbach. O bandido da luz vermelha, 1968, Rogério Sganzerla. Rio Zona Norte, 1957, Nelson Pereira dos Santos. Serras da desordem, 2006, Andrea Tonacci.


Lado B – Alma corsária, 1993, Carlos Reichenbach. O amuleto de Ogum, 1974, Nelson Pereira dos Santos. O bom marido, 1978, Antonio Calmon. O fim e o princípio, 2005, Eduardo Coutinho. O padre e a moça, 1966, Joaquim Pedro de Andrade. O palhaço Xupeta, 1996, André Luís Sampaio e Carlos Sanchez. Por dentro do cinema novo – minha viagem, Editora Nova Fronteira, 1993, Paulo César Saraceni (Esse livro é filme!). Terra em transe, 1967, Glauber Rocha.



21/11/2009

Os sentimentos mais vivos - sobre Hannah e suas irmãs




É comum que se diga que a carreira de Woody Allen como diretor tem vários pontos altos e baixos, frequentemente alternando uns e outros – e também não é raro que se afirme que o auge de sua carreira foi durante um certo período dos anos 1980. Eu concordo com isso: mesmo que muitos outros filmes bons não sejam dessa fase, foi nessa época que as criações dele pareceram ter chegado ao melhor ponto de harmonia e força. Foi também o período em que realizou uma sequência de produções que deu as características definitivas do seu estilo criativo no que ele tem de melhor. Entre Broadway Danny Rose (1984) e A era do rádio (Radio Days, 1987), ele não apenas consolidou e aprofundou seu já bastante conhecido personagem urbano-neurótico, como também mostrou-se o melhor cronista de sua sociedade – o que já era possível perceber em Noivo neurótico, noiva nervosa (Annie Hall, 1977) – e teve os melhores resultados na construção do universo de seus personagens: a classe média um tanto intelectual e liberal do leste dos Estados Unidos que compõe Hannah e suas irmãs (e, na verdade, já era o ambiente do mencionado Noivo neurótico, noiva nervosa); ou a classe média/baixa que sofre com as contas no final do mês, presente em Broadway Danny Rose, A rosa púrpura do Cairo (The Purple Rose of Cairo, 1985) e na parte do núcleo familiar de A era do rádio.

Tem um trecho que eu acho bastante curioso em Hannah e suas irmãs, é o momento em que Holly, a irmã desajustada, resolve abandonar a carreira de atriz para se tornar escritora de romances e, no seu primeiro trabalho, cria uma trama que tem personagens inspirados na irmã Hannah e seu marido. Tendo como pano de fundo as consequências do relacionamento entre ele e sua cunhada Lee, essa subtrama apresenta um tema que viria a ser recorrente nos filmes de Allen: o questionamento do direito que o artista tem de usar como inspiração as histórias das pessoas que lhe são próximas. Mais tarde essa preocupação se tornou o motivo central de Desconstruindo Harry (Deconstructing Harry, 1997) — neste caso, sendo resolvido de forma bizarramente efusiva, com uma salva de palmas dos personagens para o autor, que parecia assim redimido de sua falha de caráter graças ao talento artístico. Esse mesmo tema também levou Allen mais tarde a fazer um questionamento sobre o caráter duplo do artista — que era visto positivamente em Tiros na Broadway (Bullets Over Broadway, 1994), quando o gângster ignorante se revela um talentoso dramaturgo, e numa versão mais negativa em Poucas e boas (Sweet and Lowdown, 1999), em que o grande guitarrista ao final percebia que só tinha trazido sofrimento à pessoa que amava.

Com um desempenho admirável de todo o seu elenco, Hannah e suas irmãs mostra uma ciranda de amores dentro do núcleo familiar que o título explicita, num retrato em que os personagens apresentam bastante relevo. Todo o círculo gira em torno de Hannah, a irmã que é dominadora em todas as relações que estabelece, embora seja aparentemente frágil. É incrível como ela parece intimidar as pessoas com seu aspecto sofrido, humilde, sempre generoso. Talvez, entre os muitos papéis que Mia Farrow interpretou nos filmes de Allen, este seja o personagem que use mais claramente a sua fragilidade física e a força do seu olhar para impor um domínio em suas relações sociais – ela nunca foi tão assustadora quanto aqui. É por isso que seu marido, Elliot, sente a força desse domínio e age de forma covarde e resignada, preferindo o conforto ao confronto após a breve pulada de cerca com a irmã mais jovem e vital de Hannah, Lee. Esta, por sua vez, sabe fazer do momento de dor uma oportunidade de mudança e afirmação que lhe permite dar fim a uma relação já desgastada com um homem mais velho. Holly, a irmã mais instável e ao mesmo tempo mais livre e curiosa, com o passar dos anos aprende a domar o próprio temperamento e a insegurança. Ao final estabelece uma relação estável com Mickey, o ex-marido de Hannah que entrara numa profunda crise existencial, da qual só conseguiu sair ao se fascinar por um filme dos irmãos Marx. Esse personagem é o que traz ao filme seus melhores momentos de humor — não por acaso é interpretado pelo próprio Allen, que sempre foi um excelente comediante — e aprofunda de modo bastante interessante o seu personagem “neurótico” que já era conhecido do público desde os seus primeiros filmes e já ganhara contornos mais precisos em Noivo neurótico, noiva nervosa, Manhattan (1979) e Memórias (Stardust Memories, 1980).

Fechando o painel das relações, é no retrato das brigas de casal dos pais já idosos das três irmãs que fica clara a perspectiva que o filme constrói: a de um mundo em que as mulheres são forças devastadoras diante de homens imaturos; e que é um lugar em que, apesar de tudo, é possível apostar na permanência das relações amorosas, desde que haja paciência e compreensão com as falhas do outro. Este enredo familiar poderia ter se tornado um mero jogo de marionetes em outra ocasião, com personagens menos vivazes e atores menos sintonizados, mas Hannah e suas irmãs consegue delinear seus personagens com tanta força no seu tom agridoce que toda essa movimentação, de certo modo, parece ganhar vida. É assim que esse filme se torna uma das obras mais encantadoras da longa carreira de Woody Allen.


Texto publicado no catálogo da mostra A Elegância de Woody Allen, realizada em novembro de 2009 nos CCBBs de Rio de Janeiro e São Paulo.

20/11/2009

Entrevista com Nelson Pereira dos Santos




DC – Com relação à sua formação cinematográfica, Nelson... perto de onde você morava tinha muito cinema?

NPS – Bem, eu nasci no Brás. Em frente à minha casa, quando eu nasci, tinha um cinemão, um cinema enorme, que meu pai freqüentava, durou muitos anos...E aí eu morei perto da cidade, quer dizer, tinha a praça da Sé, que tinha vários cinemas, o Largo João Mendes tinha outro, o famoso Recreio, com filmes B e seriados, juntava a garotada toda... e a Cinelândia ali, né, Avenidas Ipiranga e São João, não era também muito longe, tudo era perto.

DC – Toda a nossa geração foi educada pelo cinema americano, a gente só via filme americano quando era criança.

NPS – Mas eu também só vi filme americano. Foi no final da guerra que surgiram os filmes europeus. Antes, no tempo do Estado Novo, tinha a produção alemã, que era distribuída por uma distribuidora alemã, a UFA, que tinha um cinema, se chama hoje Art-Palácio, era o UFA, e foi construído pelos alemães.

DC – Aqui no Rio ou em São Paulo?

NPS – São Paulo. Eu acho que o daqui também, porque tinha o mesmo emblema, a mesma marca.

DC – E passava os filmes nazistas?

NPS – Passava os filmes dos nazistas, era... mas eu não via, não me lembro. Mas segundo uma grande figura da distribuição, ele diz que comprou um filme do Eisenstein, o... como se chama? Não é o Ivan o Terrível...

RG – Alexandre Nevski?

NPS – Isso, Alexandre Nevski... ele comprou uma cópia do Alexandre Nevski, botou a marca UFA na cabeça e exibiu no cinema alemão, ganhou um bom dinheiro. Quer dizer, podia ser mentira dele, era muito chutador... Mas não existia muito, era cinema americano ou cinema americano... havia, no começo dos anos trinta, alguma coisa já do cinema mexicano, cinema argentino, mas eram coisas muito raras. Depois da guerra é que o cinema mexicano começou a aparecer, o cinema argentino... pelo menos em São Paulo.

DC – Você fala do cinema mexicano, seriam os filmes do Cantinflas, no caso?

NPS – Tinha o Cantinflas, mas junto dele tinha todo o cinema do melodrama...

DC - E o cinema neo-realista, a partir de quando você viu?

NPS – Só a partir da minha mocidade. Quando terminou a guerra eu tinha em torno de dezessete anos...

DC – E aí os filmes do Rosselini já passavam aqui...?

NPS – O esquema foi o seguinte: até o final da guerra, só cinema americano. Durante a guerra então, puxa, os filmes de guerra americanos dominavam...

DC – E quais eram seus prediletos?

NPS – Minha formação toda é do cinema americano, eram os grandes, Charles Chaplin, John Ford, Howard Hawks, mais tarde John Huston, vários diretores... na realidade, eu via todos os filmes, saía de uma sala e ia para outra, sitiado nos cinemas, sem parar. Na adolescência, muito western, policial, filmes B, tinha a Columbia, a Republic, eu via um atrás do outro, e os seriados maravilhosos.

RG – No livro da Helena Salem, fala-se muito do ambiente que te circundava, que seu pai assistia a muitos filmes, tinha o hábito de ir ao cinema. Em que momento você imaginou que você iria ter uma carreira de cineasta?

NPS – Acho que foi por volta de 1947, ’48... Aliás, em ’46, na escola de direito tinha um cineclube, e eu comecei a frequentar o cineclube, ’46, ’47, e começou a haver um movimento de cinema em São Paulo, o Alberto Cavalcanti foi para São Paulo, fez uma palestra, todo mundo correu para ver a palestra do Cavalcanti.

DC – Ele já estava montando a Vera Cruz na época, não?

NPS – Exatamente. E aí criou aquele clima de que cinema era possível, em São Paulo principalmente. Aí eu comecei a pensar "poxa, vou fazer cinema, meu caminho é o cinema". Eu tinha feito um pouco de teatro, meus amigos mais próximos eram pintores, são pintores ainda, e eu ficava naquela de "o cinema é a saída". O caminho clássico era a literatura, escrever, mas quando apareceu o cinema eu vi, "o caminho é por aí"...

DC – Já estava se envolvendo com o Partidão (PCB)?

