21/05/2012

Cinema é feitiçaria



A tecnologia é uma construção de mundo e uma ilusão de mundo. E o surgimento do cinema tornou evidente o uso da tecnologia para a construção e disseminação de ícones. Ícones, antes de seu sentido espiritual, são construções artísticas – “a poesia antecede todas as religiões e sobrevive a elas” (essa é de Paz). Se a tecnologia nos permite vislumbrar o mundo com novos olhos, capazes de enxergar o que antes não podiam, também nos faz crer que podemos dominar as coisas. Mas as coisas são mais do que as coisas.



É isso que move A montanha sagrada: sempre sob a sombra do profano, é uma construção mítica (logo, poética) e visualmente impressionante, dando a ver símbolos de diversas religiões e crenças (“todas as religiões são uma”, segundo Blake). O que move o cinema é a chance de ver. Onde outros propõem obras, este filme não pretende senão procurar o espírito.





A montanha sagrada estrutura essa sua busca com a estratégia da apreensão (ou, diríamos aqui no Brasil, do sincretismo antropofágico). Todos os símbolos apontam para um só caminho - tudo depende do uso que se faz deles. A montanha sagrada, disse o diretor Alejandro Jodorowski, foi feita com a ambição de mudar os caminhos da espécie humana. Como toda obra que concilia a poesia e a religiosidade, pretende unir fala e mundo, palavras e coisas. “Se  o cinema não for feito para traduzir os sonhos ou tudo aquilo que na vida desperta assemelha-se ao domínio dos sonhos, o cinema não existe” (para Artaud).

 

Não se trata apenas de digerir e reconstruir o universo surrealista: o movimento de liberdade que faz A montanha sagrada vai além da pretensão estetizante da atmosfera onírica; este movimento ambiciona antes reorientar as ambições da criação cinematográfica. É um movimento que antecede e sobrevive a contextualizações políticas e sociais - como um novo totem, o filme ganha sentido por sua própria existência. É comum a todas as crenças a fé na força espiritual da fala ou da manifestação: seja no candomblé ou no cristianismo, as palavras e as imagens têm força própria. É isso que o cinema pode ser e mostrar: “O espírito insurge-se contra toda representação. Essa espécie de poder virtual das imagens vai buscar no fundo do espírito possibilidades até agora não utilizadas. O cinema é essencialmente revelador de toda uma vida oculta, com a qual nos coloca diretamente em contato. Mas essa vida oculta, é preciso saber adivinhá-la. Existe algo muito melhor que um jogo de superposições para fazer adivinhar os segredos que se agitam no fundo de uma consciência. O cinema, em estado bruto, tomado tal qual é, no abstrato, libera um pouco dessa atmosfera de transe muito favorável a certas revelações” (Artaud de novo). E no final da Montanha sagrada a revelação é ela mesma, em si.



Assim, quando imagens, sons e palavras podem ganhar permanência para além de um instante, elas assumem a feição da força que as criou: é o que assemelha a poesia ao totem. É isso o que altera os lugares e tempos, segundo a fé. É desse modo que a própria existência de A montanha sagrada torna-o uma empreitada bem-sucedida: o mundo e o cinema se tornam outros por sua existência.





O efeito de sua conciliação apaixonada de beleza e humor ecoa como uma prece a um só tempo autêntica e independente. Em favor de um novo cinema - um novo mundo – para um novo olhar.




Texto publicado em fevereiro de 2008.

Filme Demência



"Filme Demência" é a única fita de Carlos Reichenbach produzida pela Embrafilme, e é também a fita mais pessoal do autor. Uma bela obra, sofrida e instigante, resultado de um momento de crise e transição no país e em sua carreira.

O ano era 1985, o país via o primeiro governo civil em vinte anos tornar-se o mau administrador de uma crise que se agigantava. Enquanto isso, Carlos Reichenbach pela primeira vez via um projeto seu aprovado na empresa estatal que dominou o cenário cinematográfico por anos, a Embrafilme. O roteiro tinha o nome “Propriedade Privada”, havia sido escrito pelo autor juntamente com J. C. Ismael e Inácio Araújo, e a intenção era fazer um belo melodrama, com a presença de um astro italiano, cogitou-se inclusive a hipótese de contratar Ben Gazarra ou Adolfo Celi. No entanto, o projeto estacionou nas mãos da Embra, o dinheiro demorou a ser liberado, e quando o foi já não valia o mesmo. Sofrera dos males da inflação, e, naquela altura, o valor estipulado no orçamento original não estava de acordo com a realidade. Tudo bem, isso não era caso sério, Reichenbach já achava que aquele projeto envelhecera, e já tinha novas idéias. Devido às questões financeiras, não foi possível à Embrafilme resistir aos novos rumos, apesar das intenções de alguns burocratas. (Anos mais tarde, Carlão utilizaria o roteiro de “Propriedade Privada” em exercícios que criava em suas aulas na USP, quando passava sequências dialogadas para serem decupadas por seus alunos).

Carlão decide então filmar sua versão do “Fausto”, o homem que vende sua alma ao diabo, a partir da obra de Goethe, o que desde já é uma referência bastante forte. O cineasta esquisito das pornochanchadas do Galante, que tinha participado do dito cinema marginal, agora se filiava a uma tradição da pesada, criando a sua versão de um cânone do ocidente, o que já era um pouco uma referência a si próprio, oriundo de uma família de editores. Desde já o filme busca os valores da pessoa Reichenbach, para que o artista os reconheça e possa nortear seu caminho. Não há receio em fazer um filme pernóstico, o Fausto acaba sendo um espelho do autor do início ao fim. A conseqüência é que se evidenciarão dúvidas, medos e inseguranças. Reichenbach já disse que faz filmes porque lhes são necessários, e que seus prediletos são os que saem de suas tripas (contrapondo-se aos do coração, por exemplo). E de fato “Filme Demência” é no qual mais se percebe tal exposição, não por acaso Carlão costuma rotulá-lo sua melhor obra. Reichenbach, durante uma hora e meia, faz um filme para se encontrar, com a disposição de se exibir até se tornar uma presença clara para si mesmo. Refere-se à tradição ocidental com Goethe, mas também se refere a Godard e Sganzerla no título, que é um anagrama da expressão “Filme de Cinema”. Da mesma forma, o Fausto que protagoniza este filme em muito se remete ao protagonista do “Paraíso Perdido”, que por sua vez Reichenbach admite ser diretamente inspirado no protagonista do filme “A Primeira Noite de Tranquilidade”, de Valério Zurlini.

Terminado o período das pornochanchadas, estava vindo à tona um novo momento, e “Filme Demência” marca esta ruptura, como o projeto anterior nunca poderia fazer. Não há sedução ao público, a intenção é de instigar, mostrar conflitos às vezes pouco claros e quase nunca solucionáveis. Nosso Fausto não quer o Diabo, mas se vê enfadado pelos valores que o mundo lhe impõe, e o filme nos mostrará sua procura por uma alternativa. Seu dinheiro não vale mais nada, e das mulheres ele parece ter adquirido saturação, talvez asco, embora as notas e as beldades se multipliquem. O Fausto fugirá de Mefisto enquanto ele lhe parece nefasto, e perseguirá uma imagem de pureza redentora que vez por outra ele vislumbra. Isto o leva a deixar a cidade numa estrada sem rumo, ou melhor, no rumo de si mesmo. Não lhe adianta fugir do seu destino de encarar Mefisto, mas isto só se dará quando Mefisto lhe mostrar sua outra face, que é a sua própria redenção. Esta dualidade não é contínua, é uma parte natural do momento que se atravessa. No caso, seu carro atravessa mesmo, de fato, estilhaçando tudo e indo além.

Uma vez rompida a barreira, o caminho estava novamente livre. Carlos Reichenbach entra em nova fase de sua carreira, agora um artista mais consciente de si, que começa a se interessar cada vez mais pelo melodrama subvertido e pela memória afetiva auto-irônica, sem deixar de lado a preocupação social e a pregação libertária. Seu Mefisto se tornara palatável, no fim das contas Fausto terminou escapando, ou melhor, transcendendo a fase das dualidades e dos opostos.

“Filme Demência” só foi possível, como já afirmou Carlão, graças à entrega dos dois protagonistas, Ênio Gonçalves e Emílio de Biasi, atores excepcionais. O filme teve problemas de lançamento, pois se tratava de uma obra cinzenta demais para a época em que ficou pronta, o eufórico início do Plano Cruzado. A inflação, que tanto atrapalhou a produção e que foi tematizada no filme, adormeceu por alguns meses. Receosos da pouca receptividade do público, os distribuidores o engavetaram, e, quando o lançaram, o fizeram pessimamente. É pena. Reichenbach já reconheceu que se trata de um filme difícil, um Miúra, como se diz. Mas é um filme e tanto, bastante rico, e vale a pena ser visto.


Texto publicado em julho de 1999.

19/05/2012

Don Carlone

O Gabriel me falou para escrever um depoimento sobre o Carlão. Achei que ia ser moleza, mas não é tão fácil não. O Carlão é uma figura central em muita coisa que aconteceu na cena cinéfila nos últimos anos. O papel que ele cumpriu foi fundamental na minha formação e na de mais uma cacetada de gente. Então eu acho que esse depoimento tem que falar desse aspecto importante, que precisa ser apontado, mas ele se envolveu em tanta coisa que eu já sei que o panorama fica incompleto. Então, pro depoimento pelo menos fazer jus à pessoa, vou tentar sintetizar a ideia numa frase curta: o Carlão Reichenbach é um cara do cacete.

Quando eu fui apresentado a ele pelo Fran/Chico Mosqueira, na época em que ele deu aulas na ECA, eu já tinha visto alguns filmes dele. Aproveitei a temporada que estava passando em SP para acompanhar o curso. Era um barato: numa aula ele podia passar horas explicando como filmar e revelar em super-8; noutra, fazia uma revisão crítica do cinema dos quarenta anos anteriores; na aula seguinte, botava a turma pra fazer um exercício de decupagem a partir de um roteiro que nunca saiu da gaveta; em seguida, a partir de uma discussão sobre a importância de uma narrativa que prescindisse de diálogos, ele exibia um filme japonês do Imamura sem legendas.

Alguns anos depois, o Festival de Cinema Universitário fez uma homenagem a ele, com mostra retrospectiva, trouxe ele pro Rio/Niterói. E nessa época ele estava começando a manter um blog no site Zaz, que depois migrou de provedor - e, como todo mundo sabe, está no ar até hoje num endereço independente, http://olhoslivres.zip.net/ , tendo sido um dos espaços mais influentes nas discussões de cinema por aí. Nessa época da mostra do FBCU, o Carlão topou dar uma entrevista à ainda muito jovem Contracampo, que dedicaria uma pauta aos filmes dele (era abril de 1999, cerca de seis meses depois de ela ter sido criada). Ao conhecer a revista, o Carlão foi muito generoso e divulgou ela bastante, tendo sido a primeira pessoa da área a fazer isso.

Essa atitude não é rara: ele fez o mesmo com todas as iniciativas semelhantes que pintaram na mesma época e desde então, do site Carcasse à Cinética, passando pela Paisà, pela Teorema, pela Zingu!, pela Filmes Polvo e por aí vai. E ele também participou de listas de discussão cinéfila - cujos temas algumas vezes naturalmente vazavam para o blog dele, como aconteceu com o que se chamaria de cinema extremo a partir da participação na Canibal Holocausto.

E, muito por conta disso, nos anos recentes ele criou essa fabulosa Sessão do Comodoro no Cinesesc, um horário em que a cinefilia paulistana tem acesso a filmes notáveis, pouco conhecidos e de difícil acesso.

Daria pra falar mais uma porção de coisas sobre o Carlão como cineasta. Mas isso não vou fazer agora, porque foi feito e segue sendo feito por um monte de gente boa, inclusive nessa edição aqui. Mas vou dizer uma coisa: tem muito valor o percurso que ele seguiu. O Carlão, como uns poucos outros cineastas da mesma época, participou de um momento da produção incluído na chamada contracultura e, quando esse esquema entrou em crise, não teve pudor de entrar no esquemão comercial que existia. Ao fazer isso, fez alguns filmes realmente incríveis dentro desse esquemão comercial, que tão comumente é visto com preconceito. Isso me interessava a tal ponto que foi algo determinante para a pesquisa que escolhi para seguir o doutorado - quero tentar discutir os filmes feitos dentro desse esquema “vulgar”, já desconfiando que uma boa parte da crítica não entendeu nada.

Como eu disse, isso foi feito por outros cineastas no Brasil (Neville, por exemplo) e noutros países. Pois quem conhece o Carlão já deve imaginar o imenso número de cineastas geniais de outros países que ele já mencionou e eu nunca tinha ouvido falar - e ele, com generosidade, me fez perceber que eu preciso conhecer. Qualquer pessoa que conversa com ele percebe essa generosidade, depois de ouvir sugestões de dezenas de filmes muito bons (e às vezes até ganhar a cópia, se ele tiver uma disponível).

