25/07/2008

O Sopro no Coração (1971)


Não é mais antigo que o cinema o conceito de adolescer, de transitar da infância à idade adulta. Na verdade, se há alguns séculos não se tinha a noção de adolescência, hoje parece às vezes que todos o somos, uma vez que um dia o fomos – principalmente para um certo tipo de cinema, sobretudo o dos efeitos especiais. O Sopro no Coração é um filme sobre um garoto de catorze anos (quase quinze) – mas, ao invés de se identificar com seus conflitos, encanta-se com eles, em busca do tempo que ficou para trás (é um filme sobre um adolescente, e não para um adolescente). Não é que Laurent não sofra com seus problemas – a questão é que seus sentimentos, bons ou ruins, não têm a mesma força que a experiência em si. Por mais desagradável que seja no momento ter a primeira transa interrompida, a lembrança que resta é de uma situação divertida. Só resta rir.

É essa libertação de um certo recalque que o filme parece pleitear. A mãe de Laurent afasta-se da família por conta de um amante, o pai de Laurent é ausente, seus irmãos implicam com ele, a empregada não pára de reclamar, seus amigos são chatos... e daí? Vive-se mesmo assim, não é mesmo?. E pode ser divertido – não é ruim, no final das contas. O menino mimado, o pequeno gênio que ganha tudo e ainda rouba discos, que tem o problema de saúde a que se refere o título, o sopro no coração (que parece sugerir também um sentido de impulsividade), e por isso ganha a atenção de todos, aproveita a vida como pode e como lhe convém. Nisso, a mesmo tempo se une e se liberta de seus primos-irmãos do cinema francês, os garotos anárquicos do Zero de Comportamento de Vigo e do Antoine Doinel do Incompreendidos de Truffaut. Laurent, apesar da má saúde e dos mimos, tem a vitalidade e o sentimento de liberdade de seus aparentados cinematográficos – mas, por esta má saúde e mimos, não tem do que se queixar acerca de dinheiro e cuidados, ao contrário dos anteriores. Não precisa se preocupar em ter liberdade – ele tem de tudo, sorte dele, que pode ficar ouvindo jazz em paz.

Nisso o filme situa sua transgressão central, a quebra de tabu que o tornou famoso. Para a dramaturgia clássica, pior que o rompimento do tabu do incesto, só mesmo se este rompimento se der sem sofrimento, sem conseqüentes perda e purgação – isso sim é tabu de verdade. É isso que faz O Sopro No Coração. Não se trata de uma história em que o incesto provoca ou é provocado por um violento transtorno psíquico. A vida continua, e só resta rir. Em praticamente todos os outros exemplos que encontrarmos de tematização do incesto na ficção, teremos tramas em que o rompimento do tabu traz imenso sofrimento, traz uma ruptura definitiva com o relacionamento antes estabelecido – para lembrar de um exemplo marcante, dois anos antes Visconti fizera o seu Os Deuses Malditos. O Sopro no Coração transgride essa norma, o incesto rompe para evoluir, para conciliar. O filme consegue este feito bizarro, e no entanto muito natural: diante do rompimento do tabu, a conciliação é a maior transgressão – não custa lembrar que transgressão e rompimento de tabus são dois dos pontos centrais em grande parte dos filmes do realizador, Louis Malle.

Vale notar o encanto cinematográfico de Lea Massari (atriz de filmes como A Aventura de Antonioni e A Primeira Noite de Tranquilidade de Zurlini) como a italiana Clara, mãe de Laurent, assim como a fabulosa interpretação de Benoît Ferreux no papel principal (sua estréia no cinema), com um comportamento sempre remetendo a algo instintivo, não-planejado – é realmente incrível a divertida maneira que Laurent ataca as meninas, dobrando o pescoço e avançando de um jeito grosseiro, entre o desajeitado e o animalesco. Vale notar, sobretudo, que o filme tem uma vitalidade impressionante, uma incrível capacidade de reviver as experiências de Laurent, seja ouvindo o bebop de Charlie Parker (e como é boa uma trilha sonora com Bird Parker!), transando com putas, suportando a paquera de um padre mal-resolvido, seduzindo gatinhas no hotel, lendo tanto livros clássicos como libertinos ou vendo sua linda mamãezinha saindo do banho.

Texto publicado no folheto da sessão cineclube do Cinema Odeon em 11 de junho de 2003

O Lado Escuro do Coração 2 (2001)

O tema é o amor. “A-M-O-R, amor”, como diz a letra de um samba. Como milhares de filmes, como zilhões de histórias. Só que esse aqui é escrachado – até tem enredo, mas a verdade é que não tem história, a história é o amor.

É uma continuação. Revisitamos o personagem Oliverio, poeta de meia-tigela, conquistador barato e romântico mal-resolvido – agora com menos cabelos a lhe proteger, mas ainda com o mesmo sonho sugerido na primeira seqüência do filme (assim como o era no primeiro): encontrar uma mulher que voe e cujo amor o faça voar. Para descobrir se elas têm esta capacidade ou não, o melhor é observar depois da transa – e fazer como a mãe dos pássaros, que lhes atira ao abismo para que voem. Se as mulheres não voam, paciência – se não o fazem, ele então teria que se livrar delas, de toda maneira.

O interesse criativo parece passar por toda espécie de despudor para recontar a mesma velha história de um desejo, que toda as canções têm para contar – a vital escolha por Eros em oposição a Thanatos, em oposição à morte. Entenda-se por despudor toda tática apelativa, exagerada, repetitiva, errada, redundante. Enfim, amorosa. A poesia de amor – nada mais clichê, nada mais banal. Para fugir do banal, tenta-se libertar a poesia – e não há nada mais banal que não querer ser banal falando de amor poeticamente.

Então não é preciso ter medo do que pode parecer banal, apelativo, exagerado e tudo mais: vamos ao exagero de boleros, aos encantos pictóricos, às frases feitas, ao flash-back dos momentos de amor. E com humor! Diz-se que não basta recitar poesia em um filme para fazer poesia em filme. Pois que se recite dezenas – com música ao fundo, tiradas engraçadinhas, imagens e representações óbvias e até clichês – o Tempo é um personagem que corre sem parar na sua motocicleta, carregando os protagonistas na carona, a Morte se divide em um homem e uma mulher vestidos de preto, Oliverio também vê sua consciência se dividir em dois pólos; isso sem contar a repetição da piada da cama que se abre para o abismo. Pudor pra quê?

A continuação relê o tema e reencontra o personagem –mas há algumas diferenças cruciais, inevitáveis diante dos anos que se passaram para criador e criatura do filme: Oliverio está mais só no mundo, ainda que tenha a mesma facilidade em criar amizades, está desgarrado em Barcelona, mas ao mesmo tempo está mais tranqüilo, tanto que alcança seu intento no final. Se a busca parecia por alguns segundos terminar no primeiro filme – apenas para que Oliverio descobrisse que ele também precisava fazer as mulheres voarem –, nesse a aproximação da morte o obriga a escolher a alternativa da vida. Ele também pode fazer a mulher voar, e a morte fica distante quando se tem um futuro amor para cuidar. Clichê, banal, apelativo – e tremendamente esperançoso e carinhoso. É a bela conta da maturidade que chega.

Como se disse, é uma continuação. Isso torna bastante improvável que venha a ser lançado em cinema ou em vídeo em Terra Brasilis, já que o primeiro filme não o foi (também só passou em festivais). É pena – por aqui os filmes latinos ainda têm apenas o espaço de uma mostra no CCBB, o Cine Sul, e esta mostra que acontece na maratona do Festival do Rio. Mas Subiela já fez coisa suficiente pra receber maior atenção de uma mostra ou festival por estas bandas – o seu Homem Olhando Para o Sudoeste estreou apenas em São Paulo (fez razoável sucesso), O Lado Obscuro do Coração, As Últimas Imagens do Naufrágio e Despabilate Amor passaram em festivais, seus filmes recentes nem isso conseguiram (tiveram mau desempenho na bilheteria, péssimo critério de importação). Subiela ganhou da crítica o ingrato rótulo de “cineasta poético”, seja lá que raio isto queira dizer – se os rótulos empobrecem, paciência: como se pode ver com esse número 2 do seu Lado Escuro do Coração, ele sabe muito bem jogar e brincar com isso.


Texto publicado em outubro de 2002

Fragmentos de vida

Sabemos que o cinema se constrói a partir de fragmentos. Cada filme é feito pela montagem em seqüência dos planos rodados. E um país se constrói também por fragmentos – por pessoas, lugares, eventos –, mas a realidade não tem quem a ordene e ponha em seqüência lógica. Qualquer retrato que venha a ser feito ambicionando ser total e integral lhe será infiel – uma vez que, antes que esteja acabado, esta realidade já terá se modificado. Nenhum filme pode dar conta sequer de uma pessoa, quanto mais de um país inteiro. Portanto, não poderá ser senão por fragmentos que um cinema brasileiro irá ter algo a dizer sobre este país.

Muito já se falou em torno da histórica disposição dos cinemanovistas de “descobrir o Brasil” através do cinema. No entanto, a própria hegemonia deste discurso acabou por engessar a construção do olhar do cinema brasileiro – e as já envelhecidas teses nacionais-populares não raro se tornam argumento em prol do cinema mais conservador e desprovido de ousadia feito em Terra Brasilis. Não foram poucas as vezes em que as visões cinematográficas mais tipificantes e vampirizadoras se ampararam no discurso de “mostrar o Brasil de verdade”.

Os olhares históricos, nos últimos anos, em geral têm preferido as versões amenas e glorificadoras (ou, inversamente, negativas) das personagens mostradas à humanização das mesmas ou à atualização dos conflitos que protagonizaram – são armadilhas em que muitos tropeçam por conta do intento de se tornarem agradáveis ao público que hoje freqüenta cinemas em salas de shopping centers (intento, note-se, em raras ocasiões alcançado). É o que ocorre em grande parte dos retratos referentes à fase dos militares (O Que É Isso, Companheiro?, de Bruno Barreto, Lamarca, de Sérgio Resende, entre outros) ou a outros momentos históricos (Olga,de Jaime Monjardim, Diários de Motocicleta, de Walter Salles, Guerra de Canudos, de Sérgio Resende, entre outros). Da mesma maneira, as visões sobre favelas, subúrbios ou comunidades rurais esbarram em olhares mitificadores, pouco interessados em dramas que não corroborem suas teses. É o caso de Orfeu, de Carlos Diegues, de Quase Nada, de Sérgio Resende, e, de forma realmente patológica, de Deus É Brasileiro, também de Diegues (em que um Deus desanimado passeia por um país desajustado às suas vontades) - bem como dos sucessos de bilheteria Central do Brasil, de Walter Salles, e Cidade de Deus, de Fernando Meirelles. E se as alegorias, sempre um tanto totalizantes, hoje estão fora de moda, ainda percebem-se eventualmente algumas tentativas de propor teorias nacionais a partir destas encenações de momentos históricos ou de conflitos contemporâneos. Como, pela natureza da estrutura de produção de cinema que se estabeleceu nos últimos anos no Brasil, cada realização passou a depender, sobretudo, do talento e da vontade de cada realizador, em diversos casos tivemos exemplares bem-sucedidos – na maioria dos casos, foram filmes em que as teorias nacionais são antes atacadas de forma original do que impostas através de uma estética arcaica. É o que ocorre na relação entre estrangeiro e nacional em Amélia, de Ana Carolina (quando nenhum dos lados tem o privilégio da razão), na oposição entre liberdade e regras sociais em Abril Despedaçado, de Walter Salles (quando o conflito de mortes só pode ser encerrado com a fuga, sem conciliação possível) ou na nova configuração do conflito entre classes sociais presente em O Invasor, de Beto Brant (em que a instabilidade entre ricos e pobres não gera conflito e sim uma união constrangida de interesses).

Enquanto o cinema em chave épica, aquele que procurou falar de um certo caráter nacional, embrenhou-se diversas vezes nos últimos anos em armadilhas das totalizações, mais felizes têm sido os resultados das obras que se interessaram pelo íntimo de seus personagens. Seja com personagens históricos (em Madame Satã, de Karim Aïnouz, por exemplo), com personagens periféricos (Um Céu de Estrelas, deTata Amaral, O Primeiro Dia, de Walter Salles) ou dentro do registro documental (Nelson Freire, de João Salles, Santo Forte, Edifício Master e todos os demais filmes de Eduardo Coutinho), foram muitos os casos nos anos recentes em que a aproximação do cotidiano trouxe olhares inquietos sobre pessoas e personas - pequenos fragmentos do país.

É interessante, neste caso, notar a experiência do veteraníssimo Nelson Pereira dos Santos, que optou por fazer dois filmes ao retratar a vida e obra de Sérgio Buarque de Hollanda. Se um filme nunca poderá contar de forma inteiramente fiel uma vida, Nelson faz justamente do choque entre seus dois filmes a riqueza do seu retrato. Dedicando a primeira parte a mostrar a família e as lembranças que cada um tem de Buarque de Hollanda (o retrato íntimo) e a segunda a narrar seu percurso intelectual e familiar, sempre relacionando a uma visão da história do país (o retrato histórico), Nelson Pereira soube dar a seu personagem a imagem de grandeza e de afetividade que lhe interessou. E, mesmo unindo o retrato histórico e o da intimidade, conseguiu transmitir a sensação de que os seus filmes não darão conta da pessoa retratada nem tampouco pretendem fazê-lo. Que o filme duplo de Nelson tenha sido pouco visto e entendido, isso sugere muito das dificuldades que um cinema brasileiro terá para provocar discussões entre seu público.

Mas, se ainda é possível que se diga que o filme de Nelson Pereira, por sua própria natureza, não mostrava maiores ambições em atingir o público, mais incômodo e preocupante é o caso das Garotas do ABC de Carlos Reichenbach. Retratando dramas cotidianos de um grupo de operárias da periferia urbana de São Paulo, o filme de Reichenbach teve um sério entrave: para o público que hoje freqüenta as salas de cinema, não há nada mais distante do que este tipo de retrato do cotidiano. Acerca de filmes com personagens do subúrbio das grandes cidades, percebe-se interesse do publico pagante por narrativas em torno de traficantes ou matadores (é o caso, por exemplo, de Cidade de Deus), ou mesmo pela violência que cerca o cotidiano das famílias (como em Contra Todos), mas o mesmo interesse não se manifesta pelas questões afetivas de mulheres trabalhadoras do subúrbio. O público que se interessa por este retrato afetivo do cotidiano habita outro lugar, social e geográfico – e o cinema brasileiro não consegue mais chegar a esse público, de renda baixa, que em outros tempos foi o seu principal destino, o seu mais fiel companheiro.

Chegamos, portanto, a um ponto, já antigo e bem conhecido, que enclausura a discussão de idéias e mantém uma imensa parte do cinema brasileiro à beira do autismo: é a ausência de uma estrutura de difusão dos filmes, seja em salas de cinema, nas locadoras ou na televisão. Cinema é feito para ser visto e ouvido – e não são brasileiros os filmes disponíveis para a gigantesca maioria da população. Tendo seu mercado consumidor tomado e eventualmente sendo reduzido a um gênero cinematográfico (não é raro encontrar locadoras separando os filmes brasileiros em prateleiras específicas, como é feito com dramas, policiais e comédias), o cinema aqui produzido sustenta-se quase integralmente através do suporte estatal, por meio de concursos e leis de incentivo. Mantido desta forma, tem abafados seus discursos e limitada sua capacidade de diálogo dentro da sociedade. Com raras exceções, quase sempre dignas de comemoração, a maior parte dos filmes brasileiros só consegue ter acesso a um público restrito às salas-bistrô do cinema de arte. Certamente seu impacto sobre este público pode ser profundo em diversos casos e escalas. Mas há um problema evidente nesta relação, na qual o Estado brasileiro cumpre o papel de mitigador de conflitos, sustentando através de esmolas (às vezes bastante caras) uma produção contínua que não é vista pela população que a sustenta. Adicionando-se a isso a lembrança de que o próprio Estado mantém uma rede de programação televisiva, onde não são exibidos os filmes que patrocina, temos então um triste retrato dos vícios criados por uma legislação baseada no princípio de manutenção de um hipotético “mercado cultural” (por mais paradoxal que seja o conceito). Feitos para criar um mercado e não tendo acesso às salas, locadoras e redes de televisão deste mercado, os filmes, como se pode perceber em diversos casos, têm procurado se adequar aos formatos mais palatáveis para o público de cinema.

Certamente devemos comemorar a cada ocasião em que um filme é bem-sucedido, seja comercialmente, quando vence as armadilhas da exibição e alcança um público expressivo, seja sobretudo esteticamente, quando sabe ignorar estas armadilhas e se faz maior – vale lembrar a bela frase de Paulo José, quando uma vez disse que o Brasil às vezes ainda faz o melhor cinema brasileiro do mundo. No entanto, não se pode negar a evidência: se esse cinema só pode ser visto por uma elite, os filmes bem-sucedidos podem ser centelhas, fagulhas que provocam o incêndio, mas esse cinema, no aspecto geral, jamais poderá ser a fogueira ou mesmo parte dela. Pode, de todo modo, retratá-la através dos seus fragmentos – e é preciso sempre notar a força que certos filmes mostram em seus resultados finais.

Do que precisa então o cinema brasileiro para trazer inquietação, discussões e novas idéias à nossa sociedade? Necessita de ousadia, certamente – precisa querer incomodar, como cabe à melhor arte. Mas necessita, antes de tudo, que seja difundido de forma ampla (e não somente nos ocasionais eventos midiáticos criados pela Globofilmes). Para isso, é preciso encontrar seu público, ser exibido onde ele está, seja na rede pública de televisão ou em estruturas de difusão alternativas. Como se sabe, as visões mais ricas são as que conseguem abarcar fragmentos em maior número e diversidade possível. E este cinema precisa ser visto.

Texto publicado na edição nº 4 da revista Pensar Brasil, de maio-junho de 2005

Carreiras (2005)


Carreiras tem um clima febril, como uma embolada de idéias e momentos de uma personagem. E, desde o início, um eixo político se apresenta bastante claro em Carreiras, a defesa de um cinema de custos baixos e produção simples. Se isso já era evidente nos filmes anteriores de Domingos Oliveira, aqui a questão é explicitada em cartelas – desse modo, o realizador data e contextualiza as circunstâncias de sua produção, e a atmosfera do filme contamina-se por esta questão, dando ao seu enredo um certo sentido de urgência,

urgência que Domingos Oliveira controla e apresenta com sua encenação: esse é, dos seus filmes mais recentes, o mais escancaradamente ficcional na sua parte central, a história da jornalista Ana Laura. Carreiras não abandona o tom de realismo exacerbado dos filmes recentes do realizador, mas de todos é o que torna mais evidentes as características próprias de sua personagem protagonista – a Ana Laura de Priscilla Rozembaum não se confunde com o cotidiano da atriz ou de Domingos, ao contrário do que sugeriam certos momentos de seus outros filmes recentes – e Domingos Oliveira é essencialmente ficcionista, disso não há dúvidas. Dessa maneira, se o filme esclarece desde o princípio seu discurso político subjacente, Carreiras encontra sua força no plano ficcional de construção de uma personagem – não por acaso, é também o filme mais bonito visualmente entre os recentes do realizador –

e essa construção revela aquilo que os discursos podem apoiar mas não podem criar: a personagem encarnada pela atriz. Entre as muitas referências que costumam ser feitas ao cinema de Domingos Oliveira (Woody Allen, Fellini, Truffaut...), uma precisa ser acrescentada e destacada, a do norte-americano John Cassavetes – porque é no seu cinema que podemos encontrar um tom de urgência semelhante, assim como uma criação (feita de ação+improvisação, realismo exacerbado) tão forte de personagens por seus atores,

como atua aqui Priscilla Rosembaum, tal qual uma Gena Rowlands tropical, enfurecida. Sua egóica Ana Laura faz de Carreiras um filme único, admirável. Egoísta, ambiciosa, manipuladora, enraivecida, bêbada e cocainômana, com os cabelos brilhando ao sol da manhã, vai surgindo com força surpreendente a sua persona.

O que o filme tem de exemplar as cartelas iniciais já tornaram bastante claro. Carreiras diz e mostra que a ficção pode ser feita com criatividade e simplicidade, sem grandes custos, e que isso deve ser estimulado:

portanto, pelo que tem de exemplar, é projeto a ser seguido. Domingos já disse que está “quinhentos anos atrasado”. Tão atrasado quanto ele está o cinema, como se ironiza na comparação feita entre este e o teatro, no irônico diálogo coletivo inicial em mesa de bar. Mais atrasado do que Domingos e do que o cinema de modo geral, não há dúvidas, está o sistema brasileiro atual de produções caras que Carreiras critica.

Mas, por ser feito com criatividade, como já se disse, apresentar suas circunstâncias e datar-se não reduz o que o filme tem de único, ao contrário. Este sentimento de urgência que contagia a narrativa se alia à força da sua personagem - daí, mais do que imprescindível, Carreiras se torna cativante.

Texto publicado em setembro de 2005

Ética e moral

Um fato curioso: as questões sobre “como proceder” estão em voga nos filmes brasileiros recentes. Seja no envolvimento entre o íntimo e o social em Bens Confiscados, seja na oposição apresentada em De Passagem e no exame de relações sociais de Quase Dois Irmãos, seja nas trajetórias dos metalúrgicos esquecidos ou do metalúrgico levado ao poder em Peões ou Entreatos, seja na entrega da câmera pelo realizador aos presidiários em Prisioneiro da Grade de Ferro ou no direito do historiador em inventar o relato do passado em Narradores de Javé, ou mesmo em questionamentos ambíguos e problemáticos acerca dos procedimentos de corpos sociais específicos, como em Ódiquê e Contra Todos - em todos estes exemplos (e em diversos outros recentes) as questões éticas não são pano de fundo, são tema central. Será que estes exemplos indicam um movimento de tomada de posição coletiva de cineastas diante da célebre crise moral que assola o país? Talvez, ou talvez seja apenas um sinal de uma certa sintonia que se evidencia, para sorte da relação entre o cinema brasileiro e seu público - certas questões urgentes não se bastam em representações metafóricas, distantes. Não há como fugir da velha constatação de que o cinema que mais tratará de nossas questões será aquele feito junto a nós (com as exceções eventuais). Ao contrário do que apregoam os profetas da miragem do cinema industrial, é ligando-se decididamente à sua realidade que o cinema brasileiro vem despertando interesse, seja na ficção ou no documentário.

Neste ponto é preciso notar como são reveladoras e eventualmente assustadoras as escolhas feitas em certos filmes, como os já citados Ódiquê e Contra Todos e ainda Nina ou Glauber o Filme. O posicionamento ético de um filme não se fecha no seu tema ou escolha do herói – ele se define também na relação que o filme constrói com seu público. Neste ponto, constranger a platéia para provar teses não apenas esvazia os objetivos – na verdade, conspira contra eles. Se para fazer cinema no Brasil é preciso ter muita moral, no sentido vulgar da palavra, é preciso ter também muita moral, no sentido original deste termo, para que os questionamentos éticos não se embaralhem entre certezas e erros.

Texto publicado em dezembro de 2004

24/07/2008

Os mistérios do cinema e do samba (ou Todos os caminhos levam à Bahia) - sobre Bahia de Todos os Sambas (1983/1996)

Há um ponto crítico que pode ser percebido nos textos que compõem esta pauta, assim como nos demais escritos sobre filmes vistos como guilty pleasures, filmes que gostamos mas que, por qualquer razão, nos parecem ser ruins – o ponto é justamente que isso implica em duas visões opostas partindo do mesmo sujeito. De onde se pode tirar que um filme amado é ruim? Isso implica então na crença em um ‘terceiro olho’, uma capacidade de analisar ‘corretamente’, de forma ‘objetiva’ – quando nos parece que amamos por razões ‘pessoais’ aquilo que nosso bom senso indica que não é de boa qualidade, seja lá o que isso signifique em cada situação.

Pois é, não por acaso os afetos se voltam, na maioria dos casos, para filmes vistos num momento anterior ao ‘início da cinefilia’, quando descobrimos então o que é ‘realmente bom’, e também não é por acaso os filmes escolhidos são em sua maioria tipicamente hollywoodianos – ainda estávamos desarmados para o que depois parece clichê.

O problema de alguns, entre os quais me incluo, era justamente em lidar com a idéia deste ‘terceiro olho’, este certeza de que um determinado filme predileto seja uma porcaria, com certeza (sabe-se lá qual).

Depois de catar um pouco na memória e nos arquivos, acabei por encontrar então um filme que, frágil sob inúmeros aspectos essencialmente cinematográficos, realmente me encanta – ainda que não seja um filme que eu vá indicar para qualquer pessoa. Na verdade só indicaria a fãs dos artistas que aparecem – são eles que fazem o filme ser encantador, apesar de todos os problemas.

Bahia de Todos os Sambas é um documentário sobre um festival de cultura baiana realizado em Roma no verão de 1983. Neste festival se apresentaram, entre outros, Dorival Caymmi, João Gilberto, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Novos Baianos, Batatinha. São eles os astros do filme. Um bom filme, como se sabe, depende sobretudo do seu elenco, e este aqui é realmente bom.

Quem não for fã certamente irá se irritar com os problemas técnicos do som, que já não era grande coisa no cinema e foi destruído na telecinagem malfeita das empresas de distribuição. Se este é um problema sério (sobretudo na equalização de instrumentos, captados de forma precária e primária) que a incapacidade técnica dos distribuidores se encarregou de agravar ao extremo na versão em vídeo, não é no entanto o único do filme. Os pitorescos passeios filmados de Gilberto Gil e, mais tarde, das senhoras baianas por Roma não ajudam no ritmo, assim como as apresentações dos grupos de dança e capoeira e de Naná Vasconcelos – não imagino como tenha sido a passagem destes pela cidade italiana e pelo festival, mas pelo filme eles passam como turistas de caricatura. Se o não-fã mantiver o bom-humor diante dos problemas sonoros, precisará também ter uma paciência de Jó com a cadência do filme – se aos baianos não falta suíngue e ritmo, esse elogio não vale para o documentário. Sobretudo porque o filme nem sempre parece se encantar apenas pela beleza da arte que está sendo apresentada – há um fascínio com a visão de “manifestação de um povo” que é absolutamente desinteressante e ultrapassada. Não custa lembrar que o evento não se repetiu. A “revolução artística terceiro-mundista” não conseguiu ser mais do que moda de verão, e este povo ideal continua exatamente onde sempre esteve – continua existindo somente nas teses de uns e outros.

Para complicar tudo, depois de ver a obra o fã vai reconhecer os diversos problemas dos créditos do filme. Para se ter uma idéia, há uma confusão entre composições de Pixinguinha – Lamento, que abre o filme numa interpretação de Armandinho, é chamada de Carinhoso... Mais grave que isso, uma imensa parte dos músicos que aparecem na tela não é creditada – quem não for fã que trate de desistir!

Não, decerto não seria um filme a se indicar a uma pessoa desconhecida. Ainda mais que, nos casos mais famosos, estarmos tratando de artistas que despertam paixão e ódio – um ódio que, se já vinha se tornando cada vez mais comum devido ao valor dado pela mídia a estes artistas, só tende a aumentar diante das circunstâncias, quando vemos Gilberto Gil, um dos maiores destaques do filme, receber e aceitar o convite para assumir o Ministério da Cultura.

No entanto, o filme tem o mistério do samba. Isso não se explica, apenas se percebe.

Curiosa a escolha do Lamento de Pixinguinha para o início. A música carioca de Pixinguinha era filhote tanto dos ritmos negros das casas das tias baianas como da música importada da Europa, fosse através da música de igreja ou dos ritmos europeus de dança. Assim, parece que começamos com uma composição que representa toda essa mistura que tantos encantos trouxe – numa interpretação modernizada pelo solo de Armandinho, calcado na interpretação clássica do Jacob do Bandolim.

Pixinga participava de festas e reuniões em que se tocava e cantava o ritmo amaxixado que ganhou o nome de Samba no registro de Donga de Pelo telefone, como se sabe. No entanto, sempre foi notada a possível origem baiana do samba de roda, que teria sido trazido para o Rio de Janeiro nas imigrações conseqüentes do fim da escravidão. Isso tudo são águas passadas, discussões sobre uma época em que se dizia que “samba no morro não é samba, é batucada” – e, como já disse o poeta, o samba não nasce no morro nem na cidade, ele nasce no coração. Mas tudo isso vem à tona quando vemos Batatinha cantando seus sambas.

E surge mais evidente ainda quando aparece Dorival Caymmi, tendo uma conversa pitoresca com Caetano Veloso – que comenta sobre a participação do patriarca nos vários momentos de sucesso da música brasileira em outros países. Para exemplificar, vemos um registro de Carmem Miranda cantando O que é que a Baiana Tem, a música que o tornou célebre na interpretação feita em 1939, quarenta e quatro anos antes do festival se realizar. Depois de Caetano Veloso fazer um comentário sobre a linhagem baiana, surge João Gilberto. Se Caymmi parece representar uma música que sempre existiu, que é anterior ao céu e à terra, João Gilberto canta algo que é sempre estranho, novo e repetido, diferente, pensado e cuidado. É o artista essencialmente apolíneo – o biscoito fino para as massas de que falou o modernista. João homenageia a Itália cantando Estate num idioma próximo ao local.

Depois dessa apresentação de uma certa linhagem do samba baiano, voltamos a Batatinha, depois chegamos à geração tropicalista – numa fase especialmente interessante de suas carreiras, antes de guinadas no caminho da música pop anos 80. Gilberto Gil, vindo de discos espetaculares como Refazenda, Refavela e Realce, repassa prazerosamente e cheio de balanço três canções de um período em que estava emplacando sucessos ano a ano, a célebre Aquele Abraço e mais Ela e Toda Menina Baiana.

Depois de Gil temos, enfim, Dorival Caymmi. Na época, 1983, Dorival já havia gravado todos os discos que definiram sua obra – no ano seguinte gravaria o seu último disco solo, sob a batuta de Radamés Gnattali – patrocinado por uma empresa, este disco só foi lançado para o grande público no final da década de 90. Já sendo um senhor de idade – e quando não foi? –, Dorival canta A Preta do Acarajé, a canção que Carmem Miranda gravou com ele no outro lado do disco de O Que É Que a Baiana Tem. Canta com seu violão suingado, seu ritmo de samba de roda que ninguém conhece tão bem. Depois canta em companhia da filha Nana a Canção da Partida que encerra a sua Suíte dos Pescadores.

Canta em Roma, a cidade antiga, mas está tranqüilo – sua música é anterior a tudo aquilo. A música de Dorival Caymmi parece eterna, antediluviana, anterior à separação dos continentes, à criação da Terra, ao surgimento da Via Láctea. Com sua simplicidade, Dorival parece estar sempre fazendo as coisas mais belas. Poucas coisas são tão bonitas quanto a música de Caymmi.

Depois teremos Gal Costa na função de musa, cantando Índia e Canta Brasil, já numa fase bastante distante da cantora ousada que um dia tinha sido, mas ainda mantendo um repertório de qualidade e original (não por muito tempo). Em seguida, Caetano Veloso, acompanhado da sua Outra Banda da Terra (provavelmente a fase mais feliz de sua carreira), canta dois clássicos desse período, Lua de São Jorge e Sim/Não, para em seguida mostrar aos italianos sua versão em voz e violão para Eu Sei Que Vou Te Amar, da dupla Vinícius/ Jobim.

Para sugerir que o percurso está acabando, voltamos a João Gilberto. Canta duas de Jobim, Wave (que havia gravado no disco Amoroso) e em seguida Insensatez – cuja gravação original é do seu terceiro disco, aquele em que Jobim arranjou apenas uma parte das faixas – e talvez sejam os arranjos mais bonitos que fez, os para Coisa Mais Linda, O Barquinho, Meditação e sobretudo Insensatez, variação de uma peça de Chopin. João regrava Insensatez três anos depois de voltar a morar no Brasil, depois de décadas no exterior – onde, depois das suas gravações históricas com Jobim na Odeon, fizera discos antológicos como João Gilberto En Mexico, o já citado Amoroso e o disco branco João Gilberto, onde interpretava, entre outras, Falsa baiana. João aparece no filme só nos shows, só com sua voz e com seu violão sincopado e constante, sua batida que mudou tudo, que parece ter uma firmeza que nos sustenta, que funciona de chão para o nosso dia-a-dia. A Itália certamente devia um registro de alto nível da música de João, uma vez que foi a península que, duas décadas antes, teve a sorte de ser o lugar escolhido para uma turnê de João com seu xará Donato – turnê da qual não há registros conhecidos. Depois, mais um registro histórico – João canta Louco (Ela Era Seu Mundo), uma canção de Wilson Batista que, mesmo sendo comum em seus shows, ele nunca gravou em disco. João dá seu recado ao regravar Wilson, assim como já regravara diversas vezes Geraldo Pereira ou Janet de Almeida – se sua música é aparentada com a eternidade de Caymmi e com a sofisticação de Jobim, ele também é herdeiro e intérprete da música carioca da época do rádio, sobretudo do samba sincopado dos malandros da Lapa.

Depois do prazer de ver e ouvir João Gilberto, temos a explosão da batucada para terminar o filme – seria uma oposição dialética entre Apolo e Dionísio? Ok, isso foi uma piada. Então, canta Caetano Veloso É Hoje, o samba da União da Ilha, para depois Gal cantar o hit Festa do Interior e terminar com Armandinho e os Novos Baianos Moraes Moreira e Paulinho Boca de Cantor apresentando Vassourinha Elétrica e depois Pombo Correio, em cima de um trio elétrico que se arrasta pelas ruas de Roma.

Temos aparições antológicas, então, da geração tropicalista, dos Novos Baianos, de Batatinha, de Armandinho. E temos a oportunidade de assistir a Caymmi e João Gilberto. Azar se não for bom cinema, o cinema que se dane – porque coisa melhor não há.

Texto publicado em dezembro de 2002

Novo cinema vivo

Recentemente, tivemos a notícia de que foi aprovada pelo Congresso a prorrogação e ampliação das leis de incentivo à produção audiovisual, além da criação de um fundo governamental de suporte à área. Esta ação se baseia na crença de que a produção audiovisual possui um valor cultural em si que justifica a sua manutenção através do apoio estatal (e, é claro, baseia-se também no reconhecimento implícito de que não há condições de mercado para sua auto-sustentação). E em que se baseiam as escolhas feitas pelos agentes do suporte estatal? Na avaliação de uma necessária representatividade cultural – ou seja, que os projetos escolhidos, em sua complexidade, ofereçam o retrato cultural mais “correto” possível da vida e dos desejos dos cidadãos do país. Com maior ou menor gradação, esta preocupação está na pauta de todos os agentes governamentais incumbidos de apoiar a produção audiovisual brasileira – ela sustenta a lógica da atual opção pelo apoio à regionalização das produções, por exemplo. Não é surpreendente, portanto, que o movimento do Cinema Novo volta e meia seja evocado feito fantasma insepulto para assombrar as novas produções - afinal, uma das preocupações fundamentais daqueles filmes é justamente esta: como retratar no cinema as principais questões da sociedade brasileira (e, assim, participar de sua transformação)? A questão seguinte também ainda incomoda, sobretudo num país em que a maior parte da produção de audiovisual independente é mantida pelo Estado: quem define quais são estes temas de interesse? E de que modo?

Algumas das cisões decisivas do período cinemanovista continuam dividindo as opiniões: os filmes a serem produzidos devem ser muitos e baratos (seguindo a lógica franciscana da frase de Saraceni sobre uma idéia na cabeça, uma câmera na mão e nada além do necessário) ou devem apresentar características (narrativas e estéticas) que permitam a inserção no mercado (porque, como já disse Gustavo Dahl décadas atrás, mercado é cultura)? Não custa lembrar que, dos mais de setenta filmes que estrearam em São Paulo em 2006, nem vinte deles tiveram público acima de dez mil pessoas, e somente dois passaram da barreira de um milhão de espectadores. Ou seja, talvez até se possa afirmar que “mercado é cultura”, mas a coisa se torna complicada no sentido inverso – se toda a cultura dependesse do “mercado”, ou seja, do comércio dos filmes, não teríamos nem cinco filmes brasileiros sendo produzidos por ano. Por isso se faz necessário o apoio estatal – mas para que tipo de filme? Se notamos que os duelos recentes em torno desta questão tiveram como protagonistas alguns célebres cinemanovistas (o já citado Gustavo Dahl até recentemente na presidência da Ancine, além de Orlando Senna na Secretaria do Audiovisual e Carlos Diegues, Luiz Carlos Barreto e Arnaldo Jabor questionando publicamente as escolhas governamentais – apoiadas, por outro lado, por nomes como Paulo Cezar Saraceni, Vladimir Carvalho e Nelson Pereira dos Santos), percebemos então mais uma razão para que as preocupações acerca de representação cultural do país (naturais do Cinema Novo) permaneçam à tona, reavivando velhos confrontos. Não é apenas uma certa ideologia cinemanovista que faz parte do poder atualmente – os próprios participantes do movimento continuam em primeiro plano.

Mas não é somente a agenda nacional-populista que esteve na base das idéias cinemanovistas - a contestação ao modelo vigente de narrativa cinematográfica, preocupação comum a todos os filmes, textos e diálogos do movimento, está hoje escanteada, presente em um número reduzido de filmes e não raro vista preguiçosamente como uma questão “datada”. Se as preocupações estéticas hoje são outras, o interesse cinemanovista em retratar a sociedade brasileira segue presente em numerosos filmes, de “Central do Brasil”, de Walter Salles, a “Amarelo Manga”, de Cláudio Assis, de “Cronicamente inviável”, de Sérgio Bianchi, a “Dois Filhos de Francisco”, de Breno Silveira, assim como em muitos dos documentários brasileiros recentes (“Vocação do poder”, “Ônibus 174”). É claro que isto também pode ser apontado em filmes recentes dos próprios veteranos do movimento, tão diversos como “O Maior Amor do Mundo”, de Diegues, “Edifício Master”, de Eduardo Coutinho, “Banda de Ipanema”, de Saraceni, e “Brasília 18%”, de Nelson Pereira. Da mesma forma, as preocupações em torno do “diálogo com o público”, comuns nos escritos dos anos 60, ainda são recorrentes (e é curioso que às vezes se conceda aos filmes mais preguiçosos a justificativa de supostamente procurarem este “diálogo com o público”).

No entanto, para compreender as grandes mudanças de perspectiva, é preciso ter em mente as diferenças de conceituação: o Cinema Novo que estava acontecendo nos anos 60 não foi em momento algum a mesma coisa que o Cinema Novo que podemos compreender hoje – até porque não se pode comparar o momento em que surge um movimento ao momento em que suas propostas, já consolidadas, permanecem presentes diante de novas circunstâncias. Aquele foi um movimento de jovens em busca de uma certa arregimentação coletiva a partir de interesses comuns, enquanto hoje o que temos é a permanência de temas, esta série de características percebidas historicamente que continuam presentes nos filmes recentes. Não faz sentido conceituar Cinema Novo tão-somente como sinônimo de um grupo fechado com propostas já há muito conhecidas. Esta conceituação equivocada, bastante comum nos dias de hoje, é na minha opinião a chave para compreender a recente recusa de Nelson Pereira em ser classificado como cinemanovista, a ponto de preferir que seus filmes dos anos 60 não fossem incluídos na mostra atualmente em cartaz no CCBB-SP (o que gerou um certo desencontro de informações para alguns jornalistas). Ainda que na década de 60 ele tivesse opinião diferente (Nelson já se disse parte do Cinema Novo, como se pode verificar numa entrevista de 1964 publicada em “O Processo do Cinema Novo”, de Alex Viany), eu enxergo certa lógica na recusa: com a distância histórica, as crenças e os caminhos dos cinemanovistas (os que sobreviveram) se distaciaram das que Nelson escolheu, a seu ver – porque o que era Cinema Novo em 1964 é diferente do que é o Cinema Novo em 2007.

Rever os filmes do período em um panorama amplo nos dá a chance de tentar compreender o percurso dessas idéias ainda tão presentes. E não importa se esta compreensão parcial do percurso não é o mesmo que vivê-lo – afinal, esta revisão pode gerar novos percursos. Esta inquietação gera uma contaminação certamente muito mais interessante do que a preguiça dos que têm por hábito não ver os filmes e repetir os velhos discursos (isso parece uma obviedade, mas é preciso lembrar que ver os filmes é imprescindível para poder pensar e falar sobre eles).

Há atualmente diversos empecilhos que impedem a difusão adequada dos filmes brasileiros – esta velha questão, anterior ao período do Cinema Novo e bastante discutida naquele momento, continua tristemente atual em meio a todos os processos de modernização: quase todos os filmes brasileiros, recentes ou antigos, são inacessíveis para a imensa maioria da população. Há poucas salas para exibi-los, os lançamentos em DVD são limitados e eles praticamente não são exibidos nas emissoras de televisão, nem mesmo nas redes públicas (e por que não são? Eis a questão!).
Isso não impede, no entanto, que a linguagem audiovisual seja renovada pelos filmes e compreendida de modo cada vez mais ágil pelos espectadores de uma era posterior ao surgimento dos videoclipes e videogames. Pensar nas relações que podem nascer da agilidade inconstante dos olhares de hoje com a inquietação criativa e transformadora daqueles filmes dos anos 60 já é um bom motivo para uni-los em seqüência mais uma vez – e poder (re)ver os filmes daquele movimento de jovens em busca de novos caminhos audiovisuais. Porque há novos cinemas a surgir por aí, vários movimentos jovens e potencialmente criativos que estão aparecendo no panorama do audiovisual brasileiro – e é preciso saber o que nossos cinemas ainda têm de novo para poder alimentar o que vem pela frente

Texto publicado no caderno Fim de Semana da Gazeta Mercantil de 9/02/2007

Pecados de Guerra (1989)


Há uma tristeza tremenda que parece definir Pecados de Guerra. Em cada plano, cada imagem e cada som há uma dor rara de se ver filmada. Não é agradável, portanto – mas é essa tristeza que justifica e sustenta o filme.

Em plena guerra do Vietnã, o soldado Eriksson é colocado diante do dilema de ser ou não conivente com um crime hediondo cometido por seus companheiros de farda – o estupro de uma jovem vietnamita. A narrativa toma o ponto de vista deste soldado, por mais instável e inseguro que ele pareça ser em diversos momentos. Ele não contemporiza em momento algum, em nenhum instante ele parece aceitar a idéia de ser conivente com o crime – mas ele falha, e com ele falham e falhamos todos. Não, decididamente não é um filme agradável.

A guerra é o inferno para quem está lá, com certeza – e a gente sempre lembra que se tratava de uma invasão a um país que não desejava receber a “ajuda” que vinha da América do Norte (algo semelhante a 2003?). Bem, mas a história é sobre um personagem que lá está, no meio da guerra, num lugar onde a vida pode de fato terminar no instante seguinte. Convive com seus companheiros, fica amigo deles, tem a vida salva por eles, quer sair do acampamento com eles – para encontrar prostitutas locais –, em suma, guerrear é um troço simples, você faz parte dos bons e os inimigos são os maus. Só que, não podendo ter encontros com mulheres em determinada noite (guerra é guerra), os seus companheiros resolvem se exceder um pouco. E aí? Salvaram a vida do cara, são os camaradas dele, até que de repente há um certo surto coletivo – induzido por diversas circunstâncias, inclusive pela estrutura hierárquica – e os caras que têm o discurso de salvar o mundo mostram que perderam em definitivo o respeito pela vida alheia. Fazer o quê, então?

O ponto ético central do filme é nunca tergiversar, nunca negar a gravidade do ato ou justificá-la por conta da realidade que cerca a situação – ao contrário, a narrativa percebe que essa realidade só torna ainda mais problemática a atitude. Não deve ter sido fácil para os americanos ver esse retrato na tela: entraram no país dos caras, mataram milhares dos caras e ainda estupraram e mataram as jovens mulheres do lugar. Além disso, também perderam milhares de vidas e terminaram escorraçados da região – e o início do filme se passa no final do período político seguinte, o de Richard Nixon sendo investigado por Watergate. A expressão de Eriksson ao ouvir as últimas frases do filme (“mas o pesadelo agora acabou...não? Espero que sim.”) indica que, infelizmente, parece que esse pesadelo é recorrente.

Que não se pense, no entanto, que este pesadelo recorrente é privilégio de nações guerreiras – na nossa guerra civil de cada dia temos nossas versões diversas para os gestos doentios da estupidez coletiva de pequenos grupos, como podem atestar casos tenebrosos de vandalismo juvenil. E o que fazer numa hora dessas? O filme se posiciona – tem que ter brio para não ficar ao lado da turma. E sobreviver.

A presença única desse conflito moral – cuja opção não é nem pode ser posta em questão – torna este filme estranhamente diferente dos demais filmes do diretor. Ao invés de trabalhar seu fascínio pela técnica narrativa de cinema e pela analogia com o engodo da aparência, De Palma deixa por um momento de dedicar sua vida ao cinema e dedica seu cinema à vida. Daí encontra a razão de ser do seu projeto e daí também – contando com o desempenho fabuloso do elenco – encontra toda a força e dor que tornam o filme incomum e impressionante.

Noel, o Poeta da Vila (2007)

Seria simples justificar o interesse por Noel, o Poeta da Vila atribuindo ao filme a qualidade de nos relembrar de modo afetivo as canções do compositor, e de fato o filme depende em grande medida das criações de Noel Rosa. Mas há algo além: o que o filme tem de mais interessante, mais do que as canções, é o modo que encontra para trazê-las. Noel, o Poeta da Vila lida com personagens que hoje ícones da canção popular brasileira – e trabalha isso na chave do despojamento, do encanto prazeiroso da simples encenação. O filme parece menos preocupado em dar consistência psicológica aos personagens do que permitir que eles simplesmente se imponham no ambiente.

Nesse sentido, é especialmente feliz aqui a relação entre os ícones do passado e os músicos do presente. Parece simples, e de fato o é, usar jovens sambistas como Pedro Miranda e Eduardo Galloti, ou mesmo um já não tão jovem como Wilson das Neves, para trazer ao filme a ambiência das rodas de samba da época – e o trunfo do filme é apostar antes na simples construção do ambiente do que na falsa verossimilhança da recriação posada. Assim, pode-se dizer que o filme se orienta mais para criar imagens que reúnam afetivamente numa construção narrativa as canções de Noel do que para elaborar um universo dramático – como se vê no final, a criação da cena que origina o clássico “Último desejo” é mais interessante como uma invenção fabular do que como um clímax dramático.

Todo o filme tem esse tom, e é isso que lhe dá charme – cada canção parece ter a sua própria estória, sem demandar qualquer espécie de verossimilhança dramática para isso. Desse modo, Noel, o Poeta da Vila merece um elogio singular: é um longa-metragem que parece curta. Não apenas porque tem uma graça que parece torná-lo leve, mas principalmente por, ao ser um somatório de canções, ambientes e momentos encontrados de forma afetiva, demonstra uma discreta e deliciosa liberdade no modo de narrar. Noel, o Poeta da Vila é um filme que mostra mais interesse em adentrar ambientes e rever a beleza das criações musicais do que em seguir os tons, andamentos e modulações dramáticas do academicismo típico. Deste modo, em seus melhores momentos guarda a beleza instantânea de uma boa roda de cantoria com pandeiro, cavaquinho e violão.

Texto publicado originalmente em novembro de 2007

Discutindo esse tal de “cinema popular” no Cine BH

No início de novembro aconteceu em Belo Horizonte o CineBH, no aprazível bairro de Santa Tereza. Aconteceram alguns encontros bacanas por lá, tanto de filmes quanto em mesas de debate – participei de duas delas, numa mostra em que foram exibidos em sessão dupla o clássico São Paulo S.A., do Person, e o bonito A Via Láctea, da Lina Chamie, e que também exibiu Eu Matei Lúcio Flávio em tempos de Tropa de Elite. O filme do José Padilha acabou sendo discutido em boa parte dos debates, mas é um filme com questões tão específicas que merece um artigo à parte. Mas, de todo modo, o que me motivou a escrever essa crônica foi a participação em duas mesas que, de certa forma, trataram dos espaços tidos pelos filmes brasileiros recentes. Isso, somado à leitura de uma interessante entrevista de Jorge Peregrino, o responsável pelas ações de distribuição da Paramount na América Latina, me levou a querer voltar a alguns pontos aqui na Contra. Para registro.

Não pude, para meu azar, estar presente na abertura nem na primeira mesa de debates, que contava com a presença de vários realizadores mineiros. Na primeira mesa em que participei lá em Belo Horizonte, no segundo dia da Mostra, estive na boa companhia do Hernani Heffner, do José Carlos Avellar e do Inácio Araújo. No final o debate esquentou: que tipo de filme deve ser estimulado no país e que tipos de filme devem ser produzidos? Inicialmente o Hernani fez um histórico naquele nível fabuloso que a gente conhece e me levou a pensar em algo que pode parecer evidente, mas precisa ser compreendido para se entender o panorama atual: por conta de todas as alterações na própria forma de ter acesso aos filmes, o público de cinema mudou inteiramente seus modos de acesso, seus gostos e seu repertório. Não foram poucos os que sonharam com uma indústria de cinema no Brasil e gastaram fortunas e anos nessa quimera – mas hoje um sistema desse porte soa ainda mais irreal justamente porque se trata de um sistema insustentável, que foi parte de uma outra era. Os sistemas com maior nível de produção dependem do apoio governamental ou de redes de televisão. E por aqui, como sabemos, há essencialmente um suporte estatal para a produção, com ainda incipientes esquemas de difusão.

Já que a produção depende das esmolas do suporte estatal, a questão da escolha dos filmes a serem apoiados volta sempre à tona, e esse primeiro debate de que participei não foi exceção. Um jovem curta-metragista mais entusiasmado defendia que era preciso apoiar mais filmes como O Invasor e que filmes como Carandiru nem deveriam ser feitos, na sua opinião. Bem, apesar de achar curioso que os filmes citados não sejam muito recentes, comentei que acho Carandiru um filme bastante interessante, como os leitores da Contra já souberam através de um Cinema Falado, mas o sentido geral do que ele disse (além, é claro, da empolgação, sempre louvável, mesmo que eventualmente cansativa) não me parece de todo errado. Avellar ponderou que, na sua opinião, qualquer filme realizado é algo bom, porque por pior que seja permite uma discussão sobre ele. Não discordo dessa afirmação, cuja tendência aqui no Brasil seria associar ao pensamento do Paulo Emílio, mas acho interessante voltar a essa questão depois de ter lido a entrevista do Jorge Peregrino, porque nela o distribuidor aponta que é preciso diferenciar filmes “autorais” de filmes “comerciais” – que os primeiros podem ser feitos a fundo perdido, mas os segundos precisam apresentar retorno de bilheteria, uma vez que é a isso que se propõem. Creio que qualquer tentativa de conceituar o que seria “autoral” em oposição ao que seria “comercial” seria bastante frágil – no entanto, parece-me mais simples diferenciar orçamentos altos de baixos orçamentos. Seria simples e estimulante para o espaço dos filmes se na nova versão da Lei do Audiovisual tivesse sido inserido um item que exigisse alguma espécie de reinvestimento da renda. Na atual estrutura de apoio filme a filme, no entanto, não existe cinema popular ou comercial, existem apenas ocasionalmente filmes-fenômeno, a uma média aproximada de um por ano, como se sabe.

De todo modo, vale lembrar, sem nenhuma dose de novidade, que nem o incentivo à produção nem a discussão sobre filmes podem ficar pautados pela questão da bilheteria. E, justamente por isso, a lógica do apoio às produções de baixo orçamento fazem muito mais sentido do que o benefício a um cinema dito comercial que no entanto dá prejuízo – digo que “faz mais sentido” porque é mais coerente com um esquema de incentivo que permite fenômenos eventuais, mas não organiza um sistema em que os filmes estão em relação direta com as platéias. (Talvez esse seja um comentário paradoxalmente repetitivo e fora de época, uma vez que a Lei do Audiovisual já foi prorrogada sem alterações nesse sentido).

No debate do dia seguinte, mediado pelo cinético Léo Mecchi, estiveram juntas pessoas que representavam algumas tentativas de difusão dos filmes, à margem do esquema de exibição em circuito comercial: cineclubes, festivais, DocTV, pontos de cultura. A discussão focava o fato de que cada vez há mais esquemas de difusão dos filmes que ficam à margem do circuitão se estabelecendo por aí – se o circuitão está cada vez mais barra-pesada, então a solução para a difusão é arrumar esquemas alternativos. Eu já tinha comentado com o Léo noutra ocasião que tenho tido a chance de ver como isso anda rolando por conta das notícias que recebo sobre as exibições do Conceição – fiquei sabendo de esquemas de difusão em horários alternativos, como faz o Cinecult, e dos esquemas de exibição em cineclubes que andam acontecendo, por exemplo. No final do debate, o foco na difusão pela TV levou a um questionamento sobre as ações recentes do governo, que foi defendido pelo Mauricio Hirata, diretor do programa DocTV. Essa ação do MinC de que o Mauricio participa é muito interessante, mas ele ficou numa saia justa, até injusta, quando foi lembrada a questão da exibição dos filmes incentivados na rede pública de TV. Por quê os filmes não são exibidos assim? Seria injusto cobrar uma resposta do Mauricio Hirata, que estava representando uma outra ação do MinC, muito boa como já foi dito. Mas a TV é a questão inevitável quando se pensa em difusão alternativa em larga escala.

Outra questão bem óbvia seria o uso da web. Não seria interessante se os filmes incentivados se tornassem disponíveis para download após alguns anos de janela comercial?

(Começo a ficar receoso de que esse texto se torne uma coleção de idéias fora de hora... Mas não fora de lugar, ao menos)

O segundo debate de que participei (e último em que pude estar presente), com mediação do Ricardo Calil, tratou de diálogos entre filmes de diferentes períodos – a curadoria do cinético Cléber Eduardo, como já comentei, juntou na programação filmes tematicamente próximos, como São Paulo S.A. e A Via Láctea ou Menino do Rio e Houve Uma Vez Dois Verões (além de relembrar Eu Matei Lúcio Flávio em tempo de Tropa de Elite). Lina Chamie, a diretora de A Via Láctea, falou sobre sua alegria em ver a reunião do seu filme com o do Person em uma sessão dupla – algo que ela já havia comentado com emoção quando apresentou o filme para o público – e também falou sobre outras relações com obras diversas que lhe ajudaram/inspiraram a produzir o seu filme. Como andei tratando dessas relações entre filmes de épocas diferentes em alguns trabalhos recentes (uma proposta de mostra, um texto juntando Rio Zona Norte e Madame Satã, outro juntando O Signo do Caos e Serras da Desordem), tentei tratar não exatamente do que aproxima os filmes, mas o que aproxima a própria origem deles – o que têm em comum na perspectiva de que partem para mostrarem seus mundos. O debate ficou animado pelos questionamentos propostos pelos mineiros da mesa, os professores Ataídes Braga e Paulo Augusto Gomes. No caso do primeiro, Ataídes comentou como as relações históricas imediatas entre filmes são ao mesmo tempo redutoras e irrestritas, já que outros filmes de temas semelhantes poderiam ser usados, levando a outras relações – Paulo Augusto, por sua vez, fez uma defesa do viés autorista, considerando de modo geral que essa perspectiva de diálogos não trata das questões ligadas ao talento dos realizadores. A partir de um comentário do mediador Calil e de outro do Cléber, saí do debate com uma questão na cuca, por conta da reincidência de algumas questões que aparecem nos filmes de uma forma quase cíclica, se esse termo já não estivesse contaminado demais ao se falar de filmes brasileiros. Cheguei a comentar sobre a relação que vejo entre O Signo do Caose Carnaval Atlântida, mas talvez tudo seja uma grande refilmagem de Carnaval Atlântida – e, eis o drama, agora sem Oscarito nem Severiano para ajudar a dar certo.

A impressão final, como ciclo, dá a volta e se assemelha ao início: a gente pode fazer filmes, mas sistema de produção que possibilite um cinema “popular” ou “comercial” só vai acontecer com espaço de difusão na TV e chance de reembolso e reinvestimento em novas produções. Sem isso, os filmes vão ser feitos, mas só vão poder se espalhar pelas margens – e ocasionalmente podem chegar à crista, que afinal é a margem superior das ondas.

Texto publicado em novembro de 2007

O Olhar de Mario Carneiro


Quando observamos em retrospecto, torna-se evidente como o trajeto estético percorrido por Mario Carneiro ao longo dos filmes em que trabalhou é fundamental na construção de visualidade própria do cinema feito no Brasil nas últimas décadas. Mais do que um simples modelo, o que o olhar de Mario Carneiro estabeleceu (junto com seus parceiros) foi a concepção de uma luz ao mesmo tempo complexa, com alto grau de elaboração, e simples, a partir de poucas fontes de luz. É comum e natural que o seu trabalho como artista plástico seja relacionado aos filmes que fez, como forma de compreender, através de sua trajetória, como se impôs o grau de sofisticação presente nos trabalhos de Mario – estes trabalhos que logo se tornaram referências no imaginário dos cinemas brasileiros. No entanto, ao vermos em conjunto as imagens que fez para dezenas de filmes desde o final dos anos 50, o que se torna notável não é apenas a sofisticação de um olhar acostumado a trabalhar imagens, mas sobretudo o modo como esta sofisticação se constrói: é um modo de poucos e bem-utilizados recursos, trazendo aos filmes um estilo visual simples, que se adequou tanto aos instantes em que as narrativas se voltavam à apreensão do cotidiano quanto aos momentos de construções visuais mais dramáticas e recortadas.

Esta simplicidade comum aos trabalhos de Mario Carneiro precisa ser relembrada ao se discutir o grau de influência deste olhar “pictórico” para registrar que o seu cinema não se trata de uma arte “armada”, como se fosse mera importação da construção pictórica para o registro fotográfico contínuo. Ao contrário – antes de apresentar uma “armação visual de mundo”, em que cada elemento parece ser exibido tão-somente para dar estrutura ao quadro (algo comum a muitos cineastas que elevam a estilização ao extremo), a visualidade dos filmes feitos por Mario Carneiro apresenta-se como uma construção a partir dos elementos do mundo. Estes “murais em movimento” organizam as imagens a cada instante a partir de uma conjugação de rigor, clareza e sensibilidade. Isto é evidente em diversos trabalhos seus, tanto no início da sua carreira em cinema, em Arraial do Cabo, de Paulo César Saraceni, quanto em anos recentes – em 500 Almas (que só tem o sol como fonte de luz), de Joel Pizzini, por exemplo.

Mário Carneiro, sempre um grande prosador, formou diversas parcerias ao longo dos anos – com Joaquim Pedro de Andrade, com Domingos de Oliveira, com Fernando Coni Campos, sobretudo com os citados Pizzini e, mais ainda, Saraceni. De Arraial do Cabo a 500 Almas, passando por Couro de Gato, Porto das Caixas, O Mágico e o Delegado e Harmada, entre tantos outros, sobressaem ao mesmo tempo uma coerência estética rara e uma beleza comum a todos os filmes – talvez sejam causa e conseqüência, talvez não. Cada filme tem suas características, seu tom próprio. Arraial do Cabo até hoje impressiona com suas imagens dos pescadores registradas num preto-e-branco cheio de sol, enquanto Porto das Caixas parece ser feito na palheta inversa, em meio à escuridão. Se Couro de Gato voltou à favela seguindo as lições de Rio 40 Graus, O Padre e a Moça apresenta uma fotografia recortada e estetizada até onde a beleza visual permite. Se Harmada usa luzes teatrais em ambientes interiores, 500 Almas utiliza-se do ambiente externo e das cores do dia. Além disso, Mario foi um diretor de cinema que manteve seu elo com a pintura, realizando documentários sobre alguns dos principais nomes das artes plásticas no Brasil, como o seu mestre Iberê Camargo, e ainda Milton Dacosta, Lygia Clark, Anna Bella Geiger, Cícero Dias, entre outros.

A memória do cinema brasileiro quase sempre esquece dos seus principais artistas – e sobretudo seus técnicos-artistas, aqueles que participaram da criação sem deixar a assinatura de realizadores. Há uns poucos que se tornam lendas entre iniciados, mas a verdade é que é bastante difícil imaginar um festejo para um técnico do cinema brasileiro - seja ele um diretor de fotografia, um montador ou um editor de som – que permita reunir diversos trabalhos seus numa mostra de filmes. É esta oportunidade que o Centro Cultural Banco do Brasil está oferecendo aos seus freqüentadores – e assim, de certa maneira, podemos imaginar quantos técnicos e artistas são necessários para gerar uma cinematografia.

Entre muitos, que se homenageie agora o talento de uma figura especial. A grandeza dos trabalhos do artista e técnico Mario Carneiro nos permite celebrá-lo nesta mostra. Portanto, vamos aos filmes.

Texto escrito para o catálogo da mostra Homenagem a Mario Carneiro, realizada entre abril e maio de 2007 no CCBB do Rio e SP.

23/07/2008

Brasília 18% (2006)

Brasília, sonho e pesadelo


Já se falou com razão da importância da atmosfera brasiliense na constituição de personagens e situações de Brasília 18%. Há, no entanto, algo que gostaria de apontar para que não se perca o filme em uma má compreensão: é preciso seguir a lógica onírica que rege esse universo, ou pouco do que se narra manterá sua força. Sob esse aspecto, não são pequenas as semelhanças que unem o filme de Nelson Pereira a Mulholland Drive. – Cidade Dos Sonhos, de David Lynch, que a seu modo era também o retrato da atmosfera de uma cidade pela ótica do sonho medonho de uma protagonista que não sabe diferir delírio de realidade. Digo isso não apenas por causa dos delírios evidentes de Olavo Bilac, seu protagonista – acredito que seja mais do que isso: toda a lógica do enredo se constitui como pesadelo. Como se sabe, Brasília pretendia ser a concretização do sonho do racionalismo moderno – uma cidade perfeita, planejada inteiramente pela razão humana. A distância entre esse sonho iluminista e o pesadelo de um universo paralelo em que vive o Poder Central rege a lógica de Brasília 18% - seja em seus momentos de realismo detalhista (com diálogos e gestos em tom cotidiano), nas situações dramáticas (como nas inúmeras cenas dentro dos carros) ou nas representações aludindo a personagens reais.

Se, no entanto, a cidade de Brasília dá o tom do filme, com sua atmosfera de pesadelo seco, ela não é a figura central, e sim o fundo que lhe dá forma. Empobrece enormemente o filme observar Brasília 18% como um olhar direto sobre “a corrupção em Brasília”, como se fosse um mero compêndio de vilanias – Brasília 18% não é apenas sobre Brasília (o fundo), mas sobre a relação de seu protagonista Olavo Bilac com esse universo. Não tenho dúvida de que, se o espectador enxergar em Bilac apenas um guia por esse mundo podre e esperar dele os gestos heróicos que irão lhe vingar, o filme será a história de uma decepção. Tanto melhor que seja assim, mesmo que a opção venha a desagradar quem espera do filme o que ele não entrega – para compreender Brasília 18% é preciso compreender o papel de Bilac, ao invés de esperar que lhe caiba o figurino de herói romântico, assim como é preciso compreender a crônica surreal de um ambiente sem pretender que esta crônica seja a narrativa esclarecedora daquele universo. Sendo aparentemente um filme de mistério, Brasília 18% ao final revela ser antes um filme sobre mistérios, sem soluções, certezas ou fatos comprovados a apresentar. Nesta crônica surreal há somente versões, suspeitas, ameaças e fracasso cívico. Filme de mistério que não revela ao final os enigmas da trama, Brasília 18% sugere vilões (como o Silvio Romero interpretado por um impressionante Carlos Vereza) e desmistifica seus heróis – como é o caso tanto de Bilac quanto do cineasta Augusto dos Anjos. Este, por exemplo, se ao final faz o discurso contundente e amargo que é a tônica dominante do filme, já nos foi apresentado como um omisso na hora da agonia de Eugênia Câmara (afinal, segundo os relatos, ele não teria agido na hora do presumível estupro) e como um arrivista, antes de ser um artista (pois teria gastado altas verbas sem apresentar as obras prontas) – vale lembrar também que Augusto dos Anjos só denuncia os esquemas de corrupção após ser acusado de assassinato. O filme não dá ao seu discurso final, a rigor, maior sinceridade do que ao discurso hipócrita de Silvio Romero – mas isto, no entanto, não elimina a força desta sua fala, ao contrário. “Minha terra tem dinheiro/ Onde canta o dinheirô” soa como o lamento amargo do filme em meio a toda a pantomima que se apresenta.

De herói a cúmplice

Tampouco se mostra consistente o heroísmo do protagonista. Diante de Brasília, Olavo Bilac tem sentimentos comuns a muitos de nós, espectadores: ele se sente fora de tudo aquilo, não tem nenhuma responsabilidade diante do que vê, como alguém que visita um zoológico de horrores – culpados, se houver, são os outros. Ao longo da trama, Bilac entra em contato com os mundos superficiais e com os mundos ocultos da cidade – e, mesmo que nunca possa diferenciar os fatos dos boatos, ele permanece absolutamente convicto de que não está misturado ao que vê. É muito fácil achar que não se tem nada a ver com a sujeira existente na atmosfera seca brasiliense, e Bilac mais de uma vez diz que seu trabalho “não é político” (como as suas crenças). Mas Olavo Bilac fracassa, se acovarda – e, a partir de uma ameaça frágil (é evidente o tom ridículo das “fotos que aparecerão no jornal”), ele acaba assumindo o papel de cúmplice que a todo instante tentaram lhe impor; ainda assim, sente-se vítima quando deixa de fazer parte do teatro, após cumprir seu papel e assinar o que lhe cabia. Mas o fato é que sua indignação silenciosa não serve para nada.

O filme expõe a desistência covarde de Bilac – cabe ao espectador compreendê-la ou compactuar com ela. Brasília 18%, assim, parece dizer que desistir diante de Brasília é uma solução fácil, mas é uma solução cúmplice e covarde. Bilac chega e parte de avião, mas entre sua chegada e sua saída descobrimos o quanto ele, com seu temperamento instável, toma parte naquele mundo – Bilac acha que está fora das estruturas de poder, mas na verdade a sua omissão é parte integral da base dessa estrutura. Em meio à sua incerteza em definir o que é delírio e o que é realidade, sua integridade vacila. Apesar de supor versões e perversões, Bilac se torna cúmplice e foge daquela realidade. Ou seria Brasília um pesadelo, como tudo mais?

Brasília 100%

O filme conseguiu um feito raro: a grandeza e a integridade de Brasília 18% são inversamente proporcionais às do universo retratado.

Conseguiu isso do seu modo:

- bem-humorado e amargo;

- sendo ao mesmo tempo a narração de um pesadelo de um personagem em confronto com a realidade racional e um filme de mistério que não se decifra;

- com seus personagens de nomes bem conhecidos (poderiam ser políticos, mas calham de ser escritores);

- com uma fotografia criada sem medo do escuro (coisa rara atualmente), apresentando personagens em meio à penumbra visual e moral do lugar;

- fazendo, ao mesmo tempo, uma profissão de fé na importância do cinema buscar a realidade (a partir do uso despudorado de regras narrativas clássicas – o filme de gênero de mistério) e, ao mesmo tempo, um alerta à impossibilidade desse objetivo (como a trama nos mostra, a partir dos seus paralelos com o nosso mundo e suas versões não-confirmadas);

- trazendo à tona esse mundo de boatos e versões sujas que é a política dos eleitos;

- vindo mais para confundir do que para explicar;

- mostrando com uma emoção notável os movimentos e os corpos, com beleza incomum no olhar (no cinema recente, talvez apenas Madame Satã seja comparável);

- descobrindo o ambiente tipicamente brasiliense dos interiores de carros e escritórios;

- a partir do seu modo de olhar experiente, tranqüilo, sem firulas (qualidade dos mestres, como acontece em Um Filme Falado, de Manoel de Oliveira);

- a partir das atuações irretocáveis do elenco (em que vale ressaltar o brilho raro de Carlos Alberto Ricelli e do citado Vereza),

É desse modo que o filme mais recente de Nelson Pereira dos Santos constrói sua força.

Texto publicado em abril de 2006

A Moda Buena Vista - a propósito de Buena Vista Socia Club (1999)

Fui ver “Buena Vista Social Club” durante a Mostra, aqui no Rio, num dia em que fui barrado na sessão de “Solaris”, que estava lotada (!). Menos mal que o filme de meia noite fora trocado, e o documentário seria exibido num horário que parecia adequado, sem grande alarde. Lá fui eu. E "Buena Vista Social Club" me fez pensar em muitas coisas... me fez lembrar de quando eu ia ver os filmes alemães do Wenders na sala 2 (em 16mm, coisa que não acontece mais...), "Paris Texas" na 3 e mostra Wenders na sala 1. No caso, lembro-me especificamente de uma vez com os filmes americanos, uma sessão dupla deliciosa, no tempo em que existiam sessões duplas, acho que '89, sessão esta com o "Hammet" e depois o "Amigo Americano", com o grande Dennis Hopper.

Pois é, a década de '90 me parece um pouco a época de crise dos autores, principalmente os europeus e americanos, Wenders, Scorsese, Coppola, até Almodóvar, grande parte dos estilistas está claramente em crise, o que não quer dizer que seus filmes estejam piores, de maneira nenhuma, mas eles não estão mais interessados em refazer os mesmos filmes, voltar constantemente aos mesmos temas.

E num momento de entusiasmo Wenders foi lá para Cuba fazer o documentário. O que eu achei do filme? Bastante desagradável, me senti mal em vários momentos. Mas isso porque eu vi uma verdade que não me agradou, portanto como documentário o filme cumpre o seu papel, por caminhos tortos.

E porque não gostei?

Para explicar, vou me permitir divagar um pouco... Dois dias depois que eu cheguei a Paris, numa viagem feita no primeiro semestre de 1998, eu vi na capa do caderno cultural do Le Monde (um jornal chatíssimo) uma foto de Francisco Repilado, o famoso Compay Segundo. Como comprar músicas caribenhas era um objetivo que eu tinha, logo me interessei pela reportagem, que tinha o título "O que há de novo em Paris" e o subtítulo "O que há de novo é este senhor de noventa anos!". Apesar dos estímulos dados por Malan e Franco, àquela altura eu não podia gastar meus parcos trocados, o disco "Buena Vista" estava sempre caro, mas acabei arrumando umas promoções com dois dos discos solo do nosso amigo, "Yo Vengo Aqui" e "Lo Mejor de la Vida". Não tive dinheiro pra ir ao show do cara, coisa que só fui fazer um ano depois, no Canecão, e o disco "Buena Vista Social Club" eu também demorei um pouco mais para ouvir. Quando enfim ouvi, foi fácil perceber a diferença, eu estava diante de um produto bem mais elaborado.

Elaborado demais. É disco de produtor, não de músicos. Isso não tem problema quando a gente ouve o disco, ele é bonito de todo jeito. E de fato a guitarra está mais destacada na equalização, mas a guitarra é boa, tem um clima cafona. De fato, a atitude do produtor não é muito elegante, mas isso não estraga o produto.

Aliás, isso não é raro. Stan Getz fez a mesma coisa nos discos que gravou com João Gilberto. É um expediente mesquinho, mas a obra pode sobreviver a isso. É claro que pode ser mais confortável admirar artistas íntegros, mas eu acho que a admiração estética pode ir além da ética, eu gosto de ouvir Wilson Simonal, mas isso não espalhem...

Mas isso tudo que eu falei foi sobre o disco, e o assunto que eu quero abordar é o filme, e se eu dei essa volta toda foi pra notar que o filme revela claramente, para quem quer ver, todos os problemas do projeto "Buena Vista", e isso faz dele um documentário paradoxal pra chuchu, porque às vezes parece que o próprio Wenders não nota, às vezes eu achava que ele estava fingindo que não via, o que é óbvio na tela, que não há intimidade entre produtor e músicos contratados, a relação é profissional e pouco íntima, embora se tratem com simpatia. Além dos monólogos egocêntricos de Cooder, podemos perceber isso no curto diálogo que ele mantém com Ibrahim Ferrer. Eu disse diálogo? Como diálogo, se depois de dois anos de convivência Ry Cooder ainda não fala uma palavra de castelhano??!

O diálogo entre ele e Ferrer entra para a antologia dos momentos mais constrangedores das histórias do cinema e das relações entre patrões e empregados. Não apenas porque ainda necessitam de tradutores, mas pelo tema mórbido que desenvolvem. É de ter engulhos, mas expõe claramente as limitações do projeto.

Porque é um projeto de gringo, é um projeto de quem desconhece o tema tratado, é um projeto com olhar deslumbrado, deslumbrado pelo que lhe é exótico.

Eu falei há pouco que a admiração estética pode ir além da ética? Pode até ser, mas nas artes narrativas isso complica ainda mais. Não há muito problema em gostar de um cantor dedo-duro, mas um filme ignorante e caça-níqueis já é mais complicado, mesmo quando nós aprendemos muito durante sua sessão.

O projeto e a moda "Buena Vista" me parecem ter um grande defeito e uma grande vantagem. O problema do projeto é que ele valoriza a música cubana "de raiz", contrapondo aos grandes músicos que foram pros Steites fazer "salsa" ou jazz latino, como Tito Puente a diva Célia Cruz. Além do absurdo inato a essa valoração, esta interpretação esconde a profunda, e enriquecedora, influência americana na música dos bons velhinhos. Isso é evidente numa canção do disco cuja harmonia é idêntica à primeira parte da clássica "Stormy Weather", do Harold Arlen, e no filme isso é reforçado pela bela interpretação de "Begin the Beguine" pelo Ruben Gonzales. Cuba foi a boate americana desde a época da guerra com a Espanha até a revolução, foi quase o 51º estado americano, como querer exigir "raiz", "pureza", num caso desses?

A vantagem é que, de fato, levaram para o mundo ótimos músicos que estavam esquecidos em seus cantos. Talvez por isso eu tenha me lembrado tanto do Dino 7 cordas e do Altamiro Carrilho durante a sessão, e talvez por isso eu agora tenha colocado pra tocar um belíssimo disco do grande Abel Ferreira. É pena que não haja um Ry Cooder disposto a fazer o mesmo pelos nossos músicos de choro. Abel morreu pouco conhecido no Brasil, no exterior quase ninguém sabe quem ele foi, um dos maiores saxofonistas do século. Dino é o símbolo maior de uma linguagem brasileira no violão, cuja tarefa é marcar o baixo e fazer os contrapontos, ele começou no conjunto de Benedito Lacerda, tocou com Pixinguinha, Carmem Miranda, Jacob do Bandolim e quase todos os grandes nomes da chamada MPB. Quem os conhece no exterior, e mesmo aqui no Brasil, esses músicos geniais, esses artistas iluminados? Será que nos falta um Ry Cooder, mundo terrível?

Texto publicado em novembro de 1999

Ódiquê (2000)



Para o bem ou para o mal, Ódiquê é um filme-problema. Ódiquê retrata personagens asquerosos numa trama de violência e engodo, com eficiência narrativa, bom desempenho dos atores e bastante humor em diálogos cheios de gírias. Mas o que justifica um filme mostrar com crueldade personagens desprezíveis? É uma questão problemática e bastante interessante. Enquanto se pode crer que o filme de Felipe Joffily e sua equipe pretende denunciar e atacar a falta de limites éticos de uma certa juventude, esta questão se impõe: até que ponto a certeza de superioridade moral que o filme tem sobre seus personagens não o torna arrogante e o esvazia?

Por mais desagradável que ela seja, esta questão problemática é a única redenção possível para Ódiquê. Um antigo poeta francês escreveu que "é nos objetos repugnantes que encontramos as jóias". Ao retratar o que lhe causa repugnância, o brilho de Ódiquê residiria em nos fazer sentir o mesmo asco que sente. Mas deveras sente?

Porque não se pode deixar de notar que este filme tem a discutível honra de exibir a cena mais asquerosa filmada no Brasil em décadas: é quando o personagem de Cauã Raimond, armado, agride e apavora um guardador de carros - uma criança negra, deficiente mental. Esta cena de boçalidade marca de forma definitiva o filme. A única justificativa para ela - justificativa ainda assim problemática - seria a de estabelecer definitivamente para a platéia a vileza dos personagens. Poderíamos considerar que ela faz parte do filme devido ao discutível pressuposto de que "cinema bom precisa agredir o espectador", já que é uma cena ilustrativa, sem relação com a trama central. Mas, visto dessa forma, o filme não difere muito de seu personagem, buscando constranger a platéia como o playboy faz com o pivete. Portanto, para o bem de Ódiquê, é melhor crer que a tal cena tem esta função narrativa: o filme pretende mostrar com clareza a boçalidade dos seus personagens, de forma agressiva e incômoda à platéia.

No entanto, de certa forma o próprio filme tratará de boicotar mais à frente este viés positivo possível. Seria a opção mais ousada e agressiva retratar estes personagens realizando seus desejos ao final, num desfecho em que “os babacas se dão bem”, o que reforçaria o aspecto de "denúncia social" do filme - talvez questionável, mas certamente defensável e interessante. No entanto, o tom bem-humorado e amenizante do final funciona de forma inversa: descobre-se enfim que os jovens deram apenas um golpe, que ninguém foi morto e que tudo não passou de um engodo de malandros que “sabem se dar bem”. Se o humor na fase inicial faz a platéia se divertir com os papos e as atitudes dos playboys malucos, esse bom-humor externado no final compromete qualquer defesa de um olhar moralizante presente no filme.

Torna-se inevitável então lembrar dos momentos em que seus personagens se mostraram tão asquerosos, e a dúvida vem à mente: será que o filme mantém integralmente a noção de que esta juventude deve ser retratada na sua forma mais ignóbil para que a platéia seja levada a refletir? Ou aquelas cenas lamentáveis indicam apenas que filme pretende chocar a qualquer preço? Tendo em vista as situações repulsivas que vimos antes ao longo do filme, essa alternativa contradiz o dito do poeta francês e evidencia o problema de Ódiquê: se o filme se diverte com seus personagens e usa da estratégia de constranger o espectador, então ele deixa de ser uma denúncia e passa a ser um sintoma bem próximo daquilo que pretendia atacar. E o que ali encontramos, ao invés de jóia, pode ter se tornado, na verdade, uma coisa bem menos interessante e mais doentia do que pretendia vir a ser.

Texto publicado pela primeira vez em outubro de 2004

22/07/2008

Entrevista com Edgard Navarro


Encontramo-nos com Edgard Navarro no encerramento do Festival do Rio, no cine Odeon. Dali fomos para um bar vizinho, fugindo da movimentada festa que começava a tomar conta do saguão do cinema. A conversa durou um pouco mais de uma hora e começou quando, antes da primeira rodada de chopes, Edgard nos falava da reação de Caetano Veloso a sua obra-prima, Superoutro.

EN: Até hoje ele faz umas sessões privadas na casa dele, mostra às pessoas. É maravilhoso... Mas eu pensei que minha carreira fosse deslanchar ali, achei que eu ia poder continuar fazendo cinema. Não fiz mais nada até hoje, já são doze anos.

RG: Mas por quê? Mudanças na produção, Lei do Audiovisual?

EN: Collor entra em março, isto aconteceu em janeiro de 1990. Aí Collor vem e fecha. Na Bahia, nós temos uma oligarquia que se perpetua no poder e que pelo audiovisual não tem feito praticamente nada durante estes trinta anos. Quase nada. Para não dizer que não faz nada, faz um concursozinho para curtas de cinco em cinco anos, uma produção muito rala. Alguns destes filmes foram feitos com dinheiro do Pólo Cinematográfico da Bahia, que foi praticamente uma ficção. Tudo por conta dessa oligarquia, dessa forma de poder na Bahia que é das mais perversas. Perversa, inclusive, porque não é antipática; o povão adora isso, assim como adora Silvio Santos. Antonio Carlos Magalhães é o grande godfather da história. Ele é um semideus lá, um cara que todo mundo adora. Você falar mal de ACM lá é um absurdo. Mas eu acho que isso é reflexo já de uma coisa mais antiga, da própria falta de cultura, da falta de educação, da formação do povo, que acha que esse paternalismo dele -- que é uma coisa fascista, mafiosa -- algo de muito bom, indiscutível. Ele vai ao Senhor do Bonfim, é um cara bem povão. Isso é só um aparte para dizer que dentre outras culturas do Brasil que também não produziram tanto cinema quanto gostaríamos que produzissem, a Bahia foi das mais retrógradas. Ultimamente, muito recentemente, é que o governo da Bahia, ainda sob o patrocínio de ACM -- porque ele não saiu do governo na verdade, ele colocou o Paulo Souto depois o César Borges -- agora é que eles começaram a colocar o concurso de curtas, devido a esse hiato na produção de muitos anos. O que para mim é uma coisa ridícula, irrisória, não é nada. Mas é o que se tem. Vamos ver se agora a gente desata esse nó.

Estou produzindo três curtas e um longa-metragem. Mas nós temos lá uma demanda muito maior, com vários roteiros de longa-metragem prontos e muito bons. Felizmente eu ganhei dessa vez o concurso, ou melhor, dessa primeira vez, para fazer o longa-metragem que estou rodando no verão, em fevereiro devo estar rodando. É um filme que vai se chamar Eu me Lembro. É um resgate da infância...

RG: Uma outra citação de Fellini, já que no Superoutro você tem a lembrança do Amarcord.

DC: "eu quero uma mulher!"...

EN: Com certeza! É o meu grande inspirador, um dos grandes cineastas de todos os tempos para mim é Fellini, junto com Bergman, Pasolini e Buñuel. São os quatro pilares da minha formação como cineasta.

RG: Pelos filmes que vimos, pelo lado da anarquia e desse olhar desautorizando tudo, acho que Buñuel é o que exerce maior influência...

EN: Eu não sei qual deles exerce maior influência, mas Buñuel foi determinante para que eu comprasse uma câmera de super-8. Quando eu vi O Fantasma da Liberdade, foi assim o que faltava... Eu assistia àquelas sessões de neo-realismo, aquela formação do cinema de arte.

DC: Como foi a sua formação de cinéfilo, como você viu esses filmes? Como era essa cultura de cinefilia na Bahia?

EN: Eu assistia a tudo. Na adolescência, na infância eu era fascinado por cinema. Eu via chanchadas da Atlântida, eu via Tarzan, eu via Os Dez Mandamentos, A Vida de Cristo... Na infância eu penso em todos esses filmes de Hollywood. Ben Hur e Os Dez Mandamentos dão muito a cara do cinema que eu via. A maior parte da produção vinha de Hollywood, os de terceira categoria, mas também os bons filmes produzidos em Hollywood: filmes policiais, thrillers. Eu conhecia o cinema brasileiro porque assistia às chanchadas da Atlântida: Oscarito, Grande Otelo, Zé Trindade, Zezé Macedo. Na adolescência eu via muita porcaria, porque eu era fascinado pelo cinema, a ponto de pegar uma sessão que ia das duas até, às vezes, às oito, dez da noite. Tinha uns cinemas de terceira categoria ou quinta categoria que passavam dois filmes e mais o seriado, uma coisa assim. Aí eu via dois filmes num cinema, saía de lá e ia ver mais dois em outro. Era um liquidificador, era tudo que você podia imaginar: Maciste, já ouviram falar em Maciste? Western macarrone, aqueles faroestes italianos que eram um fake do western americano. E muito filme bom também que me fazia chorar, uma coisa que me tocava muito emocionalmente. Um pouco brechtiano, isso, pouco inteligente. Mas eu acho que pela minha formação latina espanhola, eu tenho uma coisa espanhola no sangue. O cinema americano, quando eu tinha uns quatorze, quinze anos, o cinema tem essa coisa de fazer a cabeça. Então, toda a reflexão que eu pude fazer em cima de todo esse "mal" que o cinema me fazia, porque era muito sentimentalista, muito piegas, pegando essa coisa do patriotismo... Tipo um filme: A Rosa da Esperança, não sei se vocês conhecem esse filme, é um clássico... eu via aquele filme e chorava no final do filme, ficava absolutamente siderado com aquela aula de moral, de dignidade, de ética... Eu só vim entender que o americano era um calhorda e um canalha, e usava isso de uma forma canastrona, que era uma forma de vender o peixe; só vim entender isso muito tempo depois, quando eu pude fazer uma reflexão sobre esses filmes americanos, que era o que eu via. Para mim, cinema era isso, era os filmes americanos.

FV: A gente nota essa influência. Em especial no seu filme sobre o Lamarca [Porta de Fogo], o faroeste parece uma referência especial, os filmes de Anthony Mann, John Ford... Você filma o sertão da Bahia como uma paisagem de Western, lembrando o Monument Valley de Ford.

EN: Claro, perfeito. E Glauber, devo isso também a Glauber.

FV: Como foi o impacto do Cinema Novo na sua formação?

DC: E mais, como você descobriu o cinema brasileiro e depois o Cinema Novo?

EN: Eu acho que o cinema brasileiro bate quando eu tenho quatorze anos, justamente quando estou assistindo a essa salada, esse coquetel de filmes americanos, que era só o que tinha. Eu acho que assisti a um filme espanhol, que era Sarita Montiel... La Violetera. E eu chorava, claro. Mas era menino, eu tinha o que, oito ou dez anos. Eu só vou encontrar o cinema brasileiro fora da chanchada com Glauber Rocha e Deus e o Diabo na Terra do Sol.

DC: E Barravento?

EN: Não, não tinha assistido a Barravento. Tinham falado muito de Deus e o Diabo como uma grande coisa. Eu olhei, eu estranhei aquilo... eu achei longo, eu achei pesado, difícil. Não entendia porque elogiavam tanto aquele filme, mas ele me intrigava, me incomodava, eu não entendia direito. Eu acho que era o referencial estético, da gramática, da linguagem, que era diferente, né? O cara vinha com uma outra coisa e você fica incomodado e sem entender o que é aquilo. E aí -- eu tinha quatorze anos --, eu só tive essa reflexão mais arguta em relação a um cinema novo, com o neo-realismo italiano, com a Nouvelle Vague e depois com o Cinema Novo. Aí eu tinha já dezessete, dezoito anos. Eu digo: há um universo cinematográfico que reflete todo o cinema que eu assisti até hoje. Que vai para a rua, que não tem a mesma gramática, é uma gramática estranha... aí eu vou ver Deus e o Diabo com outros olhos e vou achar o filme esplendoroso. Eu acho que é um dos melhores filmes que existem em todos os tempos. Para mim, é uma aula de cinema e uma aula de história do Brasil, de antropologia, com poesia e com uma postura incrivelmente madura para um menino de 24 anos. Como é que ele pôde conceber aquilo, como ele pôde resistir à tentação de ser maniqueísta, né? Ele não é maniqueísta. Ele pega toda aquela porra de Bem e Mal, Deus e Diabo... que eu acho que o Lavoura Arcaica está colocando isso muito bem, eu gostei, adorei Lavoura Arcaica, um filme maravilhoso. Eu até brinquei com isso dizendo que Lavoura Arcaica é, para mim, o Deus e o Diabo na Terra do Cio. Vocês viram Lavoura Arcaica?

Todos: Não tivemos oportunidade.

EN: Vejam, é imperdível, é maravilhoso. Acho que pode ser um marco do cinema brasileiro do momento. Tô dando um salto enorme, mas já que mencionei Lavoura Arcaica, é bom dizer que tem que contextualizar o cineasta... Então, contextualizar o Lavoura Arcaica, contextualizar o cineasta, a formação dele que eu não sei qual é. Sei assim, de ouvir falar, a coisa da televisão e tal... do apoio que de todas as formas o Luiz Fernando tem encontrado na vida para fazer o cinema que faz, e ter as condições de fazer o cinema que faz que é diferente da minha trajetória. Eu acho que tenho uma contribuição a dar diferente da que o Luiz Fernando dá e acho bacana que a gente possa viver com a diversidade. A maior lição que eu aprendi com a maturidade talvez tenha sido essa coisa da tolerância e de conviver com as diferenças. Porque eu não posso me pretender ser o grande bambambã em uma determinada coisa, porque existem muitas contribuições de vários lados que podem vir. E eu tenho que estar atento a elas. Agora tenho que estar atento para que a minha contribuição, seja o máximo da minha reflexão, o máximo que eu posso dar é isso. Acho que por conta de toda a minha formação, até essa do cinema americano, acho que o Superoutro é talvez o meu primeiro filme capaz de refletir sobre essa anarquia visceral, essa anarquia dos super-oitos que eu fazia como uma coisa irreverente e rebelde sem causa, uma coisa de épater la bourgeoisie.

DC: Tem uma tristeza no filme todo, na própria vida dele que é bem diferente do Rei do Cagaço... é mais que revolta. Mais do que um personagem revoltado, você tem um personagem de fato. Me pareceu isso.

EN: É isso.

DC: Eu me lembrava muito no Superoutro da anarquia mas também da situação do personagem. Isso me saltou muito mais aos olhos nessa revisão.

EN: Suicida, né? Ele tem uma coisa suicida. Ele tenta o suicídio duas vezes na verdade. Ele cria uma metáfora, cria uma história para dizer que não é suicídio. Ele se joga na moto porque a moto é uma carruagem de luz que vai levar ele para o céu. É bíblico, inclusive. Ele tem uma coisa bíblica: "arrependei-vos, arrependei-vos!". Existe uma personagem bíblica que é arrebatada ao céu numa carruagem de fogo, num carro de fogo...

FV: É um profeta, né? Elias...

EN: É, acho que sim. Mas ele não fala Elias, fala Arcanjo Gabriel porque também mistura os signos todos. E no final, a coisa de se jogar para voar. Tem um momento que ele duvida disso, que ele engole em seco, parece que alguma coisa ali bate na certeza, parece que ele duvida.

DC: O Bertrand [Duarte] passa isso muito bem.

EN: Muito bem. Ele é maravilhoso. Então, eu acho que esse link da minha formação de cinema americano, eu no Superoutro inteiramente pego o ícone do colonizador, do cinema... Ele pega o ícone do colonizador e atualiza antropofagicamente colocando aquela coisa do super-homem, o libertador, de uma forma irônica pra caralho que é a coisa do pássaro da eternidade, "meu pai me traiu".

FV: Aproveitando a deixa da antropofagia, quando assisti àquele que você considera seu filme zen [Lin e Katazan], algumas imagens me lembraram muito Macunaíma, embora não pareça muito evidente numa primeira olhada...

EN: Legal, o corpo...

FV: ...aquela coisa de filmar o corpo negro na natureza, de como ele estabelece uma relação...

EN: Bacana isso, eu acho que você tem razão, porque um olhar atento, né... e eu não tive a intenção. Mas essas coisas da não-intenção também são maravilhosas, porque elas informam a mim, são o feedback necessário para que eu possa refletir também sobre essas coisas. Acho que você tem razão, sim. Porque há um fascínio meu por Macunaíma. Um fascínio pelo estranho, pelo bizarro, pelo mau-gosto talvez, mas um mau-gosto entre aspas.

RG: Quando a gente fala em antropofagia, quando a gente fala em retrabalhar o mau-gosto, tem duas coisas que vêm à cabeça de primeira. A primeira é Oswald de Andrade, que cunhou a expressão e depois o tropicalismo que readapta o mau-gosto e retoma Oswald. O seu filme Superoutro é também uma grande homenagem aos tropicalistas... toca o hino do Senhor do Bonfim que termina o disco Tropicália, Coração Materno...

FV: Superbacana, também, do Caetano...

EN: Bacana...

RG: ... e também uma homenagem ao Glauber, porque tem A Idade da Terra...

EN: "Meu pai me traiu. O pássaro da eternidade não existe". Falando sobre isso, eu sou absolutamente fã dessa coisa tropicalista de se apropriar do mau-gosto, de misturar as coisas, de botar um bolero que é um tango arrevesado falando de uma coisa escrota, mas com uma sutileza e uma ironia que promovem isso a uma condição que é inclassificável, entendeu? Porque está acima da intelligenzia, porque manda essa intelligenzia pro espaço, pras picas. E isso me interesssa de todo jeito. Eu digo: "porra, descobri uns baratos aqui, Silvio Santos! Vou usar Silvio Santos no meu filme!" "Porra, você é louco..." É uma cena muito clara para mim...

DC: Roletrando vira "rola entrando", né?

EN: É, isso mesmo. Então, pegar isso e trabalhar o signo subvertendo o tempo todo. Isso é que é o barato.

FV: Há várias sequências no Superoutro em que você parece ter colocado o Bertrand numa situação e escondido a câmera. Por exemplo, a cena que o Bertrand dança axé na calçada...

EN: Sim, aquela sim. Aquela é uma cena com a câmera oculta.

RG: Como você pediu permissão? Você avisou às pessoas que ia ter o cara lá, fazendo uma performance?

EN: Não, eu absolutamente me apropriei das imagens dessas pessoas com o risco de depois ser processado. (risos) Eu nem sabia nessa época...

RG: Mas como você conseguiu? Eles deixaram o Bertrand ficar lá na parada de 7 de setembro?

EN: Rapaz, nós vivíamos naquele momento um governo que se pretendia democrático, que foi o de Waldir Pires...

RG: Sim, aparece uma bandeira...

EN: ... então, ali, acho que havia um certo pudor da polícia de reprimir. E além do mais a gente não pediu licença porque é assim que eu faço. Eu não peço licença, eu me torno invisível para entrar no lugar para fazer o que eu quero. É uma espécie de má-educação que tem sido bastante proveitosa para mim. Eu muitas vezes entro nos lugares, faço as coisas que preciso fazer, porque se eu pedir licença, não vai rolar. Tipo essa coisa de entrar filmando? Eu vou e entro filmando. Isso é minha ética. Eu sou anti-ético para você, companheiro, vá e me diga o que é ética, fale para mim. É uma coisa também guerrilheira, que é do meu espírito, uma guerrilha do possível para mim. Porque eu sempre fui franzino, nunca fui um homem muito corajoso. Sou muitas vezes, como diz Fernando Pessoa, pior do que um rato, um covarde. Aqui dentro. Para fora não, até que eu seguro bem, mas aqui dentro os medos que eu tenho são incofessáveis. Então minhas horas de coragem, de arrojo, são iguais às lágrimas que Caetano fala, né? "Respeito muito minhas lágrimas, mas ainda mais minha risada". Esses momentos corajosos são para mim a fina flor do meu caráter. Eu projeto no Superoutro essa coragem que eu gostaria de ter. Ele é muito melhor do que eu. Se eu tivesse a coragem, a grandeza e a integridade daquele personagem, eu já teria me jogado e já teria voado. (risos)

DC: Naquela filmagem com o exército você teve que pedir autorização, não?

EN: Ah, sim. Não só autorização como cumplicidade. Houve uma produção que também tinha essa coisa de burlar a vigilância... O diretor de produção era o Alexandre Barroso, que eu conheci de última hora e entrou no filme de pára-quedas, e eu achei que as coisas iam desandar, mas ele foi muito produtivo. Foi muito bacana ter sido ele a pessoa. Eu vim a saber depois, numa conversa que tivemos depois das filmagens, que ele era o Mancha. E o Mancha era ninguém mais, ninguém menos que o maior pichador de Salvador naquela época. E não era pichação apenas de nomezinho, era uma pichação consequente que fazia espírito na cidade, trocava espírito com a gente. Eu via uma coisa de Mancha e dizia: "puxa, o Mancha disse isso"! Ele dizia coisas legais pra caralho. Tinha um discurso. Tem até um livro que ele publicou depois com as pichações que ele fez na cidade. E eu pichava pra caralho também nessa época, década de 70 até o início dos 80. Eu fiz umas pichações bem interessantes para a minha alma, poder colocar aquilo lá fora. Então era fã de um pichador que era consequente, que fazia um discurso e que eu queria botar no Superoutro. Pinta pouca coisa de pichação. Tinha uma que eu ainda vou usar no Eu me Lembro, eu acho. É do caralho, é assim: "Ser ou não ser gay eisenstein".

DC: Essa era sua ou do Mancha?

EN: Essa pichação? Não, não era do Mancha. Fui eu que criei. Porque eu estava discutindo essa coisa: "é maluco ou é viado, hein rapaz?" Essa coisa de pressão contra os viados. Eu era chamado de viado com uma frequência... eu estudei engenharia civil até os 22 anos, porque me disseram que eu ia ganhar dinheiro com engenharia, mas eu tinha uma vocação para música, eu compunha, queria ser um Caetano, um Gil, um Chico Buarque... participava de todos os festivais universitários, botava as canções que eu achava bacana; não tinha uma voz que era grande coisa, mas classificava as músicas que eram elaboradas e tal... minha vontade era toda na direção do palco. Aí eu só fiz dois anos de engenharia, porque não suportei. Fui de cabeça para o teatro, entrei para a escola de teatro. Mas na engenharia era uma coisa frequente: "venha cá, você é maluco ou é viado, hein rapaz?" (risos) Era uma coisa jocosa que me perguntavam, mas sacana. Era tudo em clima de brincadeira, mas tinha uma sacanagem no meio. E quem fazia essa pergunta para mim era um machão. E para mim, o homem está sobre este tripé: maluco, viado ou machão. Os três trocam uma energia escrota que nao é de um homem de verdade. Essa energia escrota, o foco dela é o machão. Porque o viado é viado, porra. É insustentável, indefensável a condição do viado no mundo nosso, como a gente aprendeu. Eu até coloco isso no Eu me Lembro, uma situação de menino que eu vivi com outro colega. Eu era um menino de cinco anos -- cinco anos, cara! --, e tinha um menino que eu adorava e ele me adorava. A gente se beijava no rosto. Como uma criança beija outra no rosto. E aí teve um momento que a gente sentiu que não podia beijar no rosto e nunca mais eu beijei ele no rosto. E até a adolescência e mais adiante eu nunca beijava homem no rosto, não podia. Essa coisa perversa do olhar adulto repressivo que vinha com essa história do é "maluco ou é viado?" Eu dizia: "eu não sei, eu acho que sou maluco. Se for escolher entre os três, eu não sou ainda um homem de verdade, não sou. Agora, não sou machão. Isso eu tenho o orgulho de não ser. Porque todo machão é um corno em potencial." (risos) Qual é o melhor dos três: maluco, viado ou corno?

Daí eu fui pro palco fazer teatro, aprender transa de ator... e depois de um tempo, porque não fiquei na escola de teatro -- eu fui expulso, eu era absolutamente insuportável --eu virei uma criança de treze anos. Acabou o recreio e eu não quero ir para a aula. Eu tinha 25 anos e não suportava o fato de não poder ficar em recreio permanente. Eu não quero ir para a aula! Eu era abusado, muito mais do que ainda sou um pouco. Eu era abusado assim de não deixar a aula acontecer. Arrogante, mas uma arrogância positiva, eu acho, porque era contra a caretice. Todo meu objetivo era provar que o rei estava nu. Eu sou criança, não sei porra nenhuma, agora não vem me dizer que sabe não! Você sabe isso, sabe aquilo, vamos brincar de escravos de jó? O que é que você quer? Vamos brincar, vamos fazer um recreio para ver se a gente chega a alguma coisa séria. Agora, aula? Você vem me falar de aula, um momento sério? Para um homem de 25 anos que está desencantado com tudo que a mãe, os pais e os professores disseram até hoje? Então era uma rebeldia que se colocava contra qualquer discurso até às vezes indelicadamente. Uma vez eu fui muito indelicado com José Carlos Avellar e disso me arrependo.

Eu estava apresentando meu terceiro filme. Porque depois que me expulsaram da escola de teatro eu fui ver O Fantasma da Liberdade e comprei uma câmera super-8.

RG: Isso com quantos anos?

EN: Vinte e cinco anos.

RG: Em que ano foi?

EN: Setenta e seis. Eu compro a super-8 em janeiro de setenta e seis, em Manaus. Aí volto, faço o curso de teatro, sou expulso e aí ...

FV: Como é que você fazia para exibir seus filmes em super-8? Eles circulavam de alguma maneira, você fazia exibições?

DC: Começa contando para a gente como você começa a fazer os filmes em super-8 e aí a gente chega lá.

EN: Comprei a câmera e aí comecei a fazer meu primeiro filme, Alice no País das Mil Novilhas. Eu tinha lido Chico Buarque, com aquela coisa do Fazenda Modelo, que vinha com aquele discurso da bosta, do gado e do cogumelo. A maconha para mim tinha sido uma dinamite, uma dinamite na mina de ouro.

DC: Você fuma maconha depois que sai da faculdade de engenharia...

EN: Ah, sim. Ainda não tinha entrado no teatro. Mas ela foi assim um divisor de águas na minha vida. Eu fui uma criança muitíssimo reprimida, cheia de medos e de fantasmas e de horrores, que eu não posso nem entender o alcance desses horrores que estão nas raízes da minha alma. Eu não sei o que é isso, se pode ser explicado como carma, eu não entendo o que é isso. Eu sei que quando eu tinha três anos de idade, por aí, eu tinha um horror de estar vivo, de saber que eu estava vivo, que aquilo não era uma brincadeira, que aquilo era sério! Não era visto como videogame. Isso me dava pânico. Não posso entender porque eu pensava desse jeito. Então a maconha reintroduz para mim uma neurose que estava fermentada. Ela deflagrou essa neurose com 21 anos. Pedi para ser internado. A coisa da loucura que está no Superoutro, ela tem para mim uma importância... Eu tenho uma irreverência em relação a tudo, mas tenho uma imensa reverência em relação à loucura, porque eu já estive lá. A ponto de ter a certeza de que eu tinha que ser internado, porque eu ia morrer; matar, não, porque não me dava vontade de matar as pessoas. Mas eu ia me matar. Eu não estava suportando a carga de tensões que eu estava vivendo. Eu passei a não dormir, eu me tremia todo... Eu vivi uma época da minha vida que eu fiquei impotente, sexualmente... Olha, é indescritível a soma de tensões. Parecia que era uma torquez expremendo meu coração e minha cabeça e meu espírito. Eu dizia, "isso não é vida, eu estou morrendo." Isso que hoje chamam de síndrome de pânico, eu acho que era fichinha para mim. Eu tinha isso e não sabia, não tinha uma terminologia ainda. E eu vivi muito tempo com isso.

DC: Isso foi deflagrado pelo uso da maconha?

EN: Não, isso é antes. A maconha vem abrir uma janela que vai distensionar...

RG: Foi terapêutico, então, na sua vida?

EN: Foi, mas não naquele momento. Naquele momento foi o olhar para a coisa da respiração, da alimentação natural e da ioga e de coisas desse tipo. Antes da maconha foi assim. A macrobiótica, a ginástica, acordar cedo, a respiração, a ligação com a paz da mente, meditação, Gandhi, e Gil falando da Refazenda... Refazenda foi um pouco depois, mas Gil já falava algumas coisas nesta direção. Aí aquilo me distensiona. Eu deixo de ter que tomar comprimidos tranquilizantes. Eu vivia tomando tranquilizantes para segurar a onda. Aí quando estou nessa fase, de uma loucura talvez mais trabalhada, mas de uma forma ainda intelectual, vem a maconha e explode minha personalidade. O efeito que tem sobre mim eu não posso comparar com nada.

DC: E nenhuma droga chegou perto?

EN: Eu experimentei a maconha e não tive coragem de tomar o ácido. Quando eu tive coragem, ele caiu da minha mão na areia e não pude encontrar mais. (risos) No dia em que eu ia tomar o Santo Daime no Recreio dos Bandeirantes, aconteceu uma coisa interessante. Eu fui convidado por um amigo que disse: "olha, só pode entrar na festa quem for convidado, isso é um presente que você está recebendo no dia de Nossa Senhora da Conceição". Digo, "tudo bem". Mas eu estava numa dessas crises, porque volta e meia essas crises voltam. Uma crise de angústia, de ansiedade, uma pressão inexplicável... apenas o fardo de viver. Aí você pode dizer que é porque não estou produzindo e é -- os fatores externos são absolutamente consideráveis. Mas há fatores internos que eu também não posso negar. Eu sou muito maluco, muito mal formado. Talvez meu pai, minha mãe, toda a repressão pequeno-burguesa da minha família fez em cima de mim, eu não consegui lidar com isso de uma forma saudável. Talvez porque eu sou muito sensível, porque eu vi a hipocrisia muito cedo, a hipocrisia dos pais, dos irmãos e da humanidade toda. Aquilo que os padres me falavam -- eu estudei em colégio de padre --, me diziam que o mundo devia ser cristão, que a fraternidade, que não sei o que... eu via que tudo isso aí era da boca pra fora. Isso me dava um nó na cabeça. Eu chorava de dor, porque eles estavam mentindo para mim. A hóstia consagrada, aquilo é uma mentira! Tudo que a igreja fez na minha cabeça eu estou descontando num filme que foi dedicado à Igreja Católica chamado O Pecador. Esse eu vou fazer ainda. Eu vou ser excomungado. (risos) É a história da minha geração, mas pela ótica da minha sensibilidade. Por causa dessa sensibilidade, eu acho que fiquei atrofiado, alguma coisa em mim se perdeu, confiança, sei lá... Em alguns momentos, você não pode contar comigo, eu fico doente. E eu estava num desses dias, quando o cara me chamou para tomar o Santo Daime. Eu falei: "vou jogar o I-Ching". Aí o hexagrama disse: "qualquer movimento nessa direção será profundamente prejudicial, porque a noiva não está preparada para as núpcias." (risos) O que que eu fiz? Não tomei o Santo Daime. Eu tomei o Santo Daime lá em Lauro de Freitas, onde eu moro hoje, há dois anos atrás. As pessoas diziam que era completamente diferente da maconha, que eu ia encontrar o meu caminho. Meu amigo me levou, já encontrou o caminho dele, está iluminado, me levou e queria que eu fosse toda semana. Eu disse: "meu amigo, você vai me matar!" (risos) "Se eu fizer isso toda semana, eu não posso continuar vivendo a minha realidade, eu vou ser internado!" E não me deu nada diferente da maconha. Eu voltei à Rússia espiritual, só isso. Agora, quando eu fumava diariamente tinha uma coisa dentro de mim que era um desejo profundo de conhecer a minha verdade e enfrentar os meus fantasmas, os meus demônios. Eu tinha que pegar o touro com a unha, eu tinha que enfrentar, senão não era digno da vida. E todas as vezes eram surras homéricas, eu saía axurriadinho... mas depois tinha aquele alívio, aquela coisa maravilhosa. Eu dizia: "meu Deus do céu, que benesse, que maravilha, que dia lindo, que sol maravilhoso, que água maravilhosa..." Todas as coisas que vêm depois da rebordosa... Eu não sei como é com vocês, mas em mim vinha com uma amplitude...

DC: Você não fuma mais todo dia?

EN: Não, eu não posso fumar. Tem muito tempo que eu não fumo. Se eu fumo, eu entro num processo de dor tão grande, tão dilacerante, que é um dos meus tabus. Eu quero um dia me curar para poder fumar legal, e ter uma relação permeável com meu inconsciente. Não tenho. O que acontece com frequência é que quando eu fumo a dor me posiciona... eu não consigo mais falar, eu fico travado, começo a raciocinar que eu sou o culpado de Bin Laden ter jogado o avião... é um horror, uma paranóia, eu vou ter que ser internado! Porque a minha paranóia não tem limite. Então, quando eu comecei essa reflexão sobre a loucura, é que eu tenho uma reverência pela loucura que está além de qualquer coisa. E o meu tributo à loucura é o Superoutro, uma loucura que eu posso falar sobre ela, porque eu já estive lá; e falar sobre ela de forma a transcendê-la. Eu acho que o Superoutro tem o mérito de vencer a morte, de vencer a loucura.

RG: Uma loucura produtiva.

EN: É, tem a ver com o infantil... Então eu fiz um filme, Alice no País das Mil Novilhas, que era sobre o cogumelo que nasce na bosta do boi. É um filme oral, porque come-se o cogumelo. O segundo filme é O Rei do Cagaço que é o filme anal, obviamente. (risos) O terceiro é o filme fálico. Então é uma trilogia freudiana...

RG: Exposed?

EN: Sim. Tem uma Jornada de Cinema na Bahia que é hoje um simulacro do que foi no passado. Era uma jornada muito concorrida, onde todos os curta-metragistas, abedistas e todos se reuniam para discutir a política de cinema, o curta-metragem, o cinema político, o cinema de guerrilha, o cinema alternativo, de esquerda, stalinista, trotskista... o festival mais engajado que existia, com uma grande assistência de todo o Brasil. Neste dia, eu estava exibindo o Exposed. Quem estava coordenando o debate era o José Carlos Avellar. Aí, rapaz, começou o debate. Quando passaram o microfone para mim, comecei a falar recitando um poema em francês: "Maintenant je vais à l'école / j'apprends chaque jour une leçon / et celle qui prends la main à mon épaule / dit que je suis un grand garçon / quand le maître parle je l'écoute / et je retiens ce qu'il me dit / et il est content de moi sans doute / car je vois bien qu'il me sourit -- dedico este poema a Jean-Claude Bernardet!" (risos) Foi aquele mal-estar! "O caralho, o filme é sobre o caralho, vou falar de caralho, de pica, de buceta, de cu, de porra, de muita porra". José Carlos Avellar: "Mas assim não é possível, seu Edgar! Vamos conversar." (risos) "Conversar o quê! Vamos conversar. Não precisa conversar com a boca, pode conversar com o cu, pode peidar! Você pode fazer assim, ó. Todo mundo assim comigo, isso é um exercício de ioga. Eu não vou falar, não vou conversar, eu vou dançar! Vou me exprimir com o corpo, pode?" "Pôxa, assim não dá, vamos continuar o debate!" (risos) "E você acha que não está havendo debate?" Foi nesse clima. Aí ele disse: "olha, se o senhor continuar assim, eu vou me retirar!" "Ah, o senhor não vai se retirar não, eu vou me retirar!" Eu me retirei da mesa e fui para a platéia, ali eu estava onde eu queria. Continuou o debate e eu comecei a fazer interferências cada vez mais ácidas e escandalosas: "o filme, Exposed, não é sobre pica? O filme não é sobre pica, é sobre nudez. Então eu vou tirar a roupa!" Antes disso, teve um negócio que ele falou que não me lembro o que foi... Era meio um acirramento, uma coisa assim. Ele disse um desaforo para mim. Eu disse: "olha, rapaz, você quer saber de uma coisa? Vá tomar dentro de seu cu!" (risos) Ele levantou e saiu. Aí, não teve mais jeito. Eu disse: "Não é isso que vocês queriam? O microfone está comigo, o microfone é uma pica, o microfone é potência. Eu agora tenho o poder. Então eu agora vou exercer o poder da porra sobre vocês. Vou fazer um círculo mágico aqui, ninguém mais sai desse lugar enquanto eu não contar a minha vida toda para vocês. (risos) Essa camisa está me incomodando, está fazendo calor, vou tirar..." Na seqüência, tirei a roupa toda. Comecei a lascar o cu, a bater a pica pra lá e pra cá, gritando e xingando... fiz um círculo... enquanto o pessoal gritava: "Vai, Edgar!" Virou uma baderna lá dentro. Gente se retirando, gente indignada. Chegou lá nos píncaros da glória, eu vi um movimento estranho, me deu aquele medo da porra, eu pensei: "porra, vão chamar a polícia. Vou me foder!" Era a ditadura militar. Aí, me sentei, baixou aquela onda, veio um amigo e disse: "Edgar, pegue a sua cueca, vista a sua roupa e saia como se nada tivesse acontecido" (risos) Peguei tudo, me vesti, peguei o ônibus e fui para casa. Só.

RG: Edgar, nós fazemos parte de uma geração que viu Superoutro em algum momento da formação de cinéfilo sempre em torno de uma aura de mistério, porque a gente corria nas revistas e era pouca a informação -- tem uma matéria na Cinemin, outra na Tabu... é um filme com o vigor de um Bandido da Luz Vermelha, de um filme iconoclasta e revoltado que mostra uma grande energia.

DC: o Superoutro é o mais marginal dos protagonistas do cinema brasileiro. Ele é louco, mendigo e suicida., quer dizer, é além do cinema marginal. Muito além do que Sganzerla, Bressane e qualquer um podiam imaginar. Você realmente encheu o cinema de merda e coragem...

EN: E era uma coragem suicida, né? Quando eu falo em kamikaze, é porque eu tinha a sensação de que o que eu estava passando em alguns momentos era tão doloroso e tão para além de qualquer tolerância... tolerância que eu digo é de você suportar o fardo. Eu era um pouco como o Brás Cubas. Alguém que já morreu. Eu não tinha mais porque ter medo de nada. É como alguém que vai morrer cedo. Eu devia ter morrido cedo, mais cedo, bem cedo. Já que não morri e sobrevivi, agora é difícil lidar com uma metáfora que você criou que não tem conciliação possível. Aí você tem que sobreviver, fazer negócios... por isso que eu digo que o Superoutro é muito melhor do que eu. Eu gostaria de já ter voado, de ter partido. Glauber, por exemplo, morreu cedo e acho que morrer cedo é confortável em certo sentido porque sobreviver é uma infâmia. Mas eu tive um bicho desse de orelha que me revelou em algum momento, por causa de maluquice -- esses sinais que a gente tem -- que em vez de morrer com a idade de Glauber, eu ia morrer com o dobro da idade de Glauber, eu ia morrer com 84 anos. Aí eu digo: "meu Deus do céu, mas eu vou ter que viver até lá?" Mas isso era um horror para mim. Hoje eu já não encaro com horror, muitas vezes eu encaro com muita alegria, poder viver com saúde e com alegria. Agora, isso foi revelado para mim como um carma, "você vai ter que suportar esse peso até velho, dor, doença, loucura, morte e tudo na sua vida você vai ter que aturar..." E o barato que eu saquei é que o cinema fez comigo uma grande magia, uma grande alquimia... dentro dessa linha que eu estava estudando da ioga e da alquimia e etc... hoje, eu tenho essa reflexão. Eu vou fazer um filme agora cuja metáfora é: "transformar dor em luz." E luz é a matéria-prima do cinema. Essa é a metáfora do Eu me Lembro. O filme termina quando a personagem diz que vai comprar a câmera de super-8, vai tentar mostrar isso fazendo um filme...

FV: Voltando ao Superoutro, um paralelo que é, para mim, quase impossível deixar de traçar -- até porque há referências visuais em seu filme, assim como temáticas, com essa coisa do herói do terceiro mundo -- é com O Profeta da Fome, de Maurice Capovilla.

EN: Eu não assisti a este filme. Me falaram dele. Eu quero ver esse filme.

DC: Com o Mojica dublado pelo Pereio...

EN: Quem me falou desse filme foi o Aleiques Eiterer, que está trabalhando numa tese sobre esse filme.

DC: Bem, voltando à questão do super-8...

RG: Depois dessa trilogia, o que você fez?

EN: Eu fiz um filme em super-8, que foi um ensaio do Lin e Katazan, esse de 35mm. É o mesmo filme com outros atores, um ensaio. Depois eu fiz Na Bahia Ninguém Fica em Pé, que é um documentário sobre o cinema baiano, pegando o depoimento de várias pessoas, falando dessa indigência do cinema baiano naquele momento -- como sempre, né? --, 1980. Depois eu fiz o Lamarca [Porta de Fogo] em 82 e o filme foi exibido em 85, porque foi finalizado em 84, mas ficou um ano sem poder ser visto, proibido pela ditadura, porque era "contra o regime democrático". Eu recebi um documento que ainda tenho. Aí foi exibido pela primeira vez em 85, ganhou ironicamente o prêmio de melhor filme de ficção na Jornada. Em Brasília, ganhou melhor filme e melhor roteiro. Foi quando conheci João Carlos Viegas, que estava concorrendo comigo com o filme A Última Canção do Beco, um filme bonito sobre Manuel Bandeira.

FV: Seus primeiros filmes em super-8 chegaram em outras partes do Brasil, num esquema de cineclubes?

EN: Foi para Aracaju, Recife, Alagoas, tinha um festival de cinema super-8 em Niterói... no circuito de super-8 eles todos circularam bastante.

DC: O Rei do Cagaço, inclusive?

EN: Sim. O Rei do Cagaço ganhou o prêmio de melhor filme de ficção no festival de Recife em 77. Eu circulei também nas universidades, mostrando em circuitos alternativos. Levava o próprio original, não tinha cópia do filme. Aliás, foi esse original que vocês viram telecinada. Felizmente não se perdeu muita coisa, porque alguns pedaços foram cortados na grifa, mas deu para preservar. A trilha sonora está sendo restaurada pelo Itaú Cultural que vai fazer uma mostra de todos os filmes representativos da década de 70 em novembro, em São Paulo.

RG: Uma última pergunta, relativa a seu período na década de 90. Eu acho que não foi só você, dos grandes iconoclastas e rebeldes do cinema brasileiro, que teve dificuldades em filmar. Ozualdo Candeias teve dificuldades, Rogério Sganzerla só conseguiu fazer um longa...

DC: Jairo Ferreira...

RG: ... eu queria que você falasse do seu percurso nos anos 90, e da dificuldade, se houve, de fazer cinema.

EN: Muitíssima dificuldade. Quando o Superoutro foi bem recebido em Gramado, eu achei que minha carreira ia deslanchar. E de lá para cá eu não consegui fazer nada, doze anos depois. É bem a cara do que aconteceu comigo. Durante esse tempo eu fiquei produzindo roteiros de longa-metragem; produzi já quatro roteiros e o quinto será filmado ano que vem, por ter ganho um concurso de roteiros lá na Bahia. Fiz também um documentário em longa-metragem em video, chamado Talento Demais, que dá conta desse muito talento que temos lá na Bahia, mas que tá muito lento, tá lento demais.

RG: De que ano é?

EN: É de 1995. O filme conta a história do cinema baiano de uma forma brincalhona, metalinguística, pegando cenas de filmes baianos e depoimentos das pessoas. Vai alinhavando aquilo e brincando com a própria dor. É rir da própria dor para não chorar. Bem, depois tem um outro filme pequenininho de seis minutos, que eu fiz em video, chamado O Papel das Flores, que conta a história de um fotógrafo que perdeu todo o acervo que ele tinha. Ele passou a vida toda em busca da fotografia perfeita, e quando ele perde aquilo, ele se dá conta de que pode superar, porque já perdeu o filho e superou. Ele vai ser capaz de superar toda a dor. Ele compreende uma coisa e decide ser jardineiro. Daí o título, O Papel das Flores, que é um jogo com o papel fotográfico e o papel das flores. Ele fotografava flores e paisagens, tentava eternizar as flores, e depois de tanto tempo em busca da luz perfeita, ele perde tudo num incêndio. Ele se dá conta que a efemeridade do momento, de produzir uma flor por dia, a eternidade está no efêmero. De repente ele se dá conta que não deve tentar capturar eternamente o momento, não precisa. Tudo o que ele busca está ali, se ele puder ter a delicadeza e a paciência para ser um jardineiro decente. Isso para mim foi muito melhor do que eu posso ser. Eu não consigo fazer nada de jardinagem, porque sou impaciente.

(Entrevista concedida a Daniel Caetano, Ruy Gardnier e Fernando Verissimo - 8 de outubro de 2001)

Publicada em outubro de 2001