NPS – Já. Eu estava no partido desde 1947.

DC – Mais ou menos na mesma época...

NPS – Um pouco antes, o Partido. O Partido, eu ainda estava no colégio, no segundo ciclo, antes de ir para a universidade.

RG – Mas a relação política foi só a partir da faculdade?

NPS – Política? Não, no colégio já tinha, eu já estava na Juventude Comunista. Mas na faculdade a atividade política era mais intensa.

RG – E logo de início você imaginou que tenderia para um cinema de conotação mais realista, com uma tentativa de filmar as classes populares e etc.? Ou de início era só um desejo de ser diretor de cinema?

NPS – Não... uma vez eu disse "Por que eu queria ser diretor de cinema? Porque queria comer as estrelas...", parafraseando Olavo Bilac... Mas a minha geração é toda impregnada dessa grande e generosa idéia que é de mudar o país... não só o cinema, toda a literatura, todos os pensadores do Brasil, em torno do século XX... Então tem toda essa combinação... O bom artista brasileiro, o grande intelectual brasileiro, são todos da esquerda. Nem todos marxistas, mas tinham um pensamento com o caminho da transformação, de acabar com os arcaísmos da sociedade brasileira, e tal... inclusive Gilberto Freyre. Agora estou lendo Sérgio Buarque, e também, rapaz, é um grande explicador do Brasil, e também tem uma proposta de transformação do Brasil. Enfim, a minha geração é toda formada nesse cadinho, aí eu fazia cinema, e mais essa influência cinematográfica do neo-realismo, uma influência mais de produção do que estética, de fazer cinema com poucos recursos, não necessitar de grandes esquemas financeiros, não precisar de estúdio, como o cinema das grandes estrelas internacionais, e fazer diretamente com o povo. Então essa regra do neo-realismo ficou valendo para uma série de cineastas do mundo inteiro, da Índia, Grécia, Brasil, Argentina, e tal...



DC – Você contou que, quando apresentou Rio quarenta graus, ele passou em alguns festivais junto do filme de Satyajit Ray, Canção da Estrada.

NPS – Isso, são da mesma geração, é do mesmo ano do filme dele, e tem aquele outro, um grego...

RG – Cacoyannis?

NPS – É, Cacoyannis... enfim, o neo-realismo criou uma grande influência nos países do chamado Terceiro Mundo, que tinham uma cinematografia incipiente, porque ele ensinou que era possível fazer cinema com poucos recursos. O que veio dar na "câmera na mão e idéia na cabeça", do Glauber.

DC – Naquele livro que você publicou com seus roteiros, você fala muito do seu aprendizado do seu primeiro para o seu segundo, do Rio quarenta graus, com um roteiro mais detalhado, para o Rio Zona Norte, que tinha um roteiro mais leve, e aí eu queria perguntar dos filmes em si, qual era a sua visão na época, o amadurecimento que você percebeu, nesse pulo do gato de um realismo à brasileira transformado numa versão pessoal do próprio cinema realista, lidando com a possibilidade de uma visão subjetiva.

NPS – Aquilo que eu conto, no tempo do Rio quarenta graus, é aquela história, eu não sabia quando ou se poderia fazer o filme algum dia... então tinha todo o tempo do mundo... podia pensar, "ah, a câmera vai ficar aqui...", aí tomava nota... fazia um roteiro de ferro, "a câmera em primeiro plano", uma nomenclatura do Alex Viany... muito engraçado, porque aí eu aprendi. Na equipe, ninguém leu o roteiro, porque o que é o roteiro? Numa indústria como a americana ou mesmo a francesa, vai fazer com que diversos setores trabalhem, a divisão de trabalho é perfeita, o roteiro vai lá para o eletricista, o chefe de maquiagem, cada um vê o que tem que fazer, reuniões de trabalho, briefing, aquela coisa toda. Eu não sou contra não, acho ótimo, mas primeiro que não tem salário para pagar tanta gente, e segundo que não tem tanta gente qualificada, agora tem, mas naquele tempo nem pensar... então eu me dei conta, é um trabalho enorme, quando eu estou escrevendo para mim mesmo. E também, roteiro, como literatura, é intragável. Para fazer um roteiro que dê gosto de ser lido você precisa ser um bom escritor. Se descrever a seqüência de um jeito literal, fica com um roteiro horrível...

DC – Aí você passou a escrever roteiros mais ‘legíveis’?

NPS – É, você pegava um roteiro, e era assim "ele entra pela esquerda, olha para a direita, o cara diz ‘bom dia’", e tal, uma babaquice total... além do mais, ninguém lê, não há nenhuma comunicação para combinar, não há bom um trabalho conjunto. Aí no Rio Zona Norte fiz um roteiro ligeiro. Mesmo no Rio quarenta graus, todos aqueles primeiros planos, teve muitas modificações, tinha que fazer, faz assim, faz assado, correndo porque vai acabar a luz... aí, no Rio Zona Norte, deixa em aberto, eu sei qual é a cena... E tem uma coisa muito importante, que é a contribuição do ator. O roteiro de ferro exige que o ator seja subordinado à câmera. Mas isso, nos tempos do cinema mudo, com aquele negócio pesado da maquiagem, da luz, era porque o plano tinha que ser aquele. Nem todos os filmes feitos assim viraram obras primas, aliás a grande maioria desapareceu. Então, o problema era aquela combinação entre a linguagem desejada e a realidade que está sendo filmada. Aí você tem outra psicologia em ação, que muitas vezes passa ser até antagônica ao diretor, o ator fica puto, vira as costas, derruba o personagem... Você tem que fazer o ator criar o personagem e filmar...Quer dizer, na minha concepção, né? E aí eu percebi, no Rio Zona Norte, deixei, "não vou escrever roteiro", era a mesma equipe, todo mundo já sabia o modo que ia filmar, um pouco diferente do Rio quarenta graus, mas era por ali...

DC – Mas e como diretor...? Porque mesmo durante o Rio quarenta graus você já tinha problemas com o Partidão, e o Rio Zona Norte já é bem distante disso, mesmo retratando o universo do samba, do Zé Ketti, de Bento Ribeiro, é bem distante dessa proposta neo-realista original. O que te levou a fazer essas opções?

NPS – Na verdade, o próprio neo-realismo já tinha se esgotado... lancei o Rio Zona Norte em 1958. Quer dizer, quando eu terminei o Rio quarenta graus, o neo-realismo já tinha ido pra cucuia... como tudo no Brasil (ri)... ainda vamos chegar a fazer filmes expressionistas...

RG – Mas o seu começo é mais ou menos na grande época das chanchadas, e você lê nos manuais de cinema que o Cinema Novo tem uma relação complicada com a chanchada, alguns textos do Glauber desconsideravam totalmente, e tal, e eu queria saber sua relação com a chanchada, antes do Rio Zona Norte e antes do Rio quarenta graus.

DC – Até porque o Rio Zona Norte era com o Otelo.

NPS – É, o Otelo fez tudo, sabia o que era a chanchada e o que era... a grande vocação do Otelo era para ser um ator chamado de "dramático", era um ator dramático. Não dá para esquecer que ele fez um filme, chamado Moleque Tião, que desapareceu, que foi o primeiro filme da Atlântida, e era sobre a vida dele. Era um filme em que ele era o personagem, realista e tal...

DC – Fez Amei um Bicheiro...

NPS – Fez... fez o segundo filme da Atlântida, Somos todos irmãos, ou coisa assim...

RG – Também Somos Irmãos. Esse filme existe ainda.

NPS – Pois é, acharam a cópia uns anos atrás, eu fui ver. Quando eu vim para o Rio, esse filme era mitológico, em 1952, eu vim para o Rio, para fazer Uma Agulha no Palheiro. E acabei ficando no Rio. Eu morava, logo que cheguei, na casa do Alinor Azevedo, grande argumentista da Atlântida, e o Alinor falava desse filme, mas a cópia estava desaparecida, não tinha mais cópia, olha só como as coisas são perdidas no Brasil. Esse filme deve ser de quarenta e... 1947, 1948, por aí. E eu cheguei quatro anos depois do filme, e já não tinha mais, ficou na história como desaparecido!...

DC – Foi encontrado agora...

NPS – Foi encontrado agora. É uma história com uma questão racial, embora tratada de uma forma fechada, um ambiente de família, e tal... vocês viram o filme?

RG – Eu conheço.

NPS – Ele é muito interessante. E o Otelo tem um personagem fantástico, é muito bom ator. Agor, a relação com as chanchadas... O livro do Glauber é um livro crítico, não é? Daquele momento das chanchadas... e evidentemente que a chanchada era um pouco o que é hoje a Rede Globo, há uma diferença, quer dizer, sem preconceitos, mas quem quer fazer um cinema que naquele tempo era chamado de ‘cinema autoral’, um cinema com uma linguagem, estrutura e propósitos, evidentemente que não vai seguir o padrão Globo. Quem conhece a história do cinema e o cinema contemporâneo tem uma ambição de criação mesmo, de originalidade, porque é fundamental na obra cinematográfica a originalidade de cada filme, o que cada um quer fazer e trabalhar. Então, havia um fosso entre os jovens que estavam começando, e logo o Cinema Novo, no começo do Cinema Novo, e os chanchadeiros, que ganhavam dinheiro, tinham uma vida boa e tal... Eu nunca tive uma relação torta com eles, sempre trabalhei muito bem, e politicamente também, na hora de defender o cinema brasileiro, eu fiz tudo para evitar que esse racha estético se estendesse à política, não podia ter um racha estético num cinema brasileiro tão debilitado, tinha que ser todo mundo do cinema brasileiro, esquece se um é assim e outro é assado, como aliás é o exemplo do cinema francês. O cinema francês se une e ninguém está discutindo se um faz comédia pastelão e o outro é um intelectual refinadíssimo, na hora de brigar estão todos juntos, porque é o interesse básico e comum. E nesse ponto então eu ficava ao lado dos chanchadeiros, que sempre foram gente interessante, gente fina... Cheguei a fazer uma chanchada, chamada Balança mas não cai, fui assistente de direção e eu acabei o filme.

DC – Você terminou dirigindo o filme?

NPS – Foi, eu acabei dirigindo.

DC – Mas esse filme foi antes do Rio...

NPS – Foi, foi antes do Rio Quarenta Graus. Eu tinha feito Uma Agulha no Palheiro como assistente, e aí veio esse, Balança mas não cai.

DC – Do Rio Zona Norte para seu próximo filme a gente já tem um momento de ruptura, que é a entrada dos cinemanovistas na jogada, você uma vez inclusive contou que não era cinemanovista, que você foi cooptado...

NPS – É, eu fui cooptado.

DC – Aí eu queria saber tua avaliação de como foi essa mudança entre a feitura do Rio Zona Norte, que foi o filme que você imaginou, até o Vidas Secas, o outro filme que você imaginou, todo esse percurso do Mandacaru... e do Boca de Ouro, que você fez com o Jece Valadão a partir de Nelson Rodrigues, eu justamente queria saber como você sentiu o impacto dessa discussão com esse grupo de jovens que estavam aparecendo.

NPS – Esse contato aconteceu por causa da proibição do Rio Quarenta Graus.Aí eu fui para a Bahia mostrar o filme, o Glauber eu conheci na Bahia, ele não lembrava disso, mas foi na Bahia, no Clube de Cinema, o pessoal do Walter Silveira, que já morreu. Tinha também Belo Horizonte, tinha a Sociedade , os mineiros tinham uma Sociedade de Estudos Cinematográficos, eram todos críticos refinados.

RG – Eles lançaram uma revista.

DC – Era quem, Gomes Leite...?

NPS – Era, o Maurício, tinha outros, vários caras muito bons, bons críticos e escritores. Tinha São Paulo, voltei para São Paulo com um filme já, proibido no Rio... no Rio de Janeiro apareceram Leon e Joaquim Pedro, no Instituto de Filosofia, o Joaquim estudava física, o Leon engenharia. O Cacá veio depois, com aquele jornal "O Metropolitano"...

RG – David Neves também...

NPS – Isso, o David...

DC – Essa turma que se reuniu no IFCS (Instituto de Filosofia e Ciências Socias da UFRJ), que tinha também o Saulo Pereira de Mello, chegou a fazer um cineclube lá, não é?

NPS – Isso... Era um movimento bastante agitado na época, e o Rio Quarenta Graus levantou aquela bandeira, da não-proibição, era época de campanha eleitoral, Juscelino, golpe, contra-golpe, e o Rio Quarenta Graus no meio disso tudo, quer dizer, houve uma grande combinação do momento político com o cinema. E começamos a nos reunir, a nos encontrar, foi muito interessante, um momento muito legal. Aí veio Rio Zona Norte e os curtas do CPC, eu trabalhei na montagem do Leon, o Ruy Guerra trabalhou na montagem do Cacá, os considerados veteranos foram trabalhar com os mais jovens.

DC – Abrindo um parêntese, você contou uma vez que se envolveu com montagem a partir de uma situação do Rio Zona Norte.

NPS – É, o montador, grande figura...

DC – Era o (Rafael) Valverde?

NPS – Não, o Valverde fez o Rio Quarenta Graus, mas no Rio Zona Norte ele não podia. Aí veio o Mario Del Ryo, um espanhol que morou na Argentina, passou pelo México... Foi na sequência da Angela Maria, eu tinha feito uma estrutura na sequência, e aí ele chegou e cortou à americana, tá-tá-tá, para ignorar o ritmo do que estava no quadro e se preocupar só com o ritmo mecânico, e não deu certo. Porque quando a Angela Maria começa a cantar, a reação do Otelo é o que interessa, não é ela começando a cantar. Porque ela vem de fora, e ele valoriza, porque o Otelo é um ator do cacete, ele valoriza... Cortando para ela ficava chinfrim, era ela cantando aquilo como ela canta qualquer coisa. O mito da Angela Maria tinha que estar nos olhos do Otelo. Aí eu falei "não, espera aí, vamos fazer isso aqui de novo", e eu refiz a sequência toda. E aí eu saquei que a montagem do filme é um infinito de opções, essa atenção que você tem que dar para o trabalho dessa combinação do ritmo interno com o ritmo externo, mecânico, essa combinação é básica. Que eu lia no Kuleshov, o grande professor de cinema da minha geração se chama Kuleshov, vocês conhecem? O Tratado... era o único que existia em espanhol, ia todo mundo com o Kuleshov debaixo do braço, e no outro braço, para alguns entendidos, o Eisenstein na montagem, os dois livros do Eisenstein, também em espanhol. Enfim... Essa trajetória, do Rio Zona Norte ao Vidas Secas...

DC – Na verdade você também montou, além dos filmes do Leon, o filme do Sérgio Ricardo, O Menino da Calça Branca, e o Barravento. A sua ligação com a nova geração era diretamente pela moviola.

NPS – Era, pela moviola e pelos papos também. Na minha cabeça eu tinha o seguinte, trabalhamos muito nisso, o caso do Rio Zona Norte foi esclarecedor, e também depois, na filmagem do Boca de Ouro, era o seguinte, que eu considerava, também com um pouco de paranóia nisso, que se não dominar os meios de realização, se não dominar a moviola, a câmera, a fotografia, o som, o cinema não vai ser descolonizado. Porque uma forma de colonização era, por exemplo, na fotografia, que tinha a fórmula da Kodak que o laboratório obedecia, você tinha que fazer como o laboratório queria, para filmar com negativo Kodak tinha que fazer isso e isso, já fazer aquilo não pode, e isso aqui também não pode. Era sempre o dono da técnica, que sempre foi o dono da criação, o diretor muitas vezes era considerado um débil mental, porque era o cara que tinha as idéias, mas o diretor não precisa saber muito da técnica, ele tem que saber que resultado ele quer alcançar, o que ele prefere, o que ele quer experimentar. E não interessa se pode ou não pode, tem que impor isso ao fotógrafo, ao cara do som, "eu quero esse resultado". "Ah, mas tecnicamente não pode", isso é desculpa esfarrapada, porque na hora, também, são essas coisas muito próprias do subdesenvolvimento, muitas vezes, competições por causa da vaidade... Mas a idéia era essa, nós precisamos conhecer os meios de realização e dominá-los. Porque havia não só o caso do Mario Del Ryo, tinha também um montador maravilhoso, Nello Melley, grande figura, argentino, e houve o caso da Vera Cruz, que só tinha montador alemão, fotógrafo inglês, pereré-pão-duro e tal... E lá era realmente a ditadura dos grandes técnicos, não podia isso, não podia aquilo... Enquanto na história do cinema brasileiro você tem uma figura como o Edgar Brazil, fotógrafo, que inventava tudo, não tinha nada que o doido do Mário Peixoto pedia que ele não fizesse. O Mário tinha, sei lá, vinte anos de idade, coisa assim, e não interessa, vai lá, se vira e faz.

DC – Você viu Limite quando?

NPS – Eu vi Limite só quando foi recuperado.

DC – Pelo Saulo Pereira...

RG – Já nos ’70.

DC – Até então era um filme mítico, não?

NPS – É, o Glauber falou "não interessa esse filme!", e tinha razão. Porque todo mundo dizia "Você não viu Limite? Você nunca vai fazer um filme tão bom quanto Limite...", e dava um ódio, cadê o filme?! "Nunca!...". Especialmente os intelectuais que não eram de cinema, os literatos e tal... Fechavam o caminho para o cinema... Mas um dia eu dei um depoimento, com um pouco de demagogia, naturalmente, mas eu disse que eu ficava com ódio do Limite, porque era sempre "o melhor filme brasileiro", mas, quando eu vi, eu disse que , realmente, é o melhor filme brasileiro! Foi assim, tomou conta...

DC – Mandacaru Vermelho e Boca de Ouro...?Até que ponto você considera trabalhos naturais em sua carreira, filmes seus? Você tem prazer em rever? Eu sei que Mandacaru... você não gosta de ver, por ser o protagonista...

NPS – (Ri) É, Mandacaru... não muito... Tem uma coisa engraçada em Mandacaru..., é um rascunho...

DC – Eu acho um filme bem interessante.

NPS – Ele é um rascunho, teria que fazer um filme em cima daquele, com atores de verdade, cenários...

DC – É um primeiro faroeste de terceiro mundo...

NPS – Mas a estrutura da história está bem montada, rola direitinho. Evidentemente que é uma produção de amadores na frente da câmera, o negócio fica meio...

DC – Já o Boca de Ouro teve uma produção bacana... Como foi essa idéia de fazer naquela época Nelson Rodrigues?

NPS – Quando o Valadão me convidou, disse "Quer fazer o Boca de Ouro?", eu falei "Vamos nessa!", e ele: "Mas você não é comunista?", "Mas o que tem o cu com as calças? Eu já deixei de ser comunista há muito tempo, vamos fazer o Boca de Ouro...".

DC – Você já não se considerava comunista, marxista?

NPS – É, eu já não estava mais, já não tinha muita relação. Eu saí em ’56 do partido, o Boca de Ouro é de ’62.

DC – E você se afastou totalmente do marxismo? A idéia de revolução já não te interessava mais nessa época?

NPS – Não, acho que não tinha mais... eu fui à Tchecoslováquia em ’56, vi tudo lá acontecendo, o degelo, derrubando a estátua do Stalin... Quer dizer, aquele caminho da revolução era um caminho burro, que ainda dava em grandes cagadas, como em ’35, então eu não estava mais nessa não. Em ’56 houve o desligamento do Partidão, e nunca mais tive contato, mas sempre respeitei.

DC – Mas, por outro lado, o pessoal do Cinema Novo ainda acreditava, ou não?

NPS – Não... Era muito heterogêneo o grupo do Cinema Novo. Quer dizer... O Leon sim, uma cabeça marxista, organizadíssimo, o Cacá não, o Jabor não, Joaquim também acreditava...

DC – Então quando você fez sua leitura do Graciliano já era uma leitura...

NPS – Já da minha experiência com o Partido, somada à experiência do Graciliano.

DC – Vidas Secas feito em ’60 seria muito diferente do de ’63...

NPS – Seria outro filme, não teria nada a ver...

DC – Não teria Luiz Carlos Barreto... (Nelson ri) Como foi essa idéia da transformação da luz, feita pelo Luiz Carlos Barreto?

NPS – Naquele tempo, branco e preto trabalhava com filtro amarelo, para evitar luz muito forte, põe o filtro, aí corta cinqüenta por cento, e o primeiro plano fica sem luz. Então o quê que faz? Tem que iluminar o primeiro plano. Os americanos usavam arcos para iluminar, o chinfrim aqui usava um rebatedor, aquela coisa de papel prateado que o ator não podia abrir o olho... E o que acontecia com as nuvens? Ficavam escuras, volumosas, lindas, no exterior, então, adoravam... Era a fotografia do Figueroa, mexicano, e aqui quem fazia era o Ruy Santos, trabalhei com o Ruy Santos no filme O Saci, ele fazia esse tipo de fotografia. Era bom fotógrafo... Então a idéia era assim, tem que fazer um deserto, não ter nuvem, uma coisa inóspita, tem que fotografar a luz do lugar... Então a única forma foi essa, o Luiz Carlos propôs a câmera com lente nua, que é uma coisa dele que vem do Cartier-Bresson, é uma coisa que, aqui entre nós, os nordestinos, o pessoal do Aruanda, foi o Aruanda que inventou essa fotografia... Mas, para dizer a verdade, eu não vi Aruanda antes de fazer Vidas Secas, e o Barreto sempre foi por aí, já no Cruzeiro, com o Jean Manzon, que também é Cartier-Bresson, e ainda tinha José Medeiros, cria uma patota, Manzon, Barreto, Zé Medeiros, Luciano Carneiro, basicamente esses, que fazem uma fotografia à maneira do Cartier Bresson, muito bem feita. E é o Cruzeiro, eu não sei se vocês viram o álbum do Barreto, eu escrevi lá que o Cinema Novo começou no Cruzeiro, o "Brasil real", a preocupação de fotografar o "Brasil real", eles todos tinham essa preocupação, e faziam isso muito bem, com essa luz. Não dá para fotografar o retirante, a criança abandonada, com requintes de iluminação, tem que fazer com a lente nua. E a rapidez, e tudo isso, criou uma escola, realmente, se estendeu. Mas aí aquela reivindicação nordestina de que o Aruanda é que começou o Cinema Novo, depois veio o Glauber, e tal, a minha posição é a seguinte, como eu fui cooptado, eu acho que cada um tem seu Cinema Novo, e é verdade, quer dizer, o Cinema Novo também começou no Rio, com Arraial do Cabo...

DC – Que é quando Mário Carneiro botou a câmera na mão.

NPS – Pois é. Tinha vários Cinemas Novos... O problema da fotografia foi esse, encontrar um resultado que pudesse passar a sensação de um espaço inóspito, com uma luz vigorosa, que é seco, mesmo...

DC – E vocês tiveram vários problemas, com laboratório e afins...

NPS – Foi, o primeiro empecilho que a gente teve foi com laboratório.

DC – Na equipe técnica você mesmo contou que tinha problemas...

NPS – É que era uma combinação, do Barreto com o Zé Rosa, o Zé Rosa era o homem da fotografia do Herbert Richers, era operador de câmera, estava habituado a trabalhar assim, então ele via e dizia "Ih, vai estourar! Não pode usar assim que vai estourar, tem que pôr um filtro...", e aí ele discutia, "não, espera aí, tem que fazer...", já havia essa resistência, que era compartilhada, lá no laboratório, pelo chefe do laboratório.

DC – O José Rosa era contra usar lente nua?

NPS – Ele duvidava, porque estava habituado a fazer da maneira tradicional, e a gente dizia "Olha, vamos tentar, quando chegarem os copiões a gente vê, se não for bom, faz de novo, mas vamos tentar...". "Não, porque não pode, porque não pode", era uma sacanagem...

DC – E aí revelou lá mesmo ou mandou para o Rio para revelar?

NPS – Não, vinha tudo para revelar. Aí aconteceu o seguinte, normalmente vinha rolo de negativo para revelar, e tirava um metro de ponta para fazer o teste. Marcava ali, o laboratório fazia o teste e dava o tempo de revelação. E a gente escrevia assim: "Tem que revelar normal, não faça testes", porque sabia que, fazendo testes, eles iam corrigir o tempo de revelação, estava estourado, então era assim, não pode fazer teste, revela normal direto. Pô, o cara não aceitava!... "Peraí, eu que sou o dono daqui!", "Não, mas tem que fazer assim", foi uma briga, até que finalmente o cara aceitou, pereré-pão-duro, e o material chegou em Alagoas, fomos ver o copião no cinema da cidade, durante o dia, entrava luz no cinema, foi horrível, não via nada, puta, que tristeza... "Ah, não, não, vamos para Maceió, ver no cinema São Luiz, e de noite, depois que acabar a sessão vamos ver o copião lá, com uma projeção boa, com tudo fechado", porra, aí foi um desbunde. Apareceu aquilo e a gente "Ah, finalmente!", foi uma batalha, rapaz...




RG – Por ocasião de uma pesquisa que a Contracampo fez sobre os filmes mais queridos do cinema brasileiro, nós publicamos um texto do Waldemar Lima da época do Deus e o Diabo na Terra do Sol, em que ele reclamava da mesma coisa, que o revelador não queria revelar daquele modo, porque seria considerada uma revelação porca, e que, desde o nível técnico de foto até a revelação, fazer um cinema que tentasse quebrar os códigos estabelecidos do cinema mais clássico era bastante difícil...

NPS – É, porque acima da estética tem a técnica da Kodak, você não pode, é aquela coisa do subdesenvolvimento apavorado diante da Técnica, e tal... Pô, tem lá os padrões, eu quero romper aqui para ter tal resultado. "Não pode!" Agora, o bundão que está lá embaixo é mais importante que o dono da Kodak, parece que ele é sócio da Kodak... Qualé, pô, deixa rolar... Mas não, tem aquela atitude de subserviência, a deificação da técnica, fica com medo de cometer algum pecado. Mas depois deu tudo certo. Mas continua dando cagada, sempre. Eu fui ver uma cópia em vídeo da Riofilme, a Maria Ribeiro tá um carvão, e por quê? Na hora de fazer a cópia da telecinagem, o marcador de luz do laboratório também não acreditou, quis compensar o fundo estourado. Então, na hora de compensar a luz, o primeiro plano fica preto.

DC – Você me contou uma vez que o negativo do Vidas Secas estava começando a perder o cinza...

NPS – É, mas está no laboratório, vai ser recuperado. O negativo original.

DC – Vai ser recuperado? O Ministério da Cultura está cuidando disso?

NPS – Não! Ministério da Cultura porra nenhuma, chega!... eu sou do tempo do Sartre, do Jean-Paul Sartre, eu contei essa história para uma jornalista francesa, ela não acreditou, e é verdade, o Jean-Paul Sartre estava no Brasil quando o De Gaulle criou o Ministério da Cultura, e foram perguntar o que ele achava, e ele disse assim "La culture n’a pas besoin de Ministre" ("a cultura não precisa de ministro"), e cortou assim. "Mas isso nunca foi publicado na França?", e ela "Não!", mas não é possível, rapaz, ele falou ali na esquina. Enterraram isso do Sartre... nisso, eu sou Sartreano.

DC – Na época o ministro francês era o Malraux, não?

NPS – Era, o Malraux. Mas eu não estou brigando com o Ministério da Cultura, isso é brincadeira... Mas essa recuperação é iniciativa da Labocine, é a Labocine quem vai fazer.

DC – E o Barreto vai cuidar da fotografia?

NPS – Na hora ele vai lá remarcar a luz... E nosso projeto é fazer o relançamento do filme, vai ser a versão do diretor de fotografia, não tem a versão do diretor? Esse vai ser o filme que tem que ter a versão do fotógrafo, "Eu fotografei assim..."

DC – É a versão do produtor, no caso...

NPS – Também, nós todos somos produtores, eu produzi também. Naquele filme ele foi mais o autor da luz. Mas até hoje tem que brigar com os caras, "Não, pelo amor de Deus...". O marcador de luz nasceu ontem, o filme tem quarenta anos, então o cara que aparece com um marcador de luz tem a mesma visão tecnocrática, imbecil, e tal...



DC – Teu longa seguinte foi El Justicero, que era um completo contraponto ao Vidas Secas, uma gozação com a turminha do Rio de Janeiro.

NPS – É a partir de um romance do João Bethencourt, é uma grande gozação.

DC – O que eu notei no artigo que eu escrevi para a Contracampo é que ele foi feito na mesma época em que os cineastas estavam fazendo filmes voltados para si, O Desafio do Saraceni, Terra Em Transe, os filmes do Domingos de Oliveira...

NPS – El Justicero é o seguinte: eu fui para Brasília em 1965, convidado pelo Pompeu de Souza e pelo Paulo Emílio para fazer o curso da escola de cinema de Brasília. Aí fui para Brasília, aconteceu aquilo tudo, os militares demitiram os professores líderes da Universidade, demitiram o Pompeu de Souza e eu saí com ele, essa história é conhecida.

DC – O Wladimir Carvalho fez um filme sobre isso, Barra 68...

NPS – Eu vi. Mas isso foi outro expurgo, comigo foi ’65, saíram duzentos, saímos todos. Então vim para o Rio, para procurar trabalho... E essa empresa de distribuição de filmes, chamada Condor Filmes, eles queriam fazer um filme. Então eu fui lá, e eles disseram "Olha, faz uma história aí, faz uma chanchada", e eu pensei "Putz, chanchada, isso não é comigo"... Aí eu saí e encontrei Leon Hirszman, e contei pro Leon, "Pô, eu tenho produtor e não tenho história, o cara quer fazer uma chanchada...", e ele "Vem cá!", me levou para uma livraria e me deu o livro do Bethencourt, e disse "Olha isso aqui, é uma comédia, eles vão gostar". Eu levei o livro no dia seguinte para o produtor, o cara leu, e dois dias depois me procurou e disse assim "Tá bom, vamos fazer", e eu fiz o filme só com o livro, nem roteiro eu fiz, fiz direto... E a equipe é composta toda pelos alunos de Brasília. A grande maioria dos alunos do primeiro curso de cinema era de cariocas...

DC – Assim como em Azyllo Muito Louco você trabalhou com alunos da UFF, não?

NPS – É, em Azyllo Muito Louco tem pessoal da UFF também. Mas todo mundo vinha de Brasília, os únicos profissionais eram o diretor de fotografia, o Hélio Silva, o Raymundo Higino, que fazia a produção, eu, naturalmente, e mais alguém talvez... No resto, eram todos alunos, assistentes, a direção de arte do Luís Carlos Ripper, um aluno brilhante, foi fantástico...

DC – Hoje em dia eu acho que o filme é muito bem-recebido, pelo menos das vezes que vi...

NPS – É, mas foi um fracasso aquele filme... Você sabe, a história desse filme é muito louca. A censura mandou cortar o todo o diálogo, o diálogo era muito besteirol, assim: "Porra, pai, você quer o quê? Cafetão não!" (uma fala do protagonista no filme). De repente na linguagem do diálogo tinha lá essas bobagens, e o pai é um general, que queria comer as mulheres que o filho arranjava (Nelson ri), muito engraçado... E ainda tem aquela brincadeira com aquela esquerda de Ipanema, o próprio personagem é uma figura especial. Mas aí a censura cortou, eu me lembro que eu mesmo fui...

DC – Depois de deixar passar, cortaram numa segunda vistoria, não?

NPS – Não, foi logo da primeira vez. Tinha que apagar o som, não precisava cortar. Era só, na hora de falar "Porra", ficar sem som... (Nelson faz mímica, como se falasse sem som). Quando o filme saiu, era assim, El Justicero, em portunhol, nem português nem castelhano, com Arduíno Colasanti e Adriana Prieto, ninguém sabia quem eram, sobrenomes estrangeiros, podia ser um filme espanhol, cubano, qualquer coisa dessas... Foi um fracasso total, ninguém entendeu o filme. Mas aí o filme foi proibido em ’68, e desapareceu do mapa, e tal... Depois eu fiquei sabendo, o pessoal da Condor Filmes me contou, que o filme estava passando em Belém, logo depois do AI-5, e um coronel foi lá e disse "Tal, e tal!", pegou o filme na cabine do cinema, fez um ofício, e o filme foi apreendido, todas as cópias. Aí abriram um inquérito na censura para saber quem é que tinha permitido aquele filme, e todas as cópias foram apreendidas, e eu fiquei sabendo depois que o negativo também tinha sido apreendido, sumiu o negativo.

DC – E hoje?

NPS – Sobrou uma cópia em 16mm, que estava em Pesaro, David Neves que tinha levado, e o David salvou o filme, porque essa cópia voltou, e a Cinemateca fez um contratipo. Ele não existe mais, existe para saber como era o filme, você vai ver, e tal... Mas é uma cópia precária. E o negativo dançou... Agora, tem uma moça que apareceu aqui há uns dois, três meses, que está fazendo doutorado em Toulouse sobre a censura em cinema no Brasil no tempo da ditadura, então ela levantou tudo, tudo, todos os meus filmes que eu tive proibidos, a idade de proibição... Eu sou o recordista do "18 anos para cima". Televisão, então, só depois de meia-noite... e os caras...(Nelson ri) Quando existia censura, porque acabou a censura... Mas ela encontrou uma carta do chefe da censura, é uma carta genial, ele respondendo ao chefe da polícia sobre o Justicero, dizia "Recebemos, e tal... Atendendo à sua solicitação, encaminhada à Segunda Sessão do Primeiro Exército, temos a informar o seguinte. O filme El Justicero foi censurado, e cortamos...O filme estava cheio de expressões anti-revolucionárias (Nelson ri)... Mas como ele tem certificado de censura, nós não podemos apreendê-lo...", e cita a lei, que nõ pode, e tal, e cita outra lei que diz a mesma coisa, e aí diz "Mas já solicitamos a modificação dessas leis!" e tal, conta toda a história, e termina assim: "Em todo caso, já tomamos as providências, mandamos apreender todas as cópias, o negativo original...", tarará-pão-duro e tal... Pô, quando ela me deu a cópia dessa carta, eu liguei para o advogado, "vem cá, tem uma coisa aqui!".. Processar a União, pô... Taquí, o cara confessa que agiu contra a lei... A pedido do exército.

DC – Garante uns três filmes nessa brincadeira!...

NPS – Aí o cara me falou "Ô Nelson, deixa de ser ingênuo, se eles abriram esses arquivos é porque os crimes que eles cometeram já estão prescritos, você não tem chance nenhuma...". "Pô, mas em todo caso...". É a história do El Justicero. O mais proibido de todos, né? Ele foi extinto, se não fosse a cópia do David em 16mm eu ia só contar o filme para vocês, nem roteiro tem, só o livro do Bethencourt...




DC – Eu me lembro que eu li a entrevista da Bundas com você, que o Ziraldo começava dizendo que você só fez filme bom, tirando El Justicero...

NPS – É, eu lembro. E ele contou também, não está na edição da Bundas, me disse "Eu estava fazendo um roteiro com o Bethencourt, e você apareceu e comprou os direitos", isso não aparece na entrevista não?

DC – Não lembro, acho que não.

NPS – De repente eles cortaram... Mas era a grande piada, com a esquerda festiva...

DC – É um tremendo contraponto àquele momento em que os diretores estão olhando para si com tanta seriedade, ElJusticero olha para a turma e zoa, El Jus é o cara que só quer saber de comer mulher...

NPS – Lê Jean-Paul Sartre, Marx e Engels...

DC – E contrata um biógrafo para escrever sobre ele...

NPS – Que se chama Lenine...

DC – El Jus... é um filme de transição para um momento mais "Brasil tropical", aquela fase de Paraty, do desbunde...

NPS – Depois de El Justicero vem Fome de Amor. Aí começou aquela temporada toda lá...

DC – Você contou que Fome de Amor também não tinha roteiro.

NPS – Nada, nada, esse foi inventado, totalmente...

DC – E foi totalmente crítico à esquerda, os maoístas...

NPS – O outro foi a partir de um livro, esse nem livro tinha, eu nem li...

DC – E como é que foi essa transição até Paraty?

NPS – Foi uma coisa que aconteceu espontaneamente, não foi procurada nem nada. O que aconteceu foi que, quando eu acabei de fazer El Justicero, o Paulo Porto me convidou para fazer o Fome de Amor, que é uma história do Guilherme Figueiredo, um conto do Guilherme Figueiredo, que eu, para dizer a verdade, mal li, mas a Laurita, minha mulher, leu e me disse assim "Se você fizer esse filme, eu me separo de você!", e eu, só de birra, "Eu vou fazer esse filme!"... Mas eu passei a bola para o Luís Carlos Ripper, o produtor foi o Paulo Porto com o Herbert Richers, aliás o Herbert foi o melhor produtor que eu tive, dava sempre carta branca. Ele tinha extrema confiança, era o produtor ideal. Aí eu passei a bola para o Ripper e ganhei uma bolsa do Departamento de Estado, fui para os Estados Unidos, passei dois meses viajando, "O Ripper vai fazer o roteiro", e tal, "Depois eu vejo, faço a supervisão do filme", me enrolei um pouco e fui para os Estados Unidos. Lá pelas tantas, eu recebo nos EUA cartas do Ripper, roteiro e tal... "O Paulo Porto odiou o roteiro que eu escrevi... o Herbert e tal...", tinha uma confusão ali no meio de campo. E eu não queria fazer o filme, digamos mais ou menos assim, estava meio esnobando. E, quando eu voltei, o Herbert me chamou e disse "Você vai fazer o filme, que eu te dou carta branca". "Mas, ô Herbert, essa história é uma babaquice, eu não sei como fazer, não quero fazer...", "Inventa qualquer coisa. Carta branca!". "Carta branca?". É um desafio, né? "Porra...". "Agora, tem que levar os atores que eu já contratei". Arduíno, Leila, ô, maravilha! Que presente...Irene Stefânia... "Agora, tem o Paulo Porto, que é o produtor... dá para compensar, né?".

DC – E só de maldade com o produtor, não tem uma fala para ele o filme inteiro, né?

NPS – Cego, surdo e mudo... Mas ele até come a mulher...

DC – Tem uma crítica muito forte ao marxismo, ao maoísmo...

NPS – É, essa "perdição ideológica"...

DC – A Irene está perdida nessa enquanto os outros vivem a vida...

NPS – Ela está nos EUA com um guru indiano, do guru indiano ela passa para o Mao Tsé-tung, ela faz essa transição sem nenhuma relação com sua existência, com sua realidade, ela fica muito perdida, dominada... É todo um jogo de personagens ambivalentes e personagens camaleônicos, o próprio Arduíno, o próprio Paulo, cego-surdo-mudo, ele é um cientista, e ao mesmo tempo era um revolucionário, poderoso, é isso e é aquilo... E tem também lá no meio a possibilidade de uma extorsão, que a menina é rica, a Irene é rica e o outro quer tomar o dinheiro dela... Enfim...Mas esse filme, quando foi exibido, tive vários amigos, aquela política da esquerda... chegou uma moça, muito simpática, para mim, quando acabou o filme, disse: "Nelson, você continua a favor da revolução?". "Mas é claro...". "Ah! Que filme lindo..." (Nelson ri). É a coisa do óbvio, da linguagem convencional, com toda aquela loucura...

DC – Em Azzylo Muito Louco você já estava muito ligado à UFF, trabalhando com alunos, não?

NPS – É. Mas o Fome de Amor já tem muita gente começando...

DC – Depois dessa fase Paraty, você volta a lidar com o imaginário popular, com o Amuleto de Ogum e o Tenda dos Milagres e mesmo no Estrada da Vida. O quê que te norteou a sair de Paraty, que na época devia ser um lugar maravilhoso?

NPS – O "aparelho" já tinha caído, na linguagem da época... (Nelson ri) Aquela coisa, Rio- Santos chegando, muita gente, não tinha mais essa tranquilidade, era realmente um exílio. Mas a história do Amuleto..., eu conto no livro...

DC – Aquela história do Jards Macalé ser o cinema brasileiro? Você sabe o que Jards sempre diz agora "Eu sou o cinema brasileiro"? "O Nelson Pereira disse que eu sou o cinema brasileiro!"...(Nelson ri)

NPS – Ele tá vivo, né? Pô, tá fazendo o maior sucesso...

DC – Tá, como nunca, tá gravando...

NPS – É, tá bom pra cacete, muito bom... Outro dia me ligou de Natal, "Pô, tô aqui, fiz um show maravilhoso...", e me conta a história do show em Natal. Deu uma entrevista, meio que misturado com o assunto do Antonio Carlos Magalhães...

DC – Quando ele resolveu falar mal do Caetano Veloso?

NPS – Eu falei "Ô Macalé, agora que você tá fazendo sucesso, não briga com ninguém. Você tem que somar, pô...". Ele é gente fina...

DC – No Amuleto... era um roteiro original seu, não?

NPS – Era. Na verdade, a base da história é Chico Santos, que foi motorista do Tenório Cavalcanti e escreveu um roteiro chamado O Amuleto da Morte, que é a história lá dos tiroteiros e tal... E como ele contava as coisas de um modo muito quente, engraçado, muito vivo, eu falei "Pô, vamos fazer esse filme!...". Mas aí vem o outro lado da história. A Laurita, minha mulher, estava estudando religiões de conversão, no Rio, na Escola de Antropologia em Niterói. E eu peguei emprestado o estudo dela. Mas eu não usei para pequisa o método acadêmico, eu chamei meu ator, Erley, que era pai-de-santo, e ele me deu todas as dicas, eu comecei a trabalhar com umbanda, e juntei as coisas, o mundo do jogo do bicho, do crime, da transgressão, o mundo do nordestino no Rio e a umbanda, a religião popular, juntei todas essas coisas... Porque o Tenório tinha usado uma fraude para dizer que ele tinha corpo fechado. Aquela história de botar um revólver com balas de festim, e a última é boa, aí ele toma do cara e derruba alguma coisa, uma jaca, e todo mundo fica dizendo que ele tem corpo fechado. E eu usei o corpo fechado mesmo. Porque quem está contando a história não sou eu, é o cantador cego. Então vale tudo, pode inventar o que quiser. Só que no final o cego também tem o corpo fechado (ri)... Mas foi um filme muito gostoso de fazer, aquele filme foi realmente um grande barato...

DC – O filme foi muito bem recebido, não?

NPS – O Amuleto...? Foi, foi muito bom... rodou o mundo inteiro, passou nos Estados Unidos...

RG – Continuando na idéia do Amuleto..., como foi o salto de público dos filmes de Paraty para ele? Qual era o número de cópias que cada um tinha?

NPS – Ah, os filmes de Paraty tinham uma cópia, duas, no máximo cinco cópias... aquele, o Azyllo Muito Louco, por exemplo... Não, teve o francês (Como Era Gostoso Meu Francês), que teve um lançamento fantástico. Mas foi um filme proibido, cortadíssimo, ficou proibido um ano ou dois. E depois, quando foi exibido com os cortes, ele fez um público incrível, foi muito bom...Depois do Francês, fiz o Quem é Beta. Aí volta um pedaço em Paraty, filmei também um pedaço aqui em Jacarepaguá e na Barra. Mas o Francês também foi uma experiência interessante de trabalho, eu gosto daquele filme. Mas você tinha perguntado?

RG – Da mudança. Porque esses filmes me parecem filmes um pouco de tese, e o Amuleto... me parece um retorno às raízes populares...

DC – Porque antes há uma ligação com o ideal antropofágico, Oswald de Andrade...

NPS – É que antes eu estava fazendo filmes com uma pequena turma, simbólicos, metafóricos, parará-pão-duro, curtindo Paraty e aquelas coisas todas ali, aí teve o Francês, que foi o mesmo produtor do Justicero, essa Condor Filmes, que estava no final lá da lei, não sei o quê... E esse projeto eu tinha há muito tempo. O projeto do Como era gostoso meu francês era antigo.

DC – A partir do Staden?

NPS – Mais ou menos, era uma mistura, tem tudo... Mas era um projeto de co-produção com a França, que pintou quando Vidas Secas foi apresentado em Paris, depois de Cannes foi a Paris, e o produtor, o Anatole Dauman, que é o produtor da Nouvelle Vague, me procurou e perguntou "Você tem um filme?", e eu disse "Tenho!", e contei a história do francês prisioneiro, e tal, "Ah, eu quero fazer esse filme!". E começamos a trabalhar na co-produção. Só que naquele tempo não tinha acordo de co-produção entre o Brasil e a França, e a coisa mixou, mas eu fiz uma pesquisa, o Luís Carlos Ripper fez uma pesquisa, um negócio maravilhoso, tacapes, o tamanho dos tacapes, botou tudo isso, foi um trabalho grande de pesquisa, mas a produção não aconteceu. Então guardei o projeto, é aquela coisa, fica dormindo. E aí chega a Condor Filmes : "Tem aí tanto, vê se faz um filme!". O dinheiro era bom, eu pensei "Vou partir para o Francês"... Mas era um projeto anterior a todos esses... Fiz o Francês, aí o filme foi para Cannes, foi para Berlim, o filme vendeu logo. Aí veio o Gérard Leclery para fazer um filme, e veio o Quem é beta?. Que volta ao Azyllo muito louco, é uma ficção científica... Na época d’O Amuleto de Ogum, já tinha caminho fechado, ia ser fazer cinema para ir para Cannes. Eu já estava noutra. Porque já tinha a Embrafilme para distribuir, eu propus um cinema popular. Tinha essa discussão, de fazer um cinema comercial, e eu dizia que fazer um cinema comercial é consequência, era preciso fazer um cinema popular... Aí eu fiz um cinema popular que ficou sendo exibido num cinema só, em Copacabana, Posto 6. (Nelson ri).

RG – O Manifesto... você fez quando?

NPS – Eu não fiz aquele manifesto, quem fez aquele manifesto foi o Marco Aurélio (Marcondes). Ele pegou e juntou minhas entrevistas num folheto, e chamou de Manifesto por um cinema popular, e distribuiu. Mas eu não fiz mainfesto, imagina... Foi chute publicitário, para vender o filme. A única coisa foi que o Severiano botou o filme num só cinema, ali em Copacabana. Lançou em quinze, fechou...

DC – Não botou na periferia?

NPS – Não, não lançou.

DC – Mas comercialmente foi bem ou mal?

NPS – Foi bem, ele ficou dez semanas num cinema em Copacabana. Aí a crítica e comentários... Mas o troço é sério, é uma guerra difícil que não pára, eles não abrem mão. Outro dia vieram me falar "Ah, seu filme estava passando fui com uns amigos, e na entrada você sabe o que a bilheteira me disse? ‘Olha, isso é filme brasileiro, hein?’". Isso agora, em 2001. Isso acontecia com Rio Quarenta Graus em 1956, pô! E acontece sempre com outros filmes, é uma campanha pesada... Sem quartel... Então, aí do Francês eu fui para o Amuleto com a idéia de fazer um cinema popular, com a nova Embrafilme, do Roberto Farias, aquela coisa toda que eu conto no prefácio do livro com os roteiros, da nova esperança do cinema brasileiro, que morre mas volta, morre mas volta. Ele volta pra curtir...

DC – Tem corpo fechado... Aí veio Tenda..., Jorge Amado, já se explica por si só nesse momento, o cinema popular buscar o autor mais popular do Brasil... E aí tem o Na Estrada da Vida, com o Milionário e o José Rico. Como foi isso, eles te procuraram?

NPS – Eu estava fazendo o projeto do Castro Alves em São Paulo, com o Rudá de Andrade, e a Dora Villas-Boas, que foi aluna do Rudá, produtora de cinema, me perguntou, meio que brincando, "Você topa fazer um filme de caipira?", e eu respondi "Por que não?". E aí ela me levou no Parque São Jorge, e eu vi os dois cantando para quarenta mil pessoas, um fenômeno cultural da pesada... Além do mais, eu sou paulista, eu me lembro do meu pai querendo ouvir música caipira, e eu e meus irmão mudando o rádio, para escutar música americana... É uma coisa que existia muito presente na memória daquele tempo. E é um fenômeno, virou nacional... Quando eu fiz Na Estrada da Vida, era São Paulo, interior de São Paulo, Minas, Paraná...

RG – É o mesmo itinerário dos filmes do Mazzaropi...

NPS – Isso!... Exatamente, era um grande filão, o Mazzaropi...

DC – Você falou uma vez que foi seu maior sucesso comercial...

NPS – Foi. Fez, na época, brincando, um milhão e meio de espectadores. Fora a fraude, né?

DC – Cinema do interior não tinha controle, né?

NPS – É, não tem controle... Foi um filme que rolou bem. Foi feito com a iniciativa privada, não teve dinheiro da Embrafilme, deu lucro para os seus investidores. A Embrafilme entrou como distribuidora, mas o filme foi todo produzido e financiado por grupos privados...

DC – Depois você se envolveu com televisão, não?

NPS – É, eu tinha feito um programa para a TV Educativa, por aí...

DC – Fez também Missa do Galo...

NPS – Isso, por aí, um pouco antes

DC – E como surgiu Memórias do Cárcere? Você chamou o Barreto para fazer o filme, ou ele que te propôs?

NPS – Não, eu ia fazer o Memórias com esse grupo que fez o Estrada da Vida. Mas aí o filme do Roberto Farias foi proibidíssimo, lembra?

DC – Pra Frente Brasil?

NPS – Pra Frente Brasil... Então, Memórias do Cárcere nem pensar (ri)... Mas aí houve a iniciativa do Roberto Parreiras, que foi diretor da Embrafilme, ele disse "Vamos fazer Memórias do Cárcere", me garantiu... E o Barreto entrou na sociedade para dividir o risco. Mas quem produziu foi a Embrafilme, dinheiro total da Embrafilme.

RG – Mas você tinha interesse em fazer o Memórias... desde quando?

NPS – Pôxa, desde que eu li o livro, pra dizer a verdade... Quando ele saiu, em ’53, por aí...

DC – Você queria fazer também São Bernardo, que depois o Hirszman filmou, não? Chegou a escrever o roteiro?

NPS – Fiz, o Graciliano era vivo, houve uma comunicação...

DC – Vocês trocaram cartas?

NPS – Uma carta só. Eu mandei uma carta, e ele me respondeu. Eu não conheci ele, mas estava trabalhando com o Ruy Santos, que era amigo dele, carioca... E foi o Ruy Santos que me disse "Vamos fazer o Graciliano Ramos! Quer fazer?".

DC – E por que não fez São Bernardo?

NPS – Não tinha dinheiro, era só ilusão, trabalhava, escrevia, pensava... Mas, enfim, essa história dessa passagem, Amuleto..., depois Tenda..., Na Estrada..., Memórias..., foi uma grande experiência...

DC – É verdade que parte do Amuleto de Ogum você que fotografou, antes do Hélio Silva aparecer?

NPS – É, eu botei o Hélio lá para consertar as coisas... Mas grande parte fui eu que fiz, direto...





RG – A gente queria te ouvir falar dos filme recentes, porque é uma produção que faz parte de uma memória seqüestrada, dos anos 90... E a gente queria saber do teu percurso nesse período.

DC – Porque do Memórias... e Jubiabá para A Terceira Margem do Rio tem uma transformação imensa no país...

RG – De modo de produção, inclusive...

NPS – Exatamente...

DC – E isso se reflete muito tanto na parte estética quanto nos seus pontos de vista e propostas...

NPS – É, eu acho que surge muito a visão da decadência. A Terceira Margem... está muito impregnado dessa coisa, de um país misterioso e inexplicável, que tem códigos rígidos e não-escritos. É todo o pensamento do Guimarães Rosa no Primeiras estórias, que foi interpretado pelo Paulo Ronái, e é exatamente isso, a sociedade brasileira não tem instituições. Daí vem toda essa visão da decadência... O cara sai, muda, emigra, vai para a favela, tem os grupos poderosos, a polícia, aquela coisa toda... E sempre com a perspectiva do milagre, e o milagre também, a milagreira desiste... Aí é a minha contribuição, tem que fazer um milagre tão grande... O cara diz "Eu estou com Aids", e aí ela pede para morrer, vai embora...Isso não tem condição, não tem jeito (Nelson ri)... mas o filme também pecou pela produção, não tinha dinheiro, foi uma mão-de-obra fudida, foi muito furada a produção. Mas eu vejo A Terceira Margem... como um outro rascunho, melhor do que Mandacaru..., mas ainda também um filme-rascunho...

RG – Um rascunho para algo que você ainda pensa em fazer?

NPS – Não, não.

RG – Mais como um rascunho de um filme que deveria ter saído diferente?

NPS – É, deveria ter mais condições de produção, equipamentos, para dar força ao que eu estava querendo expressar. A idéia do final era uma chuva que ia cair, ela pedia para chover e então caía uma chuva enorme que derrubava a favela. Isso tá no roteiro, esse roteiro está bonito! (Nelson ri)...Mas como é que vai fazer chover lá no Sobradinho que não tem nem água para beber? Na primeira tentativa, os bombeiros foram lá com uma agüinha (Nelson mostra como se fosse uma chuva fraca)... Não... Aí não dá... Muito, muito... foi difícil, entende?... Mas, de qualquer forma, está lá, está lá o filme.

RG – Bem, é um filme que eu gosto particularmente. Apesar de reconhecer uma lacuna entre o projeto e a realização, acho que você consegue transformar um escritor como Guimarães Rosa, completamente heterogêneo ao seu jeito de filmar, em Nelson, traduzir em Nelson, consegue fazer de um universo completamente diferente do seu um cinema ainda impregnado de real e da vivência das pessoas, com todos os elementos de cultura popular, como o misticismo, a crença numa verdadeira terceira margem do rio, um canoeiro que viaja e desaparece, uma menina que realiza todos esses milagres... O que te moveu a adaptar isso?

DC – Você filmou no período Collor, inclusive, não? No momento de maior perrengue...

NPS – Foi! Não tinha nada, nada. O dinheiro do filme veio da França.

DC – E do Roriz (Joaquim Roriz, governador de Brasília na época), não?

NPS – Depois, já no final, entrou o dinheiro do Roriz, mas foi mixaria, sessenta mil e qualquer coisa... Mas a batalha política para montar aquele pólo... (Nelson ri) Tinha que fazer o making of do filme. Não o making of dos cenários ou da hora de rodar, o making of de bater nas portas para fazer um pólo de cinema, realizar politicamente nas pessoas, falar com não sei quem, pra fazer um pólo de cinema para poder fazer um filme. Agora, então, tem cada making of do caralho, o cara batendo na porta da Petrobras, aí tem uma comissão que vai decidir, e o cara vai para Brasília, para falar com o Andrea Matarazzo, o cara tem um apelido, o apelido dele é Conde...(Nelson ri) tem que falar com o José Álvaro Moisés...(faz cara de quem está sendo esgoelado e ri) não dá não, realmente é demais...não é não? Dá pra fazer um making of fantástico...

DC – É, eu posso contar algumas histórias da produção do Conceição... que rolaram ao longo desses cinco anos...

NPS – E o Casa Grande? Tem o dinheiro de não sei quem, tem que conseguir os direitos que são do fulano...

DC – Marcelo França? Ele ainda está cuidando do filme?

NPS – Não. Ele tinha o projeto do Casa Grande, mas não tinha como produzir... Você imagina a operação burocrática que eu fiz para passar o projeto da empresa dele para a minha, a Regina Filmes... Por quê? Porque eu tinha o dinheiro do projeto do Castro Alves..., que eu passei para o projeto do Casa Grande...Aí acabou o prazo dos direitos que o Marcelo França tinha junto à família do Gilberto, e a gente teve que comprar de novo os direitos. Eu assumi a dívida que tinha na Globosat, que continuou parceira do filme... Olha, o making of seria fantástico...

DC – Anos noventa, chegamos ao Cinema de Lágrimas, que você fez de novo com grana dos franceses...

NPS – Não, dos ingleses...

DC – Ah, é, British film...novamente grana européia bancando os filmes brasileiros...

NPS – Esse filme tem umas coisas muito engraçadas... Quer dizer, a idéia é que me pediram para fazer um filme sobre o cinema da América Latina. Pô... Porque na visão dos ingleses não existem Brasil, Argentina, México, que são os principais produtores, os principais países que têm uma história de cinema no continente. Claro que tem a Bolívia, que tem o Peru, a Venezuela, mas os três grandes do cinema na América latina são esses. E eles queriam um filme sobre a América Latina.

DC – O que me pareceu na época do lançamento do filme, e está nos textos dessa edição da Contracampo, é que seu interesse em fazer um filme é em descobrir um mundo com o qual você não tinha contato, e por isso você não faria um filme sobre cinema brasileiro, porque seria um filme sobre um mundo do qual você já fazia parte. (Nelson faz um gesto de concordância)

NPS – Gostei da explicação...(Nelson ri) É um pouco isso sim... Eu dei uma explicação na época, "Por que não falar do Cinema Novo?", porque o Cinema Novo é um fenômeno brasileiro, não é da América Latina...Eu pensei, "Qual é o cinema que ficou restrito à América Latina?". Foi o melodrama, que era popular... o Cinema Novo se espalhou na América Latina pelos cineclubes... Eu botei, tudo isso está lá no filme. Toda vez que começa um capítulo, ele entra, tem uma salinha pequena, aí tem um cinema falando do meu amigo Leduc, o Paul Leduc, e depois tem outro falando do outro argentino, o Solanas, e tal... Mas eles vão ver o melodrama mesmo, uma questão do ator e do personagem, que está procurando uma explicação para a vida dele. Que é um outro melodrama no presente. É um homossexual que se apaixona por um garoto estudante da UFF.

DC – É o melodrama possível, envolvendo homossexualismo e a Aids...

NPS – Pois é, mais melodrama que esse, impossível...

DC – Um melodrama anos noventa...

NPS – No começo era uma pessoa como eu, na época um pouco mais de sessenta, que se vidrava numa estudante. Mas esse era o óbvio ululante, não tinha melodrama nenhum. Não é? Qual era o melodrama? Aí depois ela ficava com Aids... Nem trepada pode existir, então é a solidão do homem. A outra relação importante não é a do homossexualismo, é a relação com a própria juventude. Quer dizer, o jovem tem só o discurso sociológico, político, ele nem vê os filmes, ele fica falando, "blá-blá-blá, e tal...", e o velhinho quer ver os filmes, lembrar procurar a mãe dele, ele está querendo se ligar no filme, e o outro fica só com a teoria da nossa querida Silvia Oroz, que é uma teoria bem... primária, não é? Você conhece o livro? É primário aquele livro, bem um pouco anos setenta, procurava explicar as coisas com um mecanismo positivista-marxista. Então por quê que tem, por exemplo, no melodrama aparece muito...

RG – A mulher como a mãe da casa ou a prostituta...

NPS – É, a mulher como prostituta, os doentes e as doenças, e tal... Por quê? Porque o pobre vive doente, e tal, o melodrama é a tragédia do pobre... A tragédia seria do rico e o melodrama do pobre... Agora, o que ele tá procurando, o velho ali, é a explicação do por que a mãe dele se matou, quer dizer, ele está dentro dele, dentro das coisas dele... Agora, tem um problema sério no filme, que é a ligação entre os dois idiomas. Porque se não estiver entendendo o que eles estão vendo na tela não faz sentido, tem que ligar com o que está acontecendo. Eu acho que não consegui fazer isso, ficou uma separação entre o texto dos filmes... Quer dizer, eu pensei que pudesse estabelecer uma relação direta, por exemplo, quando ela está... No incesto, né? Tinha toda uma relação do incesto ali, rolando, e tem os filmes, dois ou três filmes com incesto, uma história lá que ele toca piano, e ela vem, e tal, e ele fica com a filha ao invés da namorada... Mas o texto em espanhol não cola com o texto em português, ficou engraçado isso... Ele é mais apreciado no exterior, passou em Madrid abrindo uma retrospectiva dos filmes mais recentes, e as pessoas entenderam, se ligaram no filme, conversaram muito... Porque aí tem o espanhol que eles estão ouvindo, e acompanham o espanhol escrito. O cara vai da cultura dele para outra...Aqui não...

DC – Aqui não traduziram as falas?

NPS – Tá traduzido, mas, não sei, não rolou...

DC – Não é imediato...

NPS – Aí, depois que eu conto, as pessoas: "Ah é, é? Ahn!...", e tal, e aí vai entender por quê... Porque é o seguinte, todas as cenas dos filmes parece que são cenas escolhidas aleatoriamente, que não têm nada a ver com o que está acontecendo na sala. E é onde tem todos os mitos, o mito da doença, o mito do incesto, o mito da mulher má, mulher boa, a prostituta, todos os mitos que o melodrama sempre utilizou estão ali, combinados. E no comportamento dos dois isso tudo é refletido, na relação dos dois. Mas, enfim... E, no final, também, tem uma homenagem ao Glauber...

DC – Reconciliando o Cinema Novo com o melodrama...

NPS – Isso... Aí ele vai, antes disso, ele recebe a revelação de que o filme que a a mãe dele viu era a sua própria história, e que ela se matou para evitar que ele se matasse. Quer dizer , é o melodrama em cima de melodrama, então... (Nelson ri). É engraçado... Mas é... complicado...

RG – E acaba sendo também uma homenagem ao Cosme (Alves Neto, durante anos diretor da cinemateca do MAM), não é?

NPS – Pô, Cosminho ali, né?... Merecia a homenagem...

DC – Uma coisa que eu queria saber era sobre os programas que você fez para a televisão, especialmente sobre aquele que você fez com Jobim, como foi que isso rolou, foi idéia sua?

NPS – Não, eu tinha feito o programa inaugural da Manchete, e depois para a Manchete eu fiz a inauguração do Sambódromo, fiz um programa com o Haroldo Costa, Na passarela do samba, fizemos muitas entrevistas, fizemos também a história de cada escola de samba, era um programa muito interessante, pesquisa, documentário e tal... O Cícero de Carvalho era o homem que sabia de tudo de música popular, foi da Tv Globo, tinha uma carreira na televisão... O Cícero era um homem disso, e ele me falou "Nelson, vamos fazer um programa com o Tom Jobim!...". Aí propusemos à direção da Manchete, ela aceitou imediatamente, e aí fomos fazer quatro horas de Tom Jobim. A história é o Tom Jobim contando, do ponto de vista dele, a história da música popular brasileira. E esse programa foi apagado, desapareceu... (Nelson ri)

DC – Será que não está nos arquivos da Manchete?

NPS – Nada, não tem nada, foi tudo apagado, apagaram tudo. Eu trabalhei com duas câmeras, dois caras muito bons, e o programa era muito simples, era o Tom na casa dele, no piano, o Dori no violão e o Danilo Caymmi na flauta, e recebendo os amigos e convidados. Então entra, assim, Radamés Gnattali, ele estava vivo, Radamés vai lá e conta a origem, do Nepomuceno, aquele começo, e eles tocam... E era assim, vinham os convidados do Tom, e ia progressivamente contando a evolução da música popular brasileira. Foi um programa de total espontaneidade, duas câmeras rodando, com uma hora em cada fita...

DC – Não precisava parar nunca...

NPS – Nada! Nem os intervalos, os papos que rolavam, conversas, brincadeiras...Entra o filho do Tom no programa, era aquilo ali... Ficamos lá durante um bom tempo, uma semana no mínimo, gravando...

DC – Isso tudo foi apagado? Você não tem cópia?

NPS – Nada, eu esqueci de pedir a cópia, nunca pensei que a televisão fosse assim tão... auto-destruidora, imediatista. Apagou mesmo, tudo...

RG – Pensando essa década, esse último período, o que você considera que foi diretamente influenciado, no teu cinema e no geral, pelo modo de produção, isso é, leis de incentivo? Você acha que, se tivesse havido outra fórmula de captação, seu cinema teria sido diferente, ou você acha que o cinema da década de noventa pouco variou, de acordo com o modelo de produção?

DC – Parece que está mais difícil de fazer filmes, não?

NPS – É... Porque tem o seguinte também, tem muito mais gente interessada em fazer filmes do que antes, a procura dos recursos é muito maior. É uma procura muito caótica, dependendo de relações familiares, relações políticas, relações comerciais, é o que conta, não é? Por outro lado, o poder de decisão ficou entregue à área de Marketing – isso não é minha crítica, é de todo mundo, a grande maioria faz essa crítica – das empresas, eles que vão decidir, e eles ficam com poucos elementos para decidir. A não ser o básico, que é se vai dar um retorno mais rápido. Tanto é que eles preferem investir em eventos do que em filmes, filme demora muito, um ano para aparecer. E também tem filme que não dá retorno nenhum, isso é a lei do cinema... Mas aí também tem todo o problema da lei, o Ministério da Cultura dá o mesmo tratamento ao evento promocional e a uma criação. Quer dizer, o que interessa à cultura é a produção, é a criação. Esse tem que ser o investimento básico, sempre. A reprodução vai ser a consequência.

DC – Como você vê hoje essa discussão do cinema industrial, cinema de autor, cinema popular? Qual o espaço que você vê para cada um, como você acha que seria o ideal?

NPS – De novo? Esse papo é velho. (Nelson ri)

RG – Mas ainda não está resolvido...

DC – É bem velho, mas eu vejo que, já no ano 2000, as pessoas ainda não superaram. A idéia de cinema industrial já está um pouco ultrapassada, mas eu vejo que mesmo o Barreto, que ainda não é bem industrial, ainda defende uma teoria bem próxima daquilo... E o cinema autoral e artesanal também tem seus partidários...

NPS – A gente tem que pensar sempre o seguinte, em desconfiar sempre do discurso. Porque tem um discurso, mas tem um interesse por trás desse discurso. Por que esse discurso é apresentado, o que move ele, o que cria esse discurso? Porque o que eu acho é o seguinte, o Luiz Carlos, vou falar dele porque é o mais representativo, o que ele acha é que essa pulverização dos recursos tem que acabar, porque aí não tem o cinema brasileiro que seja feito constantemente, e que tenha uma produção ‘x’, e que possa entrar no mercado. Então a pulverização enfraquece a presença do cinema brasileiro. Aí é o discurso do cinema industrial, que os recursos têm que ir para uma produção industrial. E o que significa uma produção industrial? Produção industrial é aquela que pode ser feita como uma novela da televisão. Onde não existe autoria, existe uma fórmula, tem que produzir tanto até daqui a tanto tempo. Também esse projeto da Agência é esse. O cinema de pesquisa e o cinema autoral ficam com o Ministério da Cultura... (Nelson ri). E o cinema industrial... Agora, eu brinco muito com o Luiz Carlos, "Ô Luiz Carlos, o cinema industrial também não dá renda...". Os exemplos estão aí, pô... Se fossem filmes, pô, né?...

RG – Os filmes brasileiros mais imbuídos do ideal de cinema industrial, de ganhar dinheiro, esses filmes em sua maioria não conseguiram encontrar seu público esperado...

DC – É pelo próprio número de espectadores no país. Hoje, um filme, para arrecadar o dobro do seu custo, tem que ser barato, se for caro não tem número de pessoas suficiente...

NPS – É uma questão muito complexa, eu acho...Falar em cinema industrial onde não se tem indústria... É uma piada, não é? O que acontece também é o seguinte, o cinema no Brasil, a produção em cinema no Brasil, ela foi condicionada pelo apadrinhamento do Estado, e está muito difícil sair disso.

DC – A idéia da Agência seria isso, não?

NPS – É, o autoral lá no Ministério da Cultura e o outro com o dinheiro grosso, do Estado também...

DC – Mas seria empréstimo...

NPS – Mas quem é que paga empréstimo no Brasil, pô?

DC – O Magalhães Pinto dizia que o pessoal de cinema sempre pagava...

NPS – Mas isso era empréstimo pessoal. E também, naquela época, com aqueles filmes. Imagina... Vidas Secas pegou no Banco Nacional doze milhões, daquela moeda que eu nem lembro qual era, e a primeira coisa foi ganhar vinte milhões, de prêmios. Então pagou o banco no ato. Era eu e o Barreto, um avalizando o outro... Agora, era crédito pessoal, pessoa física, noventa dias, naquele tempo, aí juntava os juros, mais os juros... Aí ia fazendo uma bola de neve. Deu para pagar... Agora, o seguinte: por que? Porque foi um filme excepcional. Com lançamento aqui, foi pra Cannes, junto com Deus e o Diabo..., e a imprensa toda aqui... Foi um momento que o cinema brasileiro começou a se firmar, aparecer... Até meu pai aceitou! (Nelson ri) Era já meu quinto filme, e sempre que eu vinha pra São Paulo ele perguntava "ô Nelson, quando é que você vai começar a trabalhar, hein?", e eu pensava "Porra...". Só no Vidas Secas, porque saiu na primeira página do Estado de São Paulo, ele só lia o Estado... "Ah!..." (ri)... Mas, então, fazer um projeto de cinema baseado em três, quatro, dez filmes diferentes, excepcionais, não é certo... Tem que pensar em outra coisa. E o que eu temo é que o discurso de todas as reivindicações de projetos de cinema sempre fala nesses mesmos filmes, então... (Nelson ri) Esses filmes já estão com cinqüenta anos de idade... "Porque o cinema brasileiro é conhecido no mundo inteiro, com Vidas Secas e Deus e o Diabo...". Isso não é medida, pô, para fazer um projeto... E muito menos usar essa palavra ‘indústria’...

DC – Você acha então que falar em indústria, no Brasil, é descabido?

NPS – Historicamente, ela perdeu a vez. Ela poderá existir por outros caminhos, mas nunca pela mão do Estado. Isso já foi tentado, e acabou. Pelas mãos da iniciativa privada foi tentado no início dos anos cinqüenta, e morreu...

DC – Hoje quem está indo por aí é a Globo.

NPS – Pois é... O filme do Daniel Filho, como é que está na bilheteiria?

RG – Foi bem...

DC – Mas aí é totalmente diverso de um caminho autoral, não?

NPS – Mas também pode existir um autor dentro do sistema, lidando com a visão industrial. Toda a história do cinema americano é assim, os autores americanos apareceram dentro daquele esquema de estúdios, e não sei o quê... Grandes autores...

RG – Guel Arraes está aparecendo...

NPS – Guel Arraes é uma grande figura, muito bom...

DC – Há uma corrente muito grande que defende a idéia de incentivo à produção autoral, a idéia seria a produção de muitos filmes baratos, ao invés de poucos filmes caros...

NPS – Eu vinha de um tempo em que a iniciativa era privada, e o Estado só se metia nos filmes pra censurar. Quando o cinema novo eclodiu, foi sem dinheiro público. Depois, inventaram o INC, que se propunha a incentivar os filmes. Porque o esquema da censura não era suficiente para parar a produção...

DC – Você acha que se deveria fazer um cinema barato?

NPS – Eu acho que quanto mais longe do estado, melhor. Não é impossível. Temos milhões de pessoas que assistiram e assistem ao cinema brasileiro.

DC – Mas e a relação com o cinema americano? Como fica isso?

NPS – É, existe sim uma classe média, com o pé em Miami. Mas pelos números tem muito mais: um público que foi proibido de ir ao cinema. O público foi proibido pelo preço do ingresso, pela roupa, pelo calçado. É esse público que o cinema brasileiro deve correr atrás, porque é ele que gosta de nós.

DC – Mas hoje, chegar a esse público, só com a televisão e o videocassete...

NPS – É, mas é por aí mesmo... também...

RG – E quais são seus projetos para o futuro?

NPS – Eu filmei o Zé Keti, uma roda de samba com ele. Eu vou fazer essa roda de samba e futuramente um documentário sobre ele. Agora eu estou trabalhando num documentário de 3 horas sobre o Sérgio Buarque.

RG – E o seu projeto sobre Castro Alves?

NPS – Hoje, só se os americanos quiseram produzir... Tem ainda um outro projeto, também não muito novo, que é Brasília, 18%, que é uma referência a Rio 40 Graus... É um filme sobre corrupção no Distrito Federal. O 18% é a umidade relativa do ar em Brasília...

RG – E você está com alguns desses projetos na Lei?

NPS – Não. Eu, pelo menos, estou fora. Essa lei, na prática, já acabou.


Entrevista concedida a Daniel Caetano e Ruy Gardnier, publicada em maio de 2001.