Esse é o ponto fundamental que eu queria contar aqui. O Carlão se tornou essa figura de referência pra tanta gente por esse motivo: ele transmite uma paixão muito grande pelo cinema e um conhecimento considerável de um monte de carreiras de cineastas que o amigo leitor nunca deve ter ouvido falar. Com esse jeitão gentil que é bem conhecido pelos cinéfilos paulistanos (e não só por eles), ele ajudou bastante para que alguns filmes fossem vistos com menos preconceito e as discussões e papos sobre cinema não se tornassem caretas e tapadas demais.

O título desse texto foi um apelido que ele mesmo sugeriu para si. Isso aconteceu porque, quando o conheci, eu volta e meia chamava ele de “professor” (já que tinha assistido às aulas na ECA). Ele preferia algum apelido menos pomposo: Carlão, Carlito, Don Carlone... Mas, mesmo que ele não curta o nome solene, escrevi esse texto aqui para lembrar desse papel central que ele cumpriu (com todas as discordâncias e polêmicas, e até por causa delas) como mestre mesmo - não só pra mim, mas pra muita gente bacana que anda aprontado coisas boas por aí.


depoimento publicado em outubro de 2009 na Revista Zingu!, na edição dedicada a Reichenbach.

16/05/2012

Entrevista com Carlos Reichenbach


O Começo no udigrudi

Com Dois Córregos você faz agora 35 anos de carreira, mais ou menos, se considerarmos que você começou em 64 com Uma Rua Tão Augusta...

66, 65 na verdade. Foi quando eu entrei na ESC. Agora você me pegou... 66, não foi 64. Peraí, fazendo as contas: entrei em 65 na Escola São Luís e aí começamos a filmar esse filme em 65, mas depois ele terminou só depois de As Libertinas. Ele ficou parado, não tinha dinheiro para acabar, foi tudo feito na raça. Aí foi o Luís Sérgio Person, que era da Secretaria de Cultura e eles abriram um concurso para curta-metragem que teoricamente existe até hoje,que premia doze curtas por ano.

O Prêmio Estímulo?

Prêmio Estímulo. O primeiro Prêmio Estímulo foi... acho que três ou quatro alunos da São Luís pegaram. Ana Carolina, Paulo Rufino e teve mais um outro. Aí ele falou: "Entra no Prêmio pra terminar aquela merda que você deixou incompleta, né?"

Pra começar: você tem mais ou menos dois perídos marcados, ou então três. Um começo que está mais associado ao pessoal do underground, com dois curtas de filmes, o Libertinas e...

Audácia.

...o Audácia. Depois um período pontuado de... em que você tentou fazer uma mistura de um conteúdo intelectual em uma forma pop. E depois os filmes mais marcadamente dramas ou então especialmente melodrama, como é o caso do Arrabalde.  Como seria uma síntese do Reichenbach que permeia os três períodos?  Quais são as preocupações que desde o começo estão presentes?

Na minha primeira fase eu tenho pra mim que era um momento em que a vida era mais importante que o cinema. O cinema era mais alguma coisa. Um pouco como o poder de apreensão do que a gente tava vivendo naquele momento. Não canso de dizer que fui de uma geração que viveu muita coisa em muito pouco tempo. Desde a experiência política, a experiência de rua até o desbunde, a contracultura, a fase mística... foi isso tudo em quatro, cinco anos. Pelo menos pra mim, naqulele momento, eu tenho essa visão muito clara, distanciada hoje, pra mim foi um período muito grande de desbunde, mesmo. Onde a coisa mítica do cinema foi dinamitada, na verdade. Eu trocava o melhor pelo pior.  Quando eu entrei na São Luís, eu entrei imbuído com aquela idéia do Cinema Novo, de fazer um cinema revolucionário, um cinema que afetasse a realidade, (ri) que mudasse a realidade. Um ano de São Luís, que foi em 65, o momento mais agônico dessa mudança, quando você descobria o que podia acontecer, não o que a gente pensava que ia acontecer. Um certo desencanto, também. Aí um pouco esse pensamento muda, também. Muda na essência da gente não achar que devia mudar o mundo, devia mudar a gente mesmo primeiro. A gente sempre fala que o... o pós-novo (não gosto da palavra underground, os ingleses é que chamavam de pós novo) trocou a sucessão pela transgressão. Os filmes estavam muito próxmios da vida. Eram quase o prolongamento do que a gente estava vivendo no cotidiano. Por isso talvez esse excesso de barato nos filmes, escarro, vômito, uma coisa niilista, eminentemente niilista. Anárquica, mas muito mais niilista, em todos os filmes daquele momento. Mas mesmo assim eu acho que como um olho de cinema eu devo dizer que não entrei na São Luís para ser diretor, eu entrei para ser roteirista. Eu tenho uma formação literária. Sou filho de editor, neto de editor, sobrinho de editor... E pra mim, aquele momento, até 69, até aquele episódio, o segundo episódio, que se chama A Badaladíssima dos Trópicos Contra os Picaretas do Sexo, eu não gosto desse cinema que eu fiz. Eu tenho a maior admiração pelos filmes dos meus amigos. Em geral eu tive um envolvimento com eles, como O Pornógrafo, que foi feito pelo cara que fez o Libertinas comigo, o Callegaro. Eu achava que o Callegaro tinha muito mais talento... O Orgia, do João Silvério Trevisan, o Bang-Bang... esses filmes são importantes. Tanto o Alice quanto o Badaladíssima dos Trópicos não têm importância nenhuma. São mais exemplos de um determinado momento da minha vida. Eu acho que o que eu fazia na minha vida particular é mais importante do que esses filmes. Eu tenho hoje essa visão muito clara. É claro que daí se inclui o Bandido, se inclui uma série de filmes que foram feitos naquele momento, o Candeias. Eu acho que o cinema passou a ter realmente uma importância para mim como linguagem na virada da década, quando a dispersão começou a acontecer. Eu digo que, de certa forma, o cinema pra mimfoi uma salvação. Quando eu terminei Audácia, eu comecei a produzir um filme que eu cheguei a filmar algumas coisas, chamado Guatemala Ano Zero. Ficou inacabado, e que era realmente a tentativa de fazer alguma coisa mais conseqüente do que eu sempre quis fazer antes. Eu acho que tanto As Libertinas quanto Audácia são filmes circunstanciais. Tanto que eu não gosto. Não gosto muito de rever. Eu fico olhando: "Como eu era analfabeto"... em cinema, né? (risos)

E Guatemala Ano Zero?

Guatemala Ano Zero não, Guatemala Ano Zero é um filme pretensioso mesmo. TInha um bando de gente indo embora do Brasil. A idéia era essa, partia dessa frase: o último que sair apaque a luz. Todo mundo se mandando... Eu cheguei a filmar quase 60 travelings pela 23 de Maio, todos os caminhos conduzindo ao aeroporto. Mas obviamente não conseguimos grana para terminar esse filme. Foi um filme indesejado na minha própria família.

O filme tem alguma parte montada?

Não. Só tinha coisa filmada. Esse copião inclusive eu acabei dando pro Andrea Tonacci. Ele estava também preparando um outro filme que ele nunca terminou, dois projetos sensacionais, um projeto chamado Abracadabra, que nunca terminou mas que também tinha esse senso, essa idéia da estrada vazia. Que eu acho  que é a imagem que marca... a imagem mais marcante que tem por exemplo no final do Orgia. Eu acho que é a imagem símbolo. Orgia foi o último filme, junto com República da Traição, de um momento cinematográfico, desse chamado cinema underground. Foram os dois últimos filmes daquele período totalmente interditados pela censura, e os dois últimos filmes a serem liberados dez anos depois. Claro, porque nesse momento, já eram filmes datados, de uma certa forma. Mas eu acho que a imagem do Orgia sintetiza muito aquele momento, porque o filme termina em silência com uma câmara na mão numa estrada vazia.  Não dá em lugar nenhum. Você teve a oportunidade de ver?

Vou ver agora, na Mostra...

Você vai sentir. Depois de cair um abismo total, os personagens são marginais que vão se juntando e terminam num cemitério, uma orgia no cemitério, onde tudo acontece. O filme se autodefine, entra um locutor falando em tupi guarani: "Essa é a geração da sífilis". É o clima da virada da década, mesmo, talvez mais niilista. É o último filme, um filme terminal. O Trevisan é o Pasolini do cinema marginal. O Salò do cinema udigrudi. O filme era detestado por muita gente. Eu adoro esse filme, acho fantástico. Eu acompanhei porque eu fui fotógrafo do filme, e a forma como ele foi feito é muito inteligente. Mas tem pessoas que detestam, odeiam, carregam uma coisa maldita, pesada. Pra mim, naquele momento, eu estava mais como testemunha, um espectador, do que realmente como um autor. O cinema pra mim começa em 71 com Corrida em Busca do Amor. Esse é o meu primeiro filme. Porque foi um desafio, exatamente pela proposta ter sido um desafio. Naquele momento eu começo a enxergar o que vai ser a minha linguagem daí pra frente. E de uma certa forma quebrar um certo preconceito, umas amarras, etc. e tal, e essa idéia de trabalhar clichê. Converter clichês.

A Autoconsciência

Talvez seja a primeira tentativa dum cineasta que trabalha com vocabulário intelectual de tentar mexer com um lado mais popular, com o gênero no Brasil.

Sim, sim. Houve outros cineastas que fizeram isso. O Antonio Calmon fez isso muito bem. Eu gosto demais dos filmes do Calmon, acho que ele consegue ter uma certa identidade. Depois dos primeiros filmes (antes tem o Capitão Bandeira contra o Dr. Moura Brasil, que é uma coisa mais pretensiosa, uma coisa mais de cinéfilo), aí ele embarca mesmo no cinema de gênero, manipula a pornochanchada. Mas também de uma forma absolutamente libertária, filmes como Gente Fina É Outra Coisa, O Bom Marido. Poucos filmes brasileiros conseguiram ser tão amorais como O Bom Marido e Gente Fina É Outra Coisa, o empregado comendo as patroas... Uma verdadeira revolução social do pau, né? Eu gosto muito dessa fase do cinema dele. Mas talvez seja a primeira vez porque foi em 71. Em 71 talvez tenha sido o primeiro filme que não tenha tido o pudor de mexer com esse tipo de repertório. Como eu disse outro dia, isso começa pela minha profunda admiração por um cara chamado Roger Corman, que foi a base pra fazer esse filme. E foi a base pra aceitar fazer esse filme sobre um assunto com o qual eu não tinha a menor vontade de mexer, porque eu nunca me interessei por corrida de automóvel. Mas a proposta era fazer um filme pra criança, uma comédia e o meu co-roteirista, que é o crítico Jairo Ferreira, que escreveu Cinema de Invenção e foi meu assistente de direção e roteirista, no caso... Já tinha um roteiro, mas era muito ruim, então a gente só aproveitou a primeira metade. A segunda metade, como não havia condições financeiras pra fazer um filme up to date com corrida de automóvel... A primeira coisa que faltava era carro pra correr, então a gente era obrigado a improvisar cotidianamente. E antes de começar a fita a gente foi ver tudo que era filme a respeito de casais jovens, Sandra Dee, Bobby Perrin, Frankie Avalon, Annette Funicello, o pior do cinema comercial e o melhor também. Até os filmes do Blake Edwards, um filme com o Jack Lemmon e o Tony Curtis, um clássico do Blake Edwards sobre corrida. Agora eu não me lembro o nome. Mas isso com uma puta consciência de que se estava lidando com Terceiro Mundo, miséria e falta de condições. Mas esse era exatamente o conceito. O roteiro que me foi dado já era um puta de um clichê, a escuderia rica, a escuderia pobre, tinha que dividir o prêmio, quem ia ficar com a filha do patrocinador, essa bobageira toda. Se acrescenta a isso a idéia do grosso daqueles filmes de turma de praia que fazia o Corman, e sempre de uma certa forma conseguia extrapolar. O curioso é que depois eu descobri que vários outros diretores fizeram filmes de corrida de automóvel, também. Entre eles David Cronenberg, Monte Hellman fez um filme antológico, Two-Lane Blacktop. Se eu tivesse visto na época seria até mais decisivo ainda. Só fui ver há poucos anos atrás. É um filme sobre caras consertando carros, o tempo inteiro umas mulheres gostosérrimas e os caras discutindo motor de carro o tempo todo e as mulheres dando sopa. Filme com o Dennis Wilson, que é fantástico, eu sou um fã incondicional do Brian Wilson, pra mim é o grande gênio... Com o Dennis Wilson, o irmão preferido do Brian, o único irmão com quem ele se dava bem. Com o James Taylor... só cantores... eram três ídolos da época. E é um filme antológico. Um filme sobre motores. E com aquela assinatura do Monte Hellman mesmo. Parece que ele trabalha só a essência. Fazer western com dois, três atores... Foi um dos cineastas que foi bem importante ter conhecido alguma coisa no começo. Eu acho que é a partir daí, o cinema começa a existir a partir daí. Eu vivi muito o período underground mas eu não me considerava ainda cineasta. Pra falar a verdade, eu tinha mais afeição pelos filmes que eu fiz como técnico no período ou de uma certa forma tive um envolvimento como colaborador, por isso que eu marquei de propósito O Pornógrafo e o Orgia dio que os filmes que diretamente eu tenha feito. O que eu fiz é muito ruim. Mas a partir de Corrida nasce um cinema com uma assinatura, uma coisa que sempre me interessou que é trabalhar a narrativa, uma coisa que eu rejeitei muito naquele período do "vamos ver".

Digressão: cinefilia e Cahiers du Cinéma

O Carlão cinéfilo já existia naquela época?

Existiu desde os dezesseis anos de idade. Foi quase uma disputa com os colegas, quem assistia mais filme por ano. Eles não tinham muito pudor, a gente aprendeu a... É óbvio que foi muito importante no meio dessa coisa, o fato de fazer cinema, o contato com o Luís Sérgio Person. Ele ficou perplexo porque, por uma casualidade, não vou nem saber precisar por quê, eu era muito mais interessado no texto do que no próprio filme. Eu era assinante, talvez o único assinante no Brasil, da revista Film Culture, do Jonas Mekas... O Person caiu de quatro. E pediu uma informação, eu passei pra ele, e talvez tenha sido por isso que ele falou: "da turma dele, é o único cara que vai ser diretor". E fui mesmo. Eu assinava o Cahiers du Cinéma, lia a Sight and Sound, e tinha a Film Culture. E foi espantoso, porque ele precisava de um... uma vez, a Film Culture publicou um catálogo de todos os filmes que tinham sido produzidos e que o Jonas Mekas distribuía. O famoso Flaming Creatures, do Jack Smith, que é considerado o mártir do udigrudi. Mas naquela época eu já tinha essa dúvida. Eu exercia crítica no jornal de bairro. Tava com um pé entre a crítica e o roteiro até realmente passar pra prática. Eu acho que talvez o fato fundamental para ter passado à prática foi gostar disso. Mas o cinema é Nicholas Ray. Godard era fã de Nicholas Ray, Samuel Fuller então era fã de carteirinha. Claro que foi fundamental pra mim, pra minha formação e para a formação dos meus parceiros, Carlos Alberto Ebert, João Callegaro, o Cahiers du Cinéma da década de 60, da época do Jacques Doniol-Volcroze. Que foi o momento mais inventivo, relamente o Cahiers tinha uma importância fundamental na cinematografia, na forma de cinematografia.

É um período que vai de 63 até mais ou menor 68.

É, acho que os anos 60, né?

Mas o Volcroze já estava antes...

Mas depois a revista teve formato maior, passou a se abrir mais para o cinema B, para as cinematografias de Terceiro mundo. Se via nitidamente que deixavam de ser os monstros sagrados.

É, realmente ela se abre...

Ela se abre. Toda essa fase, até entrar na fase Dziga Vertov... Aí acabou a revista, por um bom tempo. Também tinha a função daquele momento, era uma outra coisa, um outro caminho. Mas aquele instante foi um instante de formação, mesmo. Essa geração toda é extremamente influenciada pelos Cahiers. Por mais que alguns cineastas hoje possam negar – Bressane vai negar de pé junto, o Rogério Sganzerla –, mas pode tirar o cavalo da chva. Nessa época eu convivia com essas pessoas, trocavam Cahiers como figurinha carimbada. Aliás eu tenho umas da coleção da época que sumiram na mão de uns colegas, inclusive um especial sobre o Skolimowski que nunca mais... Eu já precisei uma vez e não achava, aí eu lembrei "ficou na mão de um cidadão"... (risos)

Os ladrões de Cahiers não se revelam...

Não, não se revelam. Mas depois eu parei de assinar.

São Paulo exibia todos esses filmes? Dreyer, filmes japoneses?

Filmes japoneses vinham mais pra nós do que pra Europa toda. Era o segundo maior mercado de cinema japonês do mundo, o Brasil.

São Paulo principalmente, né?

São Paulo e o interior. As cidades do interior, como Presidente Prudente, tinham muita colônia.

Mas os filmes mudos, os filmes nórdicos, Dreyer...

Mais a nível de cinemateca. Por exemplo, demorou pra gente ver Gertrud, Ordet. Mas Ordet pode ver em qualquer momento, em 80 anos continuará sendo o maior filme da história. É o maior filme que eu já vi na minha vida. Tem que ter um olho lido pra poder amar Dreyer. Uma coisa de religiosidade, o filme tem uma ressurreição. Só o Dreyer pra conseguir filmar uma ressurreição. Como diz um amigo, é de assistir ajoelhado (risos). Mas é verdade que os clássicos eu passei a gostar mais recentemente. Hoje eu tenho um entendimento melhor pra ver Dias de Ira do que tinha naquele instante.

De volta à obra: Maturidade

Os seus filmes normalmente tem um caráter libertário, e é engraçado que o seu lado religioso não aflora.

É porque eu não tenho essa preocupação. Uma vez me perguntaram isso. O estrangeiro tem uma visão... foi a primeira pergunta que eles me fizeram quando eu estive na Holanda, por que que não tinha religião nos meus filmes. Porque pra mim é um problema resolvido. Se em 80% dos cineastas brasileiros esse problema não é resolvido é questão deles. Eles achavam que aquilo era marca registrada dos filmes brasileiros.

Mas no seu caso a religiosiodade é muito forte pessoalmente.

Mas é uma questão resolvida. Fui batizado em igreja católica, fui criado na igreja luterana, fui zen-budista... É um assunto que não me incomoda, na verdade. É uma questão resolvida. Eu acho que quando essas questões não são resolvidas elas afloram, não é verdade?

O desejo e a política nunca se resolvem...

Ou se resolvem, não sei...

É o que mais aparece, o desejo, a política e no momento cada vez mais memórias.

Sim, sim. Mas aí é que tá. Você perguntou da primeira fase. Essa é a parte talvez onde esse tipo de cinema nitidamente está em busca de uma linguagem própria. Isto eu acredito que vá claramente até Filme Demência. Minha obra muda em Filme Demência. Eu acho que ela dá uma virada do avesso. Vai até Extremos do Prazer, Extremos do Prazer é o último filme de um período cinematográfico. Embora tenham filmes que tenham isso muito mais resolvido, como Lilian M. Estou pegando a minha visão. Em Lilian M e O Império do Desejo essa questão está mais bem resolvida. São filmes mais radicais com essa coisa de lidar com o gênero no cinema, de lidar com a linguagem do cinema, uma coisa que sempre pra mim foi fundamental, que é a música como personagem. Esses filmes, exatamente por uma certa radicalidade, são mais bem resolvidos. Com Filme Demência a coisa dá uma virada do avesso como opção pessoal, mesmo.

Você acha que Filme Demência é o primeiro filme que já passa a ser de maturidade?

Não sei se de maturidade, mas um filme que nasce pelas tripas. De Corrida em Busca do Amor até Extremos do Prazer são filmes movidos pelo desejo, mas são exercícios, estão em busca da depuração de um estilo. Eu acho que a partir de Filme Demência os filmes nascem pelo estômago, pela necessidade de fazer. São filmes que nitidamente têm uma coisa a ser purgada. E aí sim eles passam pela experiência pessoal. Tanto que é o filme que eu mais gosto. Por ser o mais torto nesse sentido.

Engraçado, porque olhando as entrevistas antigas são três filmes que você fala serem o melhor filme, você fica cambiando; quando você lança Anjos do Arrabalde você diz que é o seu melhor filme; em certos momentos você fala que é O Império do Desejo; mas o mais constante é realmente Filme Demência...

Tem filmes que me agradam por algum motivo especial. O filme que me dá prazer de rever é Império do Desejo. Eu acho que é um exercício de liberdade como eu nunca tinha feito antes. É um filme que sempre me dá prazer de rever. Lilian M também tem um pouco essa coisa de saber que teve um filme feito com 10, 15 anos antes. Tanto que foi dez anos depois o filme que me levou pro mundo. Não foi descoberto no Brasil, ele foi descoberto fora do Brasil, pelo mesmo cara que descobriu todos os cineastas mais importantes hoje, o Hubert Bals, diretor de Roterdã. Descobriu de Fassbinder a Tarkovski a Wim Wenders a pessoas que inclusive estão sendo reconhecidas hoje, Atom Egoyan. Descobriu Krzysztof Kieslowski. Esse homem é um dicionário.

Hoje tem um prêmio com o nome dele lá em Roterdã.

Não é bem um prêmio, é uma grana que você recebe pra poder desenvolver, que era a idéia dele desde o começo. Era uma pessoa extremamente generosa, ele pegava dinheiro do festival. Por exemplo, ele deu grana pro Jarmusch terminar Permanent Vacation. Faltava cinco mil dólares pra sonorizar e ele deu o dinheiro. Falou "termina e traz o filme pro festival". Ele tinha esse tipo de postura. Ele sempre disse, "no dia em que você precisar de dez mil dólares, se resolver o problema pra terminar o filme, me avisa". No Brasil é mais caro, lá por cinco mil dólares você sonoriza um filme. Com mil dólares tira uma cópia, aqui custa quanto? Por isso eu tinha uma coisa com Lilian M. É um filme que sempre me dá satisfação de ver. É um filme que dá prazer. Eu me lembro que quando eu estava com o roteiro pronto eu mostrava pros amigos, mostrei pro Inácio Araújo, que é meu co-roteirista em vários outro filmes, e ele falou assim, "Você tá louco se você vai filmar isso". Eu falei assim, "Eu vou filmar isso" (risos). Ele não acreditava que aquilo fosse pra tela. Gosto muito de Alma Corsária, é um filme que nasceu de uma necessidade, eu tinha abandonado, voltei, aquela coisa. Foi um filme que foi construído e consolida uma idéia que me agrada muito, que é a idéia de cinema artesanal, trabalhar o mais sozinho possível. Meu projeto de cinema ideal é o cinema feito em casa

Você uma vez demonstrou a sua admiração pelo sistema de fazer filme do Éric Rohmer.

Sim, como estrutura, é a ideal. o Rohmer faz primeiro um filme em Super-8, todos os atores ficam ensaiadíssimos e depois roda um por um. Ele tem um sistema de produção que o produtor dá o dinheiro pra ele sobreviver. Ele também sobrevive da obra.

Ele é profundamente religioso, também...

Vou dizer a verdade, vou dizer que você está com uma opinião meio preconceituosa. É além disso. Eu digo o seguinte: essa questão da religião é aquilo que o Penderecki fala quando ele faz as missas dele, que ele mata na mosca. Ele falou que ele não está interessado na religião, ele está interessado no culto, no mistério e é por isso que a obra dele é sensacional, as missas dele são geniais. "Eu não estou interessado no dogma, pelo dogma eu não tenho interesse nenhum, eu não sou católico." Mas ele está interessado no mistério, isso eu acho do cacete. No ritual, entende, essas coisas. É uma grande cagada querer adaptar tudo aos tempos. O desaprender do latim. Por mais arcaico que possa parecer a idéia, essa cultura foi dinamitada, destruída, na verdade. O Murilo Mendes diz uma coisa genial: "Só é novo quem é antigo".  Por isso que eu gosto cada vez mais de Dreyer, eu acho que mesmo naquela época, do cinema mudo, e da passagem do mudo pro sonoro, realizadores que são muito mais modernos do que uma cinematografia aparentemente moderna.

O Jean Vigo é um desses cineastas que não tem herdeiros.

Exato, exato. (...)

Em certos filmes seus, sobretudo da década de 70, trazem ressonância com um momento de época. Te compararam na Europa com o Fassbinder... E, aqui, pelo menos com um filme de uma cineasta que é a Ana Carolina, um filme que apesar de um estilo completamente diferente, mas que trabalham um pouco com a temática de Mar de Rosas, que tem certas semelhanças, colcar a questão sexual, da liberdade sexual, de jogos de guerra sentimentais. Isso era uma coisa consciente naquela época ou foi como uma busca pessoal isso?

Não. Pra dizer a verdade, eu só fui entender a comparação com o Fassbinder posteriormente quando o Bals terminou de ver Anjos do Arrabalde. Ao contrário do que se pensa, fui entender que gostava de melodrama só mais tarde. Mas pra mim isso não era uma coisa muito clara não. Eu achava que eu fazia um cinema completamente diferente, eu não tinha visto o cineasta que é o mais próximo do Fassbinder, o Douglas Sirk, que nunca foi um cineasta que particularmente me chamou a atenção. Até aquele momento. Era uma comparação que, vou dizer com toda a verdade, não ma agradava em nada. Mas era um cineasta que tinha um respaldo. E eu sempre disse isso, que se tinha um cineasta que tinha uma influência grande sobre a minha obra, sobre o que eu vinha fazendo de um momento pra trás foi o Valerio Zurlini. Zurlini é o cineasta que sempre me serviu muito de ponto de referência. Foi muito difícil chegar até ele, chegar a depurar a obra dele. Porque se o cinema dele se aproxima em alguma coisa do melodrama, aí eu aceito, a idéia do melodrama me interessa. Quando eu descobri que o cinema dele se aproximava do melodrama. Mas pra mim era muito mais a coisa da tragedia familiar, do cinema de sentimentos. E o Zurlini era um cara que curiosamente na Europa era muito mal valorizado, só está sendo valorizado agora. O que não há nada mais sintomático, porque eu fui aluno do Luís Sérgio Person, o Person foi aluno do Zurlini, tem uma coisa curiosa no meio desse processo. Eu posso dizer pra você que, desde o amor pela prostituta, algumas coisas em Lilian M, mas sobretudo com O Paraíso Proibido, que é tirado de um personagem quase zurliniano. O personagem do Jonas Bloch é quase totalmente arrancado de A Primeira Noite de Tranqüilidade, que é o cara que está de passagem pela cidade balneária fora de temporada, que tem essa coisa de trabalhar o sentimento. A gente mesmo nunca é a pessoal ideal para detectar a personalidade da obra. O João Carlos Rodrigues, que é um crítico de cinema, ele detectou um negócio que eu agora entendo, ele separou minha obra em filmes masculinos e filmes femininos. Ele dividiu a obra. E pra cada filme masculino se interpõe um filme feminino. Agora virou uma obrigação (risos).

Dois Córregos é um filme feminino, então?

Totalmente feminino. E é o filme mais próximo talvez do Zurlini, então por isso ele esteja surpreendendo algumas pessoas. Mas ao mesmo tempo as pessoas que amam a obra do Zurlini, como o Inácio Araújo, falaram, "agora você pode seguir o lugar e chegar" (risos). Porque é um filme que se aproxima muito de Verão Violento. De Verão Violento e A Moça com a Valise. Aquela coisa de trabalhar o lado político na periferia, uma coisa que está acontecendo lá fora e a burguesia tá vivendo uma coisa completamente diferente. (...) Precisam tirar da cabeça que o Zurlini não é um sub-Antonioni. Talvez o Antonioni é que seja um sub-Zurlini (risos). Mas como eu gosto dos dois, não posso nem brincar muito (risos).

A Cinefilia e a crítica

Mas o Antonioni lida muito mais com linguagem...

Mas a carreira do Antonioni fodeu, esmagou a do Zurlini. Se comparar, realmente, não tem nada a ver. No Antonioni foi uma falta de sentimento, no Zurlini só tem o sentimento. É o inverso.

Eu só vi A Primeira Noite de Tranqüilidade, mas a influência do melodrama...

Nitidamente... Mas ele termina como o Fritz Lang, aqueles finais que só o Fritz Lang sabia fazer. Eu acho que o cinema contemporâneo, o cinema sonoro deve tudo ao Fritz Lang. Isso aí o Hitchcock já falava. O Welles deve ao Fritz Lang. Foi a grande escola. Se você for buscar você acha Fritz Lang nos melhores. Nicholas Ray, Samuel Fuller falam textualmente. A gente está redescobrindo um cineasta francês chamado Jacques Becker, eu consegui trazer a cópia do Le Trou da França e exibimos para mais de cinqüenta estudiosos de cinema numa aula de crítica cinematográfica que o Inácio Araújo deu, e foi um estado de... quem é este cara? Foi um dos maiores realizadores franceses. O filho não é tão talentoso, mas está aí fazendo filmes, o Jean Becker. Ele foi assistente, braço direito do Jean Renoir, e que fez antes de morrer uma obra-prima que o Truffaut dizia que era um dos filmes mais bem feitos da história do cinema. E eu assino embaixo, pra mim é um dos dez maiores filmes que eu já vi na minha vida. Le Trou, A Um Passo da Liberdade.

Eu não conheço, do Becker eu vi o Grisbi.

Grisbi, né? Desse eu tenho cópia. Não é grande coisa não, mas Le Trou é um filme de final de... Truffaut dizia isso bem claro, Truffaut detestava os cineastas antigos.

Apesar de um dos textos de base da Política dos Autores ter sido a crítica do Ali Babá, em que ele fala que o pior Jacques Becker é ainda Jacques Becker.

Pois é, ele tem uma admiração, mas ele fala que Le Trou é o maior filme de Jacques Becker, e realmente é o filme de uma obra inteira. Acho que é um filme inclusive que define a obra do Jacques Rivette. Fica vinte minutos filmando o cara quebrando uma pedra! Fica o cara quebrando o assoalho e você não desgruda o olho da tela! Isso aí é coisa de gênio. Acho que um detalhe fundamental que é assumidamente uma coisa... falei isso muito quando fui lançar Alma Corsária, eu sempre fui um apaixonado pelo cinema brasileiro. Sempre. Sem o menor preconceito contra o cinema brasileiro. O período mudo, a chanchada... Eu adorava os filmes do Luís Carlos Burle. Todo mundo fala do Carlos Manga, o Burle é que tinha o estilo. O Burle era um intelectual. O Carlos Manga não é exatamente um intelectual, mas o Burle é um intelectual. Fez um filme belíssimo, Também Somos Irmãos. Tinha uma coisa de formação e as chanchadas desse cara são muito especiais. Era inclusive uma tentativa de escapar da obviedade da chanchada, etc. E ao contrário, eu gostava de Mojica à Vera Cruz. Vera Cruz alguma coisa, na verdade. Gostava muito do Abílio Pereira de Almeida, que até hoje é um puta cineasta, que hoje está sendo redescoberto.

O Abílio dirigiu os primeiros filmes do Mazzaropi.

Foi. Eram ótimos, por sinal. Candinho, O Homem da Carrocinha, se não me engano. Era um chofer de praça. Mas sobretudo Candinho, que é um belíssimo filme. Eu não tenho o menor pudor de dizer que a última parte de Filme Demência foi totalmente inspirada num filme chamado Chico Alves Não Morreu. O encontro com a cigana está nesse filme que foi dirigido por um mexicano no Brasil. Mas tem uma seqüência que eu vi quando criança que nunca me saiu da cabeça. O Chico Alves ia visitar uma cigana, a cigana lê a mão dele e fala pra ele tomar cuidado na estrada. Isso no meio do filme. No final do filme, tem um plano dele pegando a Via Dutra e tem uma panorâmica, coisa de gênio mesmo, uma panorâmica do carro dele em alta velocidade pela Dutra, a panorâmica termina com a cigana parada no meio da estrada. Não precisa falar mais nada. Um poder de síntese e de elipse. Começa a tocar a música e você já sabe que o cara se fodeu. Essa seqüência nunca saiu da minha cabeça, eu tinha pesadelos ao lembrar. Por muito tempo eu associei a imagem da cigana à imagem da morte. Eu tinha que tirar isso pra fora, e agora está lá (risos).

A gente estava falando de cinefilia, e o perfil de cinefilia mudou um pouco dos anos sessenta para cá...

Ah! Perdão. Bom, obviamente, cinema japonês.

É, você fala que não via tanto melodrama mas é engraçado porque a carreira inteira do do Mizoguchi é em torno dos melodramas.

Sim, mas eu entendo mais melodrama no sentido do cinema feminino, do chamado filme feminino. Não é tanto essa noção do melodrama, da tragédia. Ele trabalhava muito o lado do íntimo feminino. Essa coisa que o japonês tem que o ocidental não tem que é o respeito pela puta. Uma coisa impressionante. Havia outro cineasta que fazia filmes sobre prostitutas extraordinário chamado Yasuzo Masumura. Num primeiro momento mais do que Mizoguchi tenha influenciado Lilian M, por exemplo. Ele dizia uma frase antológica, e isso me serviu de base para desenvolver o roteiro de Lilian M, que em toda experiência importante, fundamental da vida feminina o sangue está presente. O parto, a menstruação, o rompimento da virgindade. Só um japonês tem uma cabeça dessa. Isso é um registro dos filmes dele, muito pouca coisa desse homem passou no Brasil. A primeira revista que descobriu foi o Cahiers, a obra do Masumura. (...) Essa atividade cinéfila ficou confinada a alguns estados fora do eixo Rio-São Paulo. Mas o que eu acho que também faz muita falta é que o material estrangeiro crítico é muito ruim. Se a referência hoje é a revista Première, Studio, que são revistas comerciais, na verdade... Que são revistas que eu leio, óbvio, se você quer se manter informado, mas cujo padrão de produção, o padrão de qualidade está muito ligado ao cinema que dá lucro. Eu acho que tem um pouco isso também. De uma certa forma, essa desmistificação da política dos autores foi promovida pela crítica francesa e abraçada por alguns teóricos brasileiros, também, e estrangeiros. Isso contrbuiu muito para que sumisse, desaparecesse de certa forma uma certa sede de um cinema de qualidade, um cinema fora dos padrões normais. Você não tem mais o escrever sobre cinema, você não tem uma revista como a Film Cultura hoje, aquela revista que pregava o cinema experimental, e que tinha a sua importância, a coisa de resistência como tinha na época. Acabou no final da década de sessenta. O Cahiers parou quinze anos. E voltou com outro corpo. Tentativas esporádicas, a Trafic é uma revista muito legal, de reflexão cinematográfica, do Serge Daney, maravilhosa. Seria a substituta da Cahiers da época de sessenta, deve sair quatro vezes por ano. Mas tem um pensamento diferenciado. Se bem que o Cahiers mantém gente interessante que escreve, mas é aquela coisa, o cara começa a filmar, pára de escrever. O Olivier Assayas é um exemplo típico, começou a filmar... era um cara interessante, que descobriu o cinema de Hong Kong, descobriu King Hu, descobriu uma série de coisas. Eles não tinham nenhum contato. Eu conheci King Hu pessoalmente e o cinema dele, Um Toque de Zen é uma das coisas mais geniais já feitas na história do cinema nos últimos vinte anos. E nunca passou, por exemplo. Faz falta isso, você precisa desse material, senão fica uma coisa confinada... Esse espírito do crítico da aventura, da descoberta, isso aí foi praticamente perdido. Vingou uma preguiça, a coisa do jogo de poder, a crítica que faz o jogo do poder e não a que se aventura. Isso é mantido até por uma revista muito maldita, uma revista inglesa que até hoje continua, mas que faz muito esporadicamente chamada Frameworks, que é mantida quase heroicamente, com os teóricos mais radicais, que se interessa em descobrir a filmografia do Sri-Lanka, e esgota o assunto. Onde tem isso, entende? Nem vende. Mas eu acho que isso aí faz falta, essa matéria reflexiva. É o mesmo tipo de jornalismo que se faz hoje no mundo inteiro. Eu falo porque eu também escrevo crítica, colaboro com a Folha de São Paulo. O espaço que você recebe hoje para escrever é quase um terço do que você recebia antigamente. Trocou-se o ensaio pela crítica...

Pelo sorrisinho...

Não, nem pelo sorrisinho. Pela crítica rápida, urgente. (...) A coisa fica cada vez mais confinada. Tem uma revista no Brasil chamada Set, eram cinquenta linhas e já está em quinze. Daqui a pouco são cinco, daqui a pouco é uma linha só. E essa é a revista que vende setenta mil exemplares. O cinema brasileiro ocupa um espaço zero, à esquerda. A revista começou a melhorar com o Cristian Peterman e mandaram o cara embora. Você não tem mais o referencial. O cara que começa a gostar de cinema, que aprende cinema, que o incentivo que ele tem a fazer crítica? Eu me lembro que quando eu estudava na São Luís teve cara que entrou pra ser crítico, pra escrever sobre cinema. Isso existia. Vai ver quantos críticos uma escola de cinema forma hoje. E quem tem interesse? Fica com o jornalista, ele vai ganhar um bico, uma grana a mais se fizer uma crítica, um aumento do salário no final do mês. E é verdade, de um momento pro outro passou a ser exercida por repórter policial.

Geralmente os jornais do Rio têm um repórter de cinema e o resto dos críticos é repórter de outra área.

O repórter de cinema por obrigação tem que ser formado em Jornalismo. Não pode ser formado em Cinema ou em Rádio/TV. Tem que ter carteirinha pra poder escrever em jornal, e isso é um problema. O Cacá Diegues, recentemente, depois das críticas do Orfeu, investiu pesado contra a crítica e falou do tratamento diferenciado da visão que se tem do filme brasileiro e a visão de um filme estrangeiro. Por caminhos diversos eu concordo um pouco com ele, não por achar que tem que pensar no emprego das pessoas, mas por achar que quando você vê um filme brasileiro você percebe muito mais os detalhes do que no filme estrangeiro. Muitas vezes é política da própria mídia. Você pega a Veja como exemplo, a revista semanal mais vendida do Brasil. Ela tem uma política de falar mal de filme brasileiro. É cultural dela. Se ela vai elogiar um filme, ela arruma um jeito de falar mal em algum momento. Eu não tenho o que reclamar, porque ela deu uma página pro Alma Corsária. Falou: é um herói, o cinema brasileiro feito por heróis. Aí você fala: puxa, até que enfim. Aí o final diz assim: mas... como todo filme brasileiro é um filme incompleto. Acabou, fodeu a crítica inteirinha. Ela faz questão. Comingo ela foi gentil. Mas o que ela fez com o Louco por Cinema, do André Luiz Oliveira... Botou três linhas, disse que o filme era uma bosta, execrável e que o júri do Festival de Brasília, que premiou, era incompetente. Ela não dizia nada, só isso. (...)

O futuro (do cinema brasileiro)

Relativamente ao que você considerou em grande parte seu público nos anos 70 e 80, que era o público C e D, que não vai mais ao cinema porque não existe mais cinema nos bairros de periferia, e também pelo cinema ter aumentado em grande parte o preço, nos anos 90 isso não existe mais. Você acha que isso diminui a possibilidade de os seus filmes dois seus filmes ou você acha que Dois Córregos é um filme que não vai sofrer com isso?

É um outro viés, acho que também mudou. Um dos motivos da fuga do espectador foi o aumento desmedido do preço de ingressos, o fechamento de várias salas, mas sobretudo e principalmente a entrada do filme pornográfico no Brasil. E aí não é uma crítica moralista, muito pelo contrário. Todo filme pornográfico entra no mundo todo em gueto. Na Holanda, que é o país mais liberal do mundo, ele foi confinado a gueto. Aqui, pela maneira como ele entrou, ele entrou com o dedo do americano mesmo de destruir o cinema popular, que era o único cinema brasileiro que dava dinheiro. Isso aconteceu em São Paulo com o cinema Art-Palácio, com o Cine Ouro, com o Cine Windsor, que eram pontos onde estreavam os filmes brasileiros e ficavam semanas e semanas em cartaz. Isso tentaram fazer com o Marabá, o que era pior. Aqui no Rio de Janeiro aconteceu com o Cine Vitória, que era o cinema mais popular que você tinha no Centro, o grande cabeça de lançamento que você tinha aqui, da Severiano Ribeiro. Tocaram filme pornográfico e destruíram o cinema. Volto a repetir que não é nem uma questão moralista, ele entrou de uma maneira desbragada, ele entrou de uma maneira autodestrutiva, niilista, suicida. Não é toa que 80% desses cinemas viraram templo depois. Nada mais sintomático. Isso pra mim foi o golpe mais sério. Mas assim como esse público mudou, os filmes mudaram também. Não tem muito mais sentido voltar a trabalhar com o repertório que eu trabalhava na década de 70, 80. Agora tem um novo tipo de relação. Não é você tentar tanto seduzir. Eu acho que o que marca o cinema brasileiro legal nessa década é que o filme brasileiro virou cultura de ponta. Graças a isso é que você está conseguindo trazer um público novo e reciclar cinema hoje no Brasil. E ai do momento em que você perder esse viés. Não é impossível se você encaminhar pra esse lado do cinema industrial, do cinema comercial. Isso hoje seria suicida.

Não tem como brigar.

Tem que acentuar cada vez que o filme é importante que ele seja visto, porque se você não viu o filme você vai estar por fora. O teatro está enxergando isso, a música esté enxergando isso. Não existe esse conceito de cinema industrial, isso sempre foi uma mentira. Em país de Terceiro Mundo não existe esse conceito de cinema comercial. Tudo que vingou aqui foi sempre pelo caminho do artesanal. Desde a época em que exibidor produzia filme com a chanchada. E diga-se de passagem o seguinte: o que sempre tornou o filme do cinema brasileiro rentável foi a parceria com o exibidor. Não dá pra esquecer que a chanchada foi 90% produzida por exibidor, produzida pelo Severiano Ribeiro, pela Atlântida. E a pornochanchada também. 80% dos filmes de pornochanchada tem parceria com os exibidores. Os três filmes que eu fiz com o Galante mais três que eu fiz à parte têm co-produção dos exibidores. Os mais diferentes possíveis. Represa Sul, Represa Havaí, a Paris Filmes, os donos da sala. Acho que isso é determinante. Esse público que se perdeu tem que resistir com o filme de ponta.

A última pergunta é em relação aos seus projetos. Pelo que eu li são dois projetos que seriam feitos antes ou depois do Dois Córregos, O ABCD Clube Democrático e O Amigo Católico.

É, o Clube Democrático é um projeto de cinco filmes. São quatro longas pra serem filmados simultaneamente. Está inclusive em captação do primeiro filme.

O Schwarzenega, não?

Aurélia Schwarzenega. Descobri que a mãe do cara chamava Aurélia também (risos). Vou ser obrigado a mudar o nome. Uma coincidência tão... É que apareceu uma notíica que a mãe dele tinha morrido, Aurélia Schwarzenegger. Eu nunca soube que era o nome da mãe dele, podia ser qualquer nome mas se chamar Aurélia... (risos)

E o filme que você ia fazer com os garotos da ECA agora que você saiu não vai mais acontecer?

A idéia era fazer alguma coisa usando o material que estava queimando na TV cultura e o negativo estava hipervencendo. Era um projeto que a escola tinha que ter um interesse também. Eu tenho muitos projetos, vários projetos. O mais importante é o primeiro. Eu não sou vítima de projetos, sabe aquele que fica, "ah, vai dar vinte anos e aquele filma não saiu, vou me trucidar", etc. e tal. O que existe de projetos prontos lá dentro, prontos inclusive para desenvolver, tem um projeto que se chama Sol Vampiro... Enfim, tem uma infinidade de projetos que eu tenho vontade de seguir. Mas eu volto a repetir, o que eu gostaria mesmo de voltar a fazer imediatamente é um filme de maneira totalemente artesanal mesmo. E pra isso tem até quatro projetos nessa forma, o que não é o caso de ABC. ABC é um filme de estúdio, TV Cultura, mas tem quatro, cinco projetos de filmes urgentes, filmes rápidos, filmes como O Chofer do Presidente, um que tem um título do cacete, Phoder com PH (risos), que é um filme que segue um pouco a filosofia de produção do Alma Corsária. Só vai ser começado a filmar quando já tiver a música pronta, sou eu mesmo que vou fazer, eu mesmo que vou fotografar, vou trabalhar com uma equipe reduzidíssima, muito aluno. O projeto que vier primeiro, a gente traça (risos).

entrevista feita por Ruy Gardnier e Daniel Caetano na última semana de maio/99, publicada em julho de 1999.

conversa com Carlos Reichenbach e Inácio Araújo

No final da tarde do dia 2 de setembro [de 2003], Inácio Araújo nos recebeu para uma conversa conosco e com seu amigo Carlos Reichenbach - que ainda se demourou um pouco em um sebo, mas logo chegou com seu bom humor. Carlão mora perto do escritório de Inácio, e aproveitou um tempo livre entre a finalização de dois filmes para nos encontrar (também estava conciliando no período a função de jurado de uma mostra de curtas de horror). Foi no escritório em que Inácio dá aulas de História do Cinema que Cléber Eduardo, Daniel Caetano e Filipe Furtado tiveram o prazer de representar a Contracampo nessa conversa.


Daniel – Vamos começar, então?

Inácio – Vamos lá. E sobre o que a gente vai conversar?

Daniel – Acho que inevitavelmente vamos falar de cinema atual. Afinal, vocês são dois amigos que acompanham a cena cinematográfica com atenção, sempre com novas e velhas descobertas... (para Carlão) Eu vi um texto recente seu sobre John Flynn...

Carlão – Mas espera aí, John Flynn eu acompanho há muito tempo!

Daniel – Certo... Mas, com relação ao cinema brasileiro atual...

Carlão – Mas que cinema brasileiro atual?

Daniel – Você está finalizando dois filmes...

Carlão – Mas eles não têm nada a ver!...

Inácio – O Carlão é o cinema brasileiro atual...

Cléber – Vamos lá, Carlão, como é que você coloca estes seus dois novos filme dentro da produção de cinema atual deste últimos 4 ou 5 anos? Como é que ele não tem nada a ver com a produção recente? Ou como é que tem a ver?

Carlão – Olha, primeiro, seria muito arrogante dizer simplesmente que não tem nada a ver. Tem a ver com certeza, mais com o espírito de produção, talvez, mas tem... O que eu não vejo muito é qual o perfil em que se encaixariam esses filmes, tanto um quanto o outro. O que para mim marca estes dois trabalhos é a independência, são filmes que trilham um caminho absolutamente independente... Mas, de certa forma, se você ver pelo prisma de produção e de realização, eles têm tudo a ver. Cada momento, cada instante nos exige uma estratégia. Se você não for atrás desta estratégia, e eu que não parei nem no período do Collor percebo bem isto, o que acaba transparecendo é que acaba sobrando muita impostação, muita preguiça de mexer o corpo...

Daniel – Como assim?

Carlão – Transparece um certo corpo mole mesmo, um discurso de que não dá pra produzir... Ou você se adapta; percebe que está difícil, que dá para fazer, mesmo que seja complicado, ou não faz. Você precisa buscar as estratégias válidas.. Eu mesmo cheguei até a estudar administração de empresas na época da Casa da Imagem! O Inácio vai lembrar disso... (para Inácio) você lembra da gente nessa época, do nosso projeto?...

Inácio – Claro, claro...

Daniel – Agora, uma coisa que tem se dito bastante sobre cinema brasileiro é que este é um ano onde nós estamos tendo alguns, não sei se esta expressão cabe nas circunstâncias, mas temos certos blockbusters nacionais, filmes que vêm tendo um contato com o público bem forte, uma bilheteria relativamente alta, desde Cidade de Deus, agora tivemos Deus é Brasileiro e Carandiru. Mas diz-se também que, por outro lado, falta no mercado o filme de público médio, porque os filmes com orçamento médio não estão tendo o nível de público que se esperava, com raras exceções.

Filipe – O Homem que Copiava.

Daniel – Claro, O Homem que Copiava, antes teve o Avassaladoras...

Carlão – Mas tem que levar em conta que por trás de todos estes filmes tem a Globo Filmes. Não tem a Globo Filmes, não tem este público, esta é a grande verdade. O máximo que pode ter é o público do Amarelo Manga, que faz duzentos mil, é um público sensacional, mas é um público de filme independente...

Daniel – Foi o que antes fez o Cronicamente Inviável.

Carlão – Exato, exato... Não dá para querer generalizar, mas para conseguir um público maior que este tem de ter a Globo Filmes!...

Inácio – Ou então uma das majors, Columbia, Warner...

Carlão – Não tem nada de Columbia ou Warner, tem que ter a Globo Filmes!

Filipe – O Homem do Ano, por exemplo, foi distribuído por major e não deu nada.

Carlão – Exato, não deu nada, o filme da Casa de Cinema, o Tolerância, também não deu nada. Porque lançaram as cópias de qualquer jeito e não deu nada, sempre fizeram assim...

Filipe – Falta justamente a parte de TV, de divulgação, porque a Globo faz o filme existir.

Carlão – Você quer ver um projeto para filme de sucesso para amanhã? Eu tenho um projeto de anos sobre a rebeldia de uma mulher, já mencionei ele várias vezes. Adoraria fazer o filme com aquela menina gostosa, a Kelly Key. Seria um sucesso!... E independente de Globo!...

Daniel – Com a Kelly Key?...

Carlão – É, a Kelly Key... Essa menina é fabulosa!...

Daniel – Mas você já tem uma historia?

Carlão – Tenho, tenho, claro que tenho... Não sei é se...Quero ver ela ter a audácia de fazer!...

Daniel – E você contaria para a gente agora como seria essa história?

Carlão – Não tem nada de mais, a questão não é essa. Só que não seria uma coisa ridícula, puramente comercial, de baixa informação, etcétera... Audácia neste sentido, porque seria um filme autoral. Quem não ia querer ver esta mulher na tela grande? Não precisa ser nenhum profeta para enxergar que este filme que estão fazendo com o padre Marcelo vai dar público. Esta colaboração é uma coisa para mim muito interessante, porque me lembra algo das décadas de 60/70.

Inácio – Este filme do padre Marcelo eu acho muito interessante, porque ele está indo a um público que hoje não é mais o público do cinema. Nós tivemos um filme, que eu não cheguei a ver, sobre Nossa Senhora Aparecida, feito na Boca do Lixo.

Carlão – Com o Nelson Teixeira Mendes...

Inácio – Enfim, estas idéias são válidas, trazem um deslocamento nesta ordem, porque as coisas andam muito convencionais. Cinema está virando uma coisa de coluna social.

Carlão – Esta coisa é muito engraçada... Porque naquela época os cineastas de verdade, os autores, faziam isso. Roberto Farias, por exemplo, quando teve o Promessinha, fez Cidade Ameaçada, que foi um puta sucesso!... Quando teve a história do Tião Medonho, fez Assalto ao Trem Pagador, que não nasceu para ser um cult movie...

Daniel – E sim pra ser um filme de grande público...

Carlão - Exato, um filme de público, um filme sobre a história do Tião Medonho, que era algo bastante lembrado à época. Como de uma certa maneira também era O Bandido da Luz Vermelha, que era um bandido famoso e o público ia ao cinema atraído pelo título – e depois descobria que não era nada daquilo...

Inácio - Mas foi originalmente um filme pra cinema Marabá.

Carlão – Claro, aproveitando o fenômeno do Bandido da Luz Vermelha... Porque isto era algo muito comum da época, teve o Massacre no Supermercado, do J.B. Tanko, que é um filme interessantíssimo, em cima de um fato que foi capa de caderno policial... e que acaba servindo de manancial para o cineasta. Hoje em dia, o que se vê é que a televisão tomou isso, já não há como ter a rapidez da década de 60...

Daniel – Mas não é só isso, tem a questão também do mercado conseguir unir o talento à estrela. Eu estou pensando aqui, por exemplo, num filme que todo mundo deve estar esperando ressabiado, o da Sandy e do Junior. E lembro também de outro exemplo que deu errado alguns anos atrás, que pode até ser que tem tido algo a ver com distribuição, que é o Cinderela Baiana, em que a Carla Perez era a estrela...

Carlão – Mas este é um filme que nasceu para ser errado pela forma de lançamento... Entre os amigos, nós já prevíamos isto de certa maneira, porque a forma como ele chegou ao público já foi toda errada... Porque é um filme que se apoiou na venda de vídeo. O cara se deu por satisfeito em pagar os custos do filme no vídeo! E ferrou o sócio dele, que era o Galante... Se deu por satisfeito quando vendeu o filme para vídeo, e aí é claro que queimou o filme! E ferrou o produtor! Eu não quero ser advogado do Galante, mas foi isso que aconteceu, não teve nada a ver com a qualidade do filme. Até porque qualidade não tem relação nenhuma com sucesso comercial, tanto é que o maior sucesso que o Galante teve foi um filme rodado em um semana e montado em um mês, e foi lançado no Marabá, que foi A Filha de Calígula, que foi feito assim para chegar nos cinemas antes do Calígula ser lançado... Porque tem este lado todo oportunista... Ou você fica ligado nessas oportunidades ou é a TV Globo.

Cléber – Falando nisso, tem uma certa demanda que vem marcando muito a produção de filmes, parece haver uma demanda por filmes que tratam de violência, exclusão social, e que acabam se protegendo pela temática... e que curiosamente, inclusive, são muitos destes filmes que freqüentam as colunas sociais, os tais filmes sociais que não saem das colunas sociais... Me parece que uma parte da crítica fica um tanto acanhada em analisar estes filmes como cinema, tratando deles só como discurso sociais. Isto foi claro no Cidade de Deus, no Carandiru e, de certa forma, no Ônibus 174, estes foram filmes que as pessoas falaram mais do tema do que do cinema. Vocês acham que está acontecendo isto mesmo? Que esta é uma linha que ainda vai durar um tempo? Que são só estes filmes que acontecem lá fora, que saindo disso não se consegue, por exemplo, chegar aos principais festivais internacionais?

Inácio – Começando pelo final, eu sempre achei que, seja em relação ao Oscar, seja Veneza ou Cannes, nós temos que primeiro satisfazer a nós mesmos, parar com esta história de só reconhecer os filmes após o reconhecimento estrangeiro. Quanto ao filme social, pode durar algum tempo, pode se desgastar, é difícil dizer. Eu acho que justifica sua existência o bom diálogo que eles vêm mantendo, isso é sintomático de um certo desejo por parte da sociedade... Agora, do ponto de vista crítico, tanto faz que seja o Ônibus 174 ou o ônibus que faz a viagem normal e não acontece nada, talvez este segundo até renda um filme mais interessante. Mas aí nós retornamos a uma questão antiga, sobretudo para quem como eu e você, que escrevemos para veículos grandes, porque nós escrevemos para um público que não quer saber muito de cinema, o que acaba te levando até o conteúdo, e não passando por questões estéticas... Freqüentemente eu encontro pessoas que vêm até mim e dizem que "o cinema brasileiro está ótimo, os filmes são tão bem feitos"... Francamente, tem coisas que eu gosto, mas não é dos momentos em que eu consiga me entusiasmar mais. Outro dia eu peguei por acaso, no Canal Brasil, um filme do Victor di Mello chamado Giselle, que é muito ruim, mas tem algo ali que é muito verdadeiro. Havia uma preocupação com o olhar que eu já não vejo mais. Eu me ressinto muito do público de cinema ter mudado tanto. Ali, diziam que a menina tinha voltado da Europa, mas você via que ela não tinha cara de quem chegava da Europa, no máximo ela tinha voltado de Bangu, mas tudo bem, o filme seguia numa boa...

Daniel- Eu gosto muito de Giselle...

Inácio – Você gosta muito? Pois é... Agora, hoje me fica a impressão de que existe algo muito artificial... Há quem consiga driblar isso, mas não são muitos. O tipo de exigência do público é que tem que ter um roteiro bom, tem que ter a fotografia boa, o filme acaba todo empetecado, um certo novo-riquismo. Engraçado nisso, talvez seja a época, agora você vê o cinema argentino, talvez não tenha tanto mais do que nós, mas eles têm uma questão, enquanto as nossas questões, e a social é uma delas, ficam sempre num segundo plano. Aqui você fica numa coisa vaga humanística onde no fim se escamoteia as questões... Acho que para você ter um grande momento de cinema, você precisa estar vivendo um momento social coletivo também, por pior que seja a situação do país. A Argentina mesmo é um bom exemplo disso. Funciona porque eles têm um objetivo, têm algo a resolver... Enquanto nós... parece que estamos num breu. Uma situação meio como a desse filme do Woody Allen, Dirigindo no Escuro, todo mundo dando um vôo cego sem saber por que está filmando. Daí você acaba aportando no ponto seguro que é o problema social e faz um filme, melhor ou pior.

Cléber – Achei legal você citar o cinema argentino, porque o cinema argentino que eu venho acompanhado, mesmo quando não tem nada a ver com a Argentina, tem tudo a ver, porque eles conseguem trazer toda a questão do país para dentro do filme mesmo que de forma indireta. E me parece que eles sabem muito bem contra quem eles estão falando, existe um alvo. Enquanto aqui, nestes filmes sociais, e o Ônibus 174 me parece o exemplo maior disso, existe uma culpabilização da sociedade inteira, o que acaba gerando uma situação em que o espectador que pagou o ingresso para ver o filme fica livre da culpa, porque ela é de uma sociedade abstrata, que são os outros, ao mesmo tempo que nunca é diretamente o Estado. Não sei se vocês concordam comigo, mas eu sinto que há uma abstração...

Carlão – Olha, eu queria discordar de você e do Inácio, porque eu não vejo nada demais nesse cinema contemporâneo argentino, que, sinceramente, eu acho uma merda!... Acho tão hollywoodiano e com pretensão de ir para Oscar quanto o brasileiro hoje. Para mim o cinema argentino que interessa é o do Subiela e daquele outro cara...

Daniel – O Agresti?...

Carlão – Esse, o Agresti... Depois da geração deles me desinteressa completamente, é um cinema para exportação, um cinema de vender imagem. Um cinema de cara única, inclusive é algo que eu acho que o cinema brasileiro ainda não tem, que é este cinema de cara única... Que é uma coisa que eu tenho horror!... As pessoas ficam achando ótimo, mas para mim os filmes são todos iguais... Eu acho que, depois deste enterro apressado do cinema da política dos autores, de certa forma o cinema no mundo inteiro passou a ficar desinteressante. Eu não gosto deste cinema argentino, não saio de casa para assistir, não tem filme do Subiela, nem tem filme de nenhum autor interessante. Só existem algumas exceções...

Inácio – O grande cinema sempre é exceção.

Filipe – Teve o La Ciénega, da Lucrecia Martel, que é um belo filme.

Inácio – É... Eu acho que o cinema argentino, eu não tenho certeza porque não conheço o suficiente, também tem os dois lados...

Carlão – Mas então é a mesma coisa daqui! É o cinema do best-seller, se você ver bem, todos estes filmes são de livros bem vendidos: Cidade de Deus, Estação Carandiru - que é um filme que eu gosto muito -, O Homem do Ano e tal... Então acabou-se os autores, então vai o que puder, todo este comércio aí... Voltou o discurso que para mim sempre torrou o saco, que é o discurso do mercado. O que, para mim, tornou este cinema absolutamente desinteressante. Agora, você acaba notando certas coisas interessantes. Vocês falaram da crítica. O cinema italiano parece que deu uma levantada recentemente, e eu vi uma análise sobre a responsabilidade da critica nesta volta, é uma coisa muito séria... Eu li o Stefano Satta Flores, que é um crítico importantíssimo, ele estava dizendo que a crítica se conscientizou que a função dela é fazer o público se animar para ir ao cinema ver os filmes...

Daniel – A obrigação do crítico é fazer a pessoa ir ao cinema?

Carlão – Não, você não está entendendo... Eu não quero dizer que é só pra falar bem. Agora, quando for para falar bem, tem que falar com entusiasmo! Falta paixão, cacete!... Escrever com tesão...

Inácio – Sim, às vezes falta paixão...

Carlão – Eu sempre digo para o Inácio que as melhores críticas dele me faziam querer parar de ler o jornal e ir ver o filme naquele instante!.. Lembro que, quando ele escreveu sobre A Bela Intrigante, eu falei "Porra, eu vou ao cinema ver esse filme agora!". Esta é que é a grande crítica, esta é a tradição da grande escola da critica!...

Inácio – Acho que tem que matizar um pouco as coisas. Porque aqui, no meio desses filmes todos, nós também temos os filmes do Coutinho, o que é uma preciosidade... E não acho a questão do best-seller importante, porque a partir deste material você pode fazer um bom ou mau filme.

Carlão – Mas isso é só mais uma coisa.

Inácio – Isso não é relevante.

Carlão – Mas é mais uma coisa, é o cara pensando: "bem, o quê que vai dar certo?"... Quer dizer, isso é o mau oportunismo... Não é aquele oportunismo bárbaro e nosso.

Daniel – É só seguir uma fórmula...

Inácio – Eu sou da opinião de que você pode pegar o best-seller, você pode partir da fórmula, que não tem problema, o problema é onde você chega, não donde você parte. Se você partir do Paulo Coelho e fizer um filme legal, por que não?...

Carlão – Aí fica esta coisa de ficar tudo com uma cara só, aí, por outro lado, tem uma coisa que aconteceu agora com a crítica que me chama atenção pelo que aconteceu em Gramado. Eu nunca vi a crítica ser tão moralista, tão reacionária, tão babaca...

Daniel – Com relação a que?

Carlão – Com relação a tudo, mas sobretudo com o filme do Dennison Ramalho. Os caras vão reclamar que o Dennison falou três palavrões, aí na semana seguinte no prêmio da MTV se fala palavrão o tempo inteiro e ninguém diz nada! Ninguém disse nada, ninguém escreveu nada!... Ali onde era uma coisa idiota, aquilo é uma televisão para imbecil! Nunca li textos tão caretas na minha vida como em relação àquilo lá, inclusive falando mal de um filme que é um dos melhores filmes do cinema brasileiro dos últimos tempos!... Um filme que na verdade reinstitui o melhor do cinema brasileiro, de Mojica a Julio Bressane. É um filme de uma brasilidade filha-da-puta...

Daniel – O Amor só de Mãe?

Carlão – O Amor só de Mãe. É um dos melhores filmes do cinema brasileiro dos últimos tempos. Teve o Amor só de Mãe, teve o filme do Carlos Adriano, que também é uma maravilha. A grande verdade é esta crítica não está descobrindo mais nada, o que me assusta é isto... Eu freqüento Gramado faz 20 anos. Todo ano eu ouço a mesma coisa, que a seleção sempre está uma bosta. Todo ano, segundo eles, está uma bosta! Tem 20 anos que eu ouço isso, por incrível que pareça, o único ano que disseram que a seleção estava bacana foi um ano que ela era bastante discutível, só com filmes com a cara da Embrafilme. Este negócio de você taxar que a seleção está uma bosta é pura preguiça. Se diz por aí que estão elogiando demais, mas eu não acho que estão elogiando não... O que existe são alguns filmes fashion, que estes sim as pessoas têm medo de falar mal.

Daniel – Já que nós estamos falando disso, e retornando a questão do filme social, você se colocou abertamente contra o Cidade de Deus...

Carlão – Mas isso é uma coisa pessoal, na verdade eu nem vi o filme.

Daniel – Você não viu Cidade de Deus?...

Carlão – Não vi... Vi o curta que fizeram antes, o Palace II e nem quis ver o filme depois. Falei para mim mesmo que não ia ver um filme que era aquilo ali, pra quê que eu vou ver?... Eu vaiei o curta!... Eu fazia parte do júri em Brasília, mas mesmo assim eu vaiei, pelo amor de Deus... Não, eu não vou perder o meu tempo... Para quê ver um negócio que eu já sei que eu não vou gostar?

Cleber – A pergunta era justamente sobre estes filmes sociais. De certa forma, botou negro, pobre, sertanejo ou favelado na tela, há uma sacralização da obra em função disso. E eu sinto que muito deste verdadeiro clima de Fla-Flu que aconteceu em relação ao Cidade de Deus vem daí. Onde quem defendia o filme parecia estar mais preocupado em deslegitimar as críticas feitas ao filme.

Daniel – Eu também queria notar o seguinte, que o Cidade de Deus foi comparado em alguns lugares ao Uma Onda no Ar, pelo menos a revista Cinestesia fez isso, mas acho que todo mundo que viu os dois filmes percebeu que CDD tinha uma similaridade muito grande com o filme do Helvécio Ratton. Só que, apesar disso, salta aos olhos que o Ratton seguiu uma linguagem tradicional, até de certa forma engessada por uma série de fatores, enquanto o Fernando Meirelles se antenou com uma linguagem corrente da nossa época. Nisso daí o filme do Ratton foi muito criticado.

Inácio – Porque parecia ser datado de muito tempo atrás.

Daniel – Então, o espectador pode até não discutir linguagem, mas as opções do cineasta são decisivas para sua postura diante do filme. O que eu queria perguntar para o Carlão, mesmo ele não tendo visto o filme, é até que ponto você acha que se justifica ser apelativo para chegar a questão que você quer apontar? A partir de que ponto o caminho em si já torna injustificado a tentativa de se chegar ao fim?

Inácio – Daniel, a questão, se você pegar o Uma Onda no Ar, não é de ser ou não apelativo... A questão é a seguinte: começa o filme, se eu bem me lembro, um carro de policia começa a subir a favela, então você vê traficantes e os rapazes da rádio, volta para a polícia subindo – e qualquer pessoa que tenha visto meia dúzia de filmes sabe que a polícia não vai pegar os traficantes e sim os caras da rádio!... Não dá pra você ter um filme onde você consegue prever tudo, é muito antiquado. Não dá para comparar com o Cidade de Deus, que, quer você queira, quer você não queira, está lá, é de uma eficácia impressionante. E é uma coisa que nós temos de aceitar, que se o filme quer se comunicar com o público tem que ser eficaz. Pode ser moderno como o filme do Meirelles, pode não ser. Eu não concordo com o Carlão, acho o filme do Babenco quadrado ao cubo, mas ele é eficaz dentro do que ele se pretende. Consegue com isso fazer os seus quatro, cinco milhões de espectadores. O cinema tem este lado, ele não pode ser feito só para os leitores da Contracampo. Não é todo ele, mas é uma parte dele que precisa existir.

Carlão – Mas, independente disso tudo, ninguém aqui tem condições de definir o que é cinema popular ou não. Mas claro que ele se torna um sucesso comercial quando ele tem todo um peso por trás, uma TV Globo repetindo "vá ao cinema"... Eu me lembro duma novela onde no meio você ouvia um personagem dizer "vá assistir ao Homem que Copiava!"... Independente dos méritos do filme, o cara vai assistir. Nós sabemos que o boca-a-boca se constrói assim.

Filipe – Até porque, sem isso, não adianta o cara achar que ele seguir a fórmula que ele acredita vai garantir o sucesso comercial. Pra dar o exemplo do O Homem do Ano, quando eu fui ver no Pátio Higienópolis tinha um casal atrás de mim olhando os filmes em cartaz e um deles perguntou "que filme é este O Homem do Ano?"... Quer dizer, está ali toda a fórmula do filme policial "popular", mas o filme não existe.

Cléber – O tamanho do filme determina até a cobertura que ele recebe da mídia.

Carlão – Acho que a discussão é outra. O filme pode ser popular, mas não ser sucesso comercial. Agora, o filme tem que ser honesto!... Quer ver um filme honesto? Surf Adventures. É um filme que não mente, ele é pensado para um público que vai lá, não é roubado, vê surfe e fim de conversa. É extremamente bem filmado e é um filme verdadeiramente popular. Talvez eu ou você pudéssemos nem ver, porque ele podia não nos despertar interesse, mas não importa. Ele é direcionado para um público que vai lá, vê e gosta... Este é o que eu acho um filme exemplar como cinema popular. Não dependeu de Globo nem de porra nenhuma. Então existe um cinema popular...

Daniel – Nesse caso, popular entre quem gosta de surfe...

Carlão – Claro, isso não importa. Agora há filmes assim, este filme do padre...

Inácio – É o filme de gênero com uma origem junto a um público especifico.

Carlão – Mas o filme de gênero sempre tem uma certa ética, de certa forma. Quem vai procurando aquilo vê aquilo. Agora, se é comercial depende muito de quem está estimulando a venda... Não adianta eu fazer um filme de grande apelo popular, porque ele só vai fazer sucesso se tiver este aparato por trás. Vai fazer no máximo 300 mil espectadores, o que já seria um sucesso.

Inácio – Eu acho que a Globo faz parte já desta história. A Globo já esta dentro do cinema.

Carlão – Quer ver um filme que pode ser a maior merda do mundo, mas que vai ser um puta sucesso? É o Olga... O filme tem quer ser um estouro de bilheteria, já está saindo matéria de capa no jornal desde o primeiro dia de filmagem!... Isto gera a curiosidade. Às vezes não precisa ter nem a Globo por trás, o assunto mesmo e as condições de produção acabam gerando a curiosidade. Um filme que me interessa por conta destas coisas, até pelo fato da mãe não estar deixando mostrar o filho como gay, é o filme sobre o Cazuza... Você não está curioso pra ver esse filme? Porra, esse eu quero ver, todo mundo já quer ver!... É um filme que você sente que vai ser um grande sucesso de público, por conta de todo este manancial, este aparato que está por trás, o que não quer dizer que seja um filme popular...

Inácio – O problema é que não existe mais o público popular como nós conhecíamos antigamente.

Daniel – Você tinha falado agora a pouco sobre cinema autoral, sobre a morte apressada dos autores...

Carlão – Não! Da política dos autores! Os autores estão todos vivos! (risos).

Daniel – Mas me parece que este discurso, que já é bem conhecido e difundido, legitima também uma série de posturas e situações viciadas, um cinema feito de forma viciada... A gente vê o Guilherme Fontes dizendo que o filme é dele e ninguém tasca... Nós vamos ter sempre este problema, quem vai diferenciar se o cara é um autor ou um picareta, e se é um bom autor ou um filho da puta, vai ser o público, vai ser todo mundo que assiste depois do filme ficar pronto. Da mesma forma que quem vai diferenciar se um filme de produtora é um filme eficiente num gênero ou um filme picareta vai ser o público. Agora, como é que dá para solucionar, num cinema que depende de uma série de fatores como o brasileiro, esta produção de um cinema autoral independente, se você mesmo fala...

Carlão – Espera aí!.. Só dá pra pensar num cineasta como autor se ele tiver feito no mínimo uns três filmes... Com raras exceções, não existe autor de um filme único...

Daniel – O Jorge Furtado, por exemplo, sempre se coloca como alguém que produz um cinema feito em grupo.

Inácio – Mas o que é um cinema de grupo?

Daniel – Algo como o diretor agir mais como um maestro que como um compositor solitário...

Carlão – Espera aí, você está entrando em classificações como aquelas que o Ezra Pound usava no ABC da Literatura, cinema de mestre, cinema de inventor, que você pode usar para literatura, para cinema, para o que quiser... O que você está falando está mais ligado a uma idéia de cinema de artesão. Agora, a questão do autor vai estar sempre passando por caras que têm uma certa quantidade de filmes...

Daniel – E isso justifica que o Fontes diga que ninguém mais pode ter a palavra final no filme dele, porque ele se pretende um autor...

Carlão – Mas ter a palavra final e ser um autor são duas coisas diferentes. Não é porque o cara tem a palavra final que se garante o aspecto autoral.

Daniel – Quem vai observar isso é quem vai assistir. A minha preocupação é que este discurso legitima...

Carlão – Que discurso?

Daniel – O da política dos autores. Ele legitima um formato de produção que é individualista, que faz a produção e as discussões tenderem ao individualismo.

Carlão – Espera aí, você não está entendendo... Eu não estou falando que este seja o sistema ideal. Agora, para mim é o cinema que interessa e acabou. Se é para radicalizar, eu vou radicalizar sim, o que me interessa hoje, no cinema, é buscar o autor. E você encontra! É uma coisa incrível que você sentia na critica das décadas de 60/70, que era o desejo da prospecção. Você ia atrás dos novos autores. Onde ele se manifestava, a personalidade, a assinatura... Me honra dizer que eu fui o primeiro brasileiro a entrevistar o David Cronenberg. Entrevistei para o Folhetim da Folha de São Paulo, e aí um idiota lá botou o título de "o mestre do nojo"... Eu fiz essa entrevista em Rotterdam, tinha um fascínio desde que tinha visto Scanners, depois com Videodrome tive a certeza de que era um grande autor. Hoje eu sinto que estão deixando passar batido. Quer ver um diretor, que inclusive é canadense, mas que não vem tendo como dar a continuidade? É o Christian Duguay, que fez as duas seqüências de Scanners e um filme produzido pelo Wesley Snipes chamado A Cilada, que era um puta filme de ação. Tem estilo, tem personalidade. Quer ver outro que ninguém fala? Tem o Ted Kotcheff, que é um belo cineasta e não filma mais...

Daniel – Ted Kotcheff é um bom cineasta?

Carlão – É um tremendo cineasta, ou era, antes de cair no esquemão... As vezes eu fico com a impressão de que eu estou ficando louco. Será que é só eu que vejo as coisas? Tem certas coisas que são nítidas. A gente estava falando do John Flynn, outro dia eu estava revendo um filme dele, A Marca da Corrupção...

Filipe – Este filme é muito bom.

Carlão – É uma maravilha, o roteiro é do Larry Cohen. Mas menos de meia dúzia de pessoas se tocaram na época. Existe um esquema fácil de prestigiar o que já vem prestigiado.

Daniel – Isto está muito ligado à legitimação dada pelos festivais.

Carlão – E os festivais às vezes legitimam as coisas com atraso fenomenal. Coisas como Sergio Solima, que o Inácio até comentou hoje quando escreveu sobre a morte do Charles Bronson, e que é um puta diretor.

Inácio – Foi...

Carlão – Mas todos eles foram, porque não teve como dar continuidade. O John Flynn é um caso típico. Fez vários filmes do caralho...

Filipe – Até que ficou sem condição de produção...

Carlão - É. Com muitos destes caras aconteceu isso.

Filipe – Mas aí entra muito a questão do fim do filme B nos EUA, que deixou muitos destes caras sem suporte. Larry Cohen não filma mais, George Romero também.

Carlão – Agora, você quer ver uma coisa do cacete? Que tem um diretor do cacete? É este filme em cartaz com Vin Diesel, O Vingador. É do diretor que tinha feito antes A Negociação.

Filipe – Que é um filme bom...

Carlão – É bom pra caralho! É isso que eu digo: falta paixão, porra!... Antigamente a turma discutia assim, "se eu gosto do filme vou brigar por ele até no soco se for o caso"... Falta isso, as pessoas não brigam mais por isso. Alguém falava mal do Brian DePalma e isso era motivo pra querer sair na porrada! (risos). Agora, o que você percebe nos filmes deste Gary Gray, um diretor negro, é que ele tem um estilo formidável. O fato de, como você disse, o filme B ter virada filme A acabou com quase todos estes diretores.

Cléber – O problema também é que este conceito de autor ficou muito embaralhado, muito nebuloso.

Daniel – E os festivais andam legitimando coisas esquisitíssimas. Se você pensar que Michael Haneke é legitimado por ser autor...

Carlão – Mas não deixa de ser. É um fascista, mas é um autor, isto é indiscutível. Funny Games é um filme horroroso, eu saí no meio, é pior que o Assassinos por Natureza, se bem que pior do que este é difícil... Mas é um autor...

Cléber – Mas o filme é dele.

Carlão – Todo o neofascismo do cara está ali na tela. O que não significa uma critica ideológica, caso contrário eu não gostaria do William Lustig. Até porque mais reacionário que William Lustig, nem Samuel Fuller. E apesar disso hoje ele é o nosso Henri Langlois. Ele vem recuperando os filmes pela sua distribuidora (de DVD), a Blue Underground, tudo que há de melhor no cinema e que não tem reconhecimento. E é o cara que fez os filmes mais fascistas dos EUA. E tem um talento descomunal. O Mensageiro da Morte é um filme impressionante. Voltando, eu sinto falta deste entusiasmo, desta paixão...

Filipe – Mas isto tem muito a ver com o perfil da crítica hoje.

Inácio – Acho que não é uma questão só de critica não, existe um novo perfil da organização cinematográfica. Esta paixão que o Carlão tanto fala é um sentimento que vinha num momento onde você tinha cineclube, onde você tinha uma discussão permanente, onde havia uma crença do cinema como a arte do século. Coisa que hoje, a rigor, não existe. E quando existe não é muito partilhada, só algumas pessoas que são cinéfilas. Mas é algo que quase não existe. O cinema entrou num momento diferente. É uma coisa, entre outras...

Carlão – Tem uma coisa que determina um pouco também o fim deste cinema de autor é que começa a desaparecer a figura do diretor que gosta de cinema, o diretor crítico, o diretor que escreve sobre os filmes, que assiste muitos filmes. Virou esta mania agora do diretor dizer que não vai muito ao cinema, todo mundo fala isso pro jornal pra fazer tipo... Eu já nem vou ver o filme se o cara me fala um troço desses.

Daniel – O Orson Welles dizia isso...

Carlão – Mas é mentira! Mentira! Você pode ver qualquer plano do Welles, você vê ali uma paixão por Fritz Lang, por exemplo, que é óbvia! Muito pelo contrário...

Daniel – Mas dizer ele dizia...

Inácio – E o que o diretor diz nunca importa. Ainda mais o Orson Welles, que era um puta mentiroso. Agora isto que o Carlão diz é algo que eu sinto muito e me impressionou muito no último filme do Woody Allen, em que o cara dirige o filme todo cego e isso é, mais ou menos, o que eu sinto acontecendo com um monte de gente. As pessoas ou não têm tempo de se formar ou não acham necessário. Você sente a precariedade teórica de muitos filmes. O cara simplesmente filma, com resultados melhores ou piores, mas depois de dois ou três filmes você percebe que o cara não sabe por quê está filmando. Aí o cineasta em geral fica na mão do diretor de fotografia, do produtor. Eu até discordo do Carlão sobre esta questão do autor, porque eu acho que a organização do cinema mudou muito. O que não quer dizer que os autores não possam ser interessantes. O que me parece mais grave é que hoje nós temos um contingente muito grande que não vê filme, que faz sem conhecer. Se o cara for um gênio pode até acontecer de ficar bom, mas estatisticamente é improvável, quantos na população são gênios? Se o cara não conhece, não vê, não busca se inteirar sobre a sua arte, não tem como dar certo. Por alguma razão, isto só acontece no cinema. Vocês já ouviram falar de algum escritor que não leu Machado de Assis ou Cervantes? Porque, se não leu, o cara vai, escreve uma coisa e pensa que está inventando o romance. No cinema já não tem isso, por alguma razão misteriosa voltou a não ter.

Daniel – Talvez porque durante um período tenha se produzido em excesso um cinema se referindo ao cinema...

Inácio – Mas você não precisa se referir ao cinema. Isto não é necessário. Eu vejo o Bressanne, que é um cineasta formidável, mas tem uma coisa que me enche o saco, por que é que todo filme tem que ter uma claquete?... Não precisa disso para mostrar que está fazendo uma reflexão cinematográfica. Aí estas pessoas, quando acabam vendo A Inglesa e o Duque, saem dizendo que o filme é reacionário ou que é um filme chato onde se fala muito. O Rohmer está fazendo uma reconstituição de época em digital, usando quadros, onde ele acaba conseguindo o mesmo efeito que se via nos filmes do Meliès. Porra, é um filme onde o cineasta esta com um olho em 1900 e o outro em 2100!... Ele não precisa falar de cinema para nós sabermos que ele sabe do que está falando. Agora, eu acho engraçado que outro dia houve uma exibição de um filme do Jim Jamursch no Cinesesc, parece que lotou tanto que até houve briga na porta. E uma semana antes tinham exibido um Bresson que ficou vazio. Agora, por que isto não acontece com o Robert Bresson, a quem o Jim Jamursch deve tudo?

Filipe – Mas a sessão do Sesc só lotou porque o Pedro Butcher tinha escrito um artigo sobre o filme no dia.

Cleber – Mas ter saído um artigo na Folha sobre este filme já é sintomático de alguma coisa. Porque o Bresson não aparece na primeira página da Ilustrada?

Carlão – E deveria!...

Inácio – Se vocês quiserem entrar na questão midiática, nós entramos numa boa. Agora, a questão é: ou o cinema começa a ser visto por quem faz, ou nós estamos fodidos. Quando eu vejo o filme do Eduardo Valente e eu vejo uma série de outros curtas em seguida, tem uma diferença até epistemológica entre eles!... Você percebe que o Eduardo sabe o que está fazendo, enquanto o outro está lá naquela de "eu vou contar uma história"... Porra, se for só para contar uma história, eu conto uma aqui agora para você, eu não preciso fazer um filme! É mais econômico e rápido.

Carlão – Uma coisa que para mim é mais grave é que o cinema foi jogado na vala comum do audiovisual. Esta para mim é a grande questão. Até os cursos de cinema mudaram. Não se ensina mais cinema, mas o tal audiovisual. Porra, audiovisual é o cacete, não pode misturar televisão com cinema!

Daniel – Você está falando da ECA?

Carlão – O problema não é só ela.

Inácio – A ECA certamente. Mas Campinas agora também está abrindo um curso nesse caminho que... com tudo que pode ter de interessante com pesquisas sobre novos meios, novas mídias e tudo mais, não faz sentido jogar o cinema junto disso tudo...

Carlão – Quando eu era professor da ECA, eu visitei faculdades de seis países diferentes e em nenhum lugar se mistura cinema e TV. Só no Brasil! Nós fomos à escola do Shohei Imamura, que é a melhor escola de cinema do Oriente. Você foi ou acabou não indo, Inácio?

Inácio – Não fui não.

Carlão – É a melhor escola de cinema do Japão. Forma técnicos em todas as funções. Sabe o que os alunos fazem durante o primeiro ano inteiro? Roteiro! Vai aprender a escrever para cinema primeiro... O que acontece aqui, hoje, é que caiu tudo na vala-comum. Não é só conhecimento de cinema que você sente falta, é de um repertório maior mesmo.

Daniel – De uma discussão teórica mesmo...

Carlão – De conhecimento de pintura, de artes plásticas, literatura. O sujeito hoje vem da MTV, não sei de onde, e fica repetindo que o negócio é imagem, que imagem é imagem. Imagem virando qualquer coisa...

Inácio – Espera ai, Carlão. Você esta pintando um quadro desesperador.

Carlão – Mas é desesperador!...

Inácio – Se o cara nem ao menos lê...

Daniel – Eu acho que a vida é mais complicada que isso. Tem gente que ainda conhece a fundo a Rembrandt e pintura em geral, conhece Velásquez e tal e isso não define nada...

Inácio – Não vai ser necessariamente um bom cineasta.

Carlão – Quem? Me diga?!...

Daniel – Em música, teve a Lina Chamie que fez o Tônica Dominante, que o Jairo elogiou na Contracampo, e que entende muito de música...

Carlão – Ela é música.

Daniel – E fez um filme diferente... Aí do outro lado tem o Aluísio Dider, que também é musico e fez o Um Certo Dorival Caymmi, que é um filme bem mais acadêmico e bem-comportado. Quer dizer, este histórico às vezes...

Carlão – Ele fez também um filme sobre o Radamés Gnattali, o Nosso Amigo Radamés, que é uma maravilha!...

Daniel – Eu sei, mas infelizmente não vi esse filme...

Inácio – Uma coisa que nós notamos, não só no cinema brasileiro, é uma absurda incapacidade de perceber as coisas. Não é que o cara não sabe filmar, ele não sabe olhar. Olhar o mundo é algo mais difícil do que fazer filme, exige do cara uma capacidade de observar as coisas. Isto está tudo na história do cinema. Qual o projeto do Jean Renoir? Fazer um grande apanhado da gestualidade francesa. Se você sabe quem é Renoir, você compreende este projeto.

Daniel – Mas acho que o cara tem que ter também a liberdade para ir viver e ganhar a vivência mesmo a história que está contando. O Fuller, por exemplo, tem essa vantagem. Além da paixão pelo cinema, ele viveu muito, não se escondeu da vida.

Carlão – No caso do Fuller tem muito o lado de ter sido jornalista.

Daniel – É, de se interessar pela história dos outros, mesmo. Olhar, enfim...

Inácio – Tinha uma coisa bonita que o Mizoguchi dizia: depois de cada plano, era preciso lavar os olhos. Quer dizer, deixar a vista virgem para olhar de novo. Eu tenho a impressão de que cinema é uma disciplina. Ele exige uma certa disciplina. Eu me sinto muito aborrecido quando tenho a sensação que o cara está querendo me tapear.

Daniel – Mas você citou o Eduardo, e ele mesmo costuma dizer que tem essa questão com a cinefilia e com o cinema da cinefilia, que às vezes o filme pode até ser interessante porque o diretor viu muito cinema, mas parece que o cara não tem nada para dizer de fato, não há vida além do cinema...

Inácio – É evidente que não é tão simples assim. Se você for um imbecil e ver 500 mil filmes, não vai adiantar nada. Você tem que ter capacidade de falar alguma coisa. Tem também o diretor que sai com um primeiro filme maravilhoso, mas depois falta uma idéia que lhe dê fôlego para continuar. Você tem que ter uma capacidade de vivenciar as coisas. Observar o mundo é uma coisa muito difícil.

Daniel – Sobretudo no cinema narrativo, onde você tem sempre esta ligação muito forte com os personagens.

Inácio – Criar a verdade é uma coisa muito difícil, criar verossimilhança é fácil, mas a verdade é algo complicado. Qualquer coisa que aconteça ao seu redor interfere, e na maior parte das vezes contra... Agora, em vestibular cinema virou a profissão mais procurada. Por que mais procurada?...

Cléber – Depois de publicidade.

Inácio - Tudo bem, mas em publicidade você tem como ganhar dinheiro. Cinema, não. O Carlão pode falar melhor sobre isso...

Carlão – Porra...

Inácio – Mas é uma vida de você passar cinco anos juntando dinheiro para fazer cada filme. Ainda tendo que usar esta palavra, "captação", que é por si só humilhante. Quer dizer, para quê? A não ser que a pessoa sinta que precisa fazer cinema, é melhor que vá estudar outra coisa...

Carlão – Agora virou moda.

Inácio – Francamente, eu prefiro os tempos da Giselle.

Carlão – Eu insisto no ponto do cinema ter caído na vala comum do audiovisual. Isso me lembra um lado problemático do campo da música. O caso jovem que parece levar jeito para música e as pessoas dizem "ah, não precisa estudar", "não precisa fazer nada", é só ter talento... Acho que com esta coisa do audiovisual está acontecendo algo parecido. A pessoa acha que não precisa ter formação, e isso não é verdade. Até porque cinema nisso se aproxima da literatura, ele tem uma gramática que você precisa dominar, maior até do que na música. Você olha os filmes, isto parece que não existe mais. O cara diz "vou fazer um filme do caralho" e vai lá e faz algo de qualquer jeito. As pessoas acham que não é preciso conhecer as regras, que qualquer um faz um filme... Eu lembro que uma vez eu ouvi o Mauro Rasi dizer algo nessa linha e quase caí de quatro... Como cineasta, eu acho isso um desrespeito. Eu não saio dizendo que se eu quiser eu monto uma peça com tranqüilidade. Ele disse algo do tipo "se eu pegar um bom assistente de direção e um bom diretor de fotografia eu estou escolado". É um absurdo!...

Daniel – Volto a citar o mentiroso, porque o Welles dizia isso também... Que se você tivesse um bom montador e um bom fotógrafo dava para tapear a carreira inteira.

Filipe – Dá para ficar fazendo filme meia-boca a vida inteira, isso sim.

Carlão – As pessoas acham que não tem o que aprender. Eu sempre brinco que eu tive o privilégio de levar muita cacetada nos primeiros filmes. De não ter sido nem premiado, nem elogiado com os primeiros filmes, porque acho que isso pode ter péssimas conseqüências para um cineasta. Isto você pode ver observando a história do cinema, quantos casos tem de cineasta que desponta e acaba não indo a lugar nