30/08/2011

O Rio e o cinema

Não se trata de um ou dois casos – há inúmeros filmes internacionais em que bandidos, fracassados ou não, planejam fugir para o Rio de Janeiro, certamente o leitor há de ter visto algum. É a versão sul-americana para as ilhas do Caribe ou do oceano Pacífico. Talvez isto se deva à história factual de Ronald Biggs, que fugiu para o Rio depois de assaltar um trem na Inglaterra, ou pode-se até imaginar que isso se deva a um dito antigo de um poeta russo (algo como: “Dizem que num lugar distante/ talvez no Brasil/ existe um homem feliz”) – mas, convenhamos, esta última hipótese não é muito provável. De todo jeito, o que se percebe é que o Rio de Janeiro é o paraíso imaginário dos pilantras cinematográficos – desde filmes bem conhecidos como A Fish Called Wanda e Trainspotting a alguns menos votados, como o recente The Girl From Rio e muitos outros por aí afora... Para os sonhos gringos, este lugar poderia ser ainda o paraíso na Terra – paraíso sensual, sempre (alguém aí falou em Zalman King e seu Wild Orchild?).

Seria grosseiramente injusto, no entanto, atribuir somente a comédias e filmes de ação estrangeiros este tipo de imagem do Rio de Janeiro: para ficarmos num exemplo próximo, há poucas semanas teve estréia nacional o filme O Homem que Copiava, o segundo longa-metragem de Jorge Furtado – que termina justamente com seus personagens fugindo para o Rio. E, de forma claramente irônica, o mais recente grande sucesso de bilheteria com ação passada nas ruas do Rio se chama Cidade de Deus!... Mas não custa notar que este é o nome do bairro onde o filme se passa, bastante distante do centro da cidade, e que a narrativa nada tem de paradisíaca.

Se o amigo leitor olhar para um mapa do município do Rio de Janeiro, um mapa daqueles com demarcação colorida apontando a média de habitantes de cada região, ficará impressionado em notar o tamanho das áreas pouco habitadas. Há uma imensa concentração de habitantes na parte sudeste da cidade – somos mais de cinco milhões – e a área urbana se estende por outros municípios, tendo cerca de oito milhões de moradores no total. Nosso Centro urbano não fica no centro geográfico, fica na área do porto onde nasceu a cidade – na Baía da Guanabara.

Fazendo um histórico bem curto da relação da cidade com o cinema, não se pode esquecer o clichê: o cinema chegou ao Brasil pelo porto do Rio de Janeiro. Na verdade, isto pode não ter acontecido desta forma, mas é o mito que se construiu. O primeiro registro de filmagem aceito por historiadores é o das tomadas feitas por Afonso Segretto antes de pisar em terra firme – a partir da visão da Baía da Guanabara – ainda em 1897. Registros na imprensa comprovam que, antes dos gringos estabelecerem seu domínio de distribuição cinematográfica, o Brasil produzia centenas de curta-metragens anuais – há registros de que, entre 1907 e 1911, produzia-se uma média superior a duzentos filmes por ano (mas eram curta-metragens, e eram comuns os casos de filmes estrangeiros que eram adulterados para burlar os direitos autorais). Não há senão resquícios e fotogramas de um ou outro exemplar dessas centenas de filmes produzidos antes da linguagem cinematográfica clássica e a distribuição estrangeira se consolidarem mundo afora. Sabe-se, de todo modo, de alguns filmes “posados” de sucesso marcante, a começar por um chamado Os Estranguladores, reconstituição ficcional de um caso criminal bastante conhecido à época.

Tendo cinema desde o final do século XIX, a então capital da república chegou a dar a uma área do Centro o nome de Cinelândia, devido à profusão de salas de exibição ali construídas. O cinema, somando-se a partir daí aos muitos vícios do Rio de Janeiro, mantém-se até hoje como tal, de forma crônica, em cada época a seu modo – é pena notar que nos dias de hoje este vício vem sendo muito mal administrado... E o Rio tem sua história e suas grandes e pequenas histórias de cinefilia e produção de cinema, como diversas outras metrópoles terão as suas próprias: fã-clubes e cineclubes – inclusive pela ligação com o cinema que aqui se fez, seja exibindo filmes pela primeira vez (foi o que aconteceu no Chaplin Club com Limite), seja estimulando o encontro de gerações; estúdios de cinema (como a própria Cinédia de Gonzaga, a Atlântida que se mantém conhecida pelas chanchadas); revistas de cinema; e mesmo as principais repartições públicas dedicadas ao setor ficavam todas no Rio até recentemente (mesmo quando a capital foi transferida para Brasília). No Rio de Janeiro já aconteceram boas discussões cinematográficas, debates consistentes e movimentos influentes (há até uma frase, normalmente atribuída Nelson Pereira dos Santos, dizendo que “Cinema Novo é Glauber Rocha no Rio de Janeiro”). E muitos filmes foram feitos.

Se durante todos estes anos fomos guiados pelo sonho da instalação de uma indústria de produção cinematográfica, no entanto, a empreitada foi um fracasso. Aqui ficava a Embrafilme (o órgão estatal responsável pela distribuição e co-produção de filmes ao longo do final da ditadura e dos primeiros anos do regime democrático). Nos últimos anos, quase a metade dos filmes brasileiros (de todo o país) é distribuída pela empresa municipal Riofilme – terminando por ser exibida em alguns cinemas da Zona Sul carioca (a área tradicionalmente mais rica da cidade) e num circuito nacional bastante restrito (somente poucos cinemas em mais três ou quatro cidades). E, além do fato (comum) de que mais de 80% do mercado cinematográfico estão tomados por filmes de um outro país, os filmes produzidos, em sua grande maioria, não são exibidos na rede televisiva – são vistos por poucos e precisam de recursos públicos, diretos ou indiretos, para continuarem a ser feitos. Sem discutir o mérito do uso destes recursos, cabe notar que os sonhos de indústria dão com os burros n’água.

O sonho de uma indústria de cinema similar à americana (com estúdios, verba de produção, técnicos e equipamentos condizentes) já existia e dava com os burros n’água desde a década de vinte – o que não impediu a feitura de uns tantos bons filmes, nem tampouco impediu que surgisse o filão dos filmes de carnaval, as chanchadas, em que os números musicais e o humor (que parodiava a indústria) sustentavam o interesse da platéia. Mas tem-se como marco de uma mudança de rumo o filme de estréia de Nelson Pereira dos Santos, Rio Quarenta Graus, em que, assumidamente influenciada pelo neo-realismo, a história versava sobre o dia de cinco garotos vendedores de amendoim que vão vender seu produto nos principais pontos da cidade num domingo de sol. O filme teve boa bilheteria e provocou repercussão, beneficiado pela polêmica que o precedeu. Havia um decreto federal que suspendia o serviço público quando a temperatura da cidade superasse os 40° centígrados – há inclusive a história lendária de que os termômetros da Estação (de trens) Central do Brasil eram preparados para não ir além da temperatura máxima estabelecida. Pois bem, foi Rio Quarenta Graus o título dado ao filme – um delegado de polícia resolveu então censurar a sua exibição e isso acabou provocando uma confusão danada, com manifestos a favor da liberação, o que ajudou bastante na publicidade. Mas não foi essa, ou não apenas essa, a razão do interesse do público: fugindo do modelo de ficção clássico, o filme encontra seu tema nas particularidades da cidade, não numa universalidade imediata. Os cenários são os cartões-postais do Rio, mas também é a favela onde moram os garotos. O cinema brasileiro não filmara em favelas até então – o único filme que havia se passado em uma, Favela dos meus Amores, de Humberto Mauro, tinha sido filmado em estúdio.

O filme seguinte de Nelson, Rio Zona Norte, seguiu os trilhos do trem e foi aos bairros descobrir o artista pobre, genial e subdesenvolvido. Botando a cidade nas telas, Nelson (que é nascido e criado em São Paulo) influenciou decisivamente uma geração que deu o que falar. Cinema Novo talvez tenha sido apenas uma patota composta por realizadores de maior ou menor talento, todos com um discurso razoavelmente afinado, ou talvez seja algo realmente mais complexo – mas não há como negar que a patota se criou e se sustentou no Rio. “Cinema Novo é Glauber Rocha no Rio”, não? Junto com Luiz Carlos Barreto, talvez fosse o caso de se completar...

Depois da estréia de Nelson Pereira, de fato, muita coisa já aconteceu. Houve verdadeiros movimentos de produção, como o Cinema Novo e o Marginal (ou Udigrudi), e alguns sub-gêneros marcaram sua época e depois desapareceram com ela, como as pornochanchadas. De alguma forma, no entanto, pode-se perceber uma tradição carioca de crônica de costumes, nossas comédias ensolaradas – diversos modos marcantes de retratar a vida no Rio de Janeiro. Pode-se notar que esta tradição de comédias de costumes começa, de certa forma, com o (fabuloso) filme de estréia de Domingos Oliveira, Todas as Mulheres do Mundo, e passa por filmes de qualidades diversas, incluindo aí as grandes crônicas feitas por figuras como Hugo Carvana (sobretudo os seus primeiros, como Vai Trabalhar Vagabundo e Bar Esperança) e David Neves (sobretudo com sua trilogia carioca, Muito Prazer, Fulaninha e Jardim de Alah). Pode-se incluir também aí filmes de praia como Menino do Rio e o um pouco mais recente (e não tão bem-sucedido) Como Ser Solteiro. Certamente houve filmes no gênero antes dos citados, de Humberto Mauro (Lábios sem Beijos, de 1930) até os filmes que o argentino-brasileiro Carlos Hugo Christensen fez na cidade, mas é fácil perceber que esse cinema iniciado nessa época, de retratos pessoais do Rio de Janeiro, com seus heróis sempre felizes, tornou-se realmente tradicional desde então, atraindo um certo público que não se interessava pelo humor chanchadesco – seriam, nas locadoras de filmes, comédias cariocas, o sub-gênero de filme brasileiro... Deste cinema, a paródia, a ironia em cima da comédia, foi feita antecipadamente por Nelson Pereira no seu El Justicero – é a sua crítica gozadora ao herói das estórias de praia.

E os filmes feitos aqui já foram mais vistos por aqui do que eram até então – e já foram bem mais vistos do que são hoje, também. O cinema brasileiro já chegou a ter mais de trinta por cento do mercado, seu recorde de participação, a partir da atuação da empresa pública (nacional) Embrafilme, aqui sediada. Depois que o modelo de empresa estatal faliu (em conseqüência da falência geral do Estado), a Embrafilme passou por um período de reformulação, interrompido por um presidente eleito que, rancoroso, fechou a empresa. Desde então a questão da distribuição de filmes voltou a ser um problema sem um esquema que o solucione. Temos hoje outra empresa pública (municipal), a Riofilme, que distribui grande parte dos filmes brasileiros, mas sem a estrutura da Embra (é a única empresa pública que o faz em todo o país). O resultado? Os filmes são exibidos em poucos cinemas de pouquíssimas cidades. Nos cinemas de elite, na maior parte dos casos – mas quase todos os cinemas são para quem tem poder aquisitivo, nos dias de hoje. Na Zona Sul, a área onde tradicionalmente mora quem tem mais dinheiro no Rio, a Riofilme já deu um jeito: patrocina um cinema no bairro de Botafogo, onde estréia seus filmes. Mas não vai muito além disso, pelo menos até o momento – seus filmes têm tido uma média de público abaixo de cinqüenta mil pessoas, baixíssima sob qualquer aspecto (não que isso defina qualidade, de maneira nenhuma, claro).

A produção cinematográfica brasileira teve bons momentos no ano de 2002, apesar das nossas vicissitudes de sempre – e a imagem do Rio de Janeiro, cenário central de uma imensa parte da nossa cinematografia, mais uma vez foi para a berlinda. O evento Cidade de Deus e o documentário Ônibus 174 trouxeram à discussão temas sociais há muito conhecidos, Madame Satã recriou um mito carioca de inconformismo social. O mestre Eduardo Coutinho realizou Edifício Master, documentário que apresenta depoimentos de habitantes de um edifício de baixa classe média de Copacabana. Foi um ano em que o cinema brasileiro escapou do tabu de ser visto e discutido apenas por um pequeno grupo social da metrópole – e isso é realmente estimulante, evidentemente. A discussão e a vivência do cinema não passam por um isolamento do resto do mundo, é claro – portanto, é muito saudável que os filmes venham a ser vistos por mais gente, e da mesma forma é saudável que se criem os grupos que vão ver muitos filmes, vivê-los e discuti-los. Há coisas interessantes rolando: bastante gente querendo produzir coisa nova, centenas de pessoas de uma nova geração vindo aí para fazer, ver, debater, produzir, exibir (depois de um hiato de mais de uma década, porque durante anos a idéia de trabalhar com cinema foi vista, mais do que nunca, como coisa de desvairados); há a iniciativas de cineclubes, sessões alternativas, filmes baratos, curta-metragens, documentários em vídeo; há o cinema Odeon, a melhor coisa que a empresa BR patrocina no Rio de Janeiro. É com a direção do Odeon (que é gerenciado pelo grupo exibidor Estação) que o pessoal da Contracampo, revista em que escrevo, tem organizado um cineclube semanal (o evento tem o título óbvio de sessão cineclube), com folhetos e debates depois da sessão – tem sido uma coisa muito bacana. Estando por aqui, vivemos, participamos e aprendemos com o que temos por aqui pelo Rio – diversas turmas com problemas diversos, muita vontade, pouco dinheiro, idéias um pouco mais ou um pouco menos organizadas.

O cinema se faz, se vê, se discute, mas é na cidade que se vive. O Rio de Janeiro não passa por dias fáceis, isso se reflete no cinema, mas não é possível transmitir essa experiência com três ou quatro histórias ou históricos que se relate nesse texto, claro, nem tampouco que as telas possam dar conta – nem pode ser essa a intenção dos filmes. A vida na cidade tem histórias demais para caber na tela. Elas podem caber em representação, mas não convém ver os filmes esperando uma síntese de tudo – isso não haverá. A cidade tem muitas faces – e hoje nem todas são bonitas de se ver. Há violência a valer em alguns lugares em todos os momentos e em todos os lugares em alguns momentos, há corrupção e mau planejamento urbano, há às vezes um certo desregramento social caótico. Mas a cidade parece se adaptar e, de alguma maneira, sobrevive. Isso se reflete na relação com o cinema, certamente nos enredos dos filmes, mas não somente nestes – por exemplo, não há mais quase nenhuma sala de cinema aberta em ruas, praticamente todas estão dentro dos shopping-centers (e é melhor para muitos ver filmes de graça na televisão).

O momento não é moleza, mas há uma turma grande que segue a trabalhar, a querer fazer coisas novas, com vontade e esperança, que é como canja de galinha, não faz mal a ninguém.

artigo publicado na revista argentina Otrocampo em agosto de 2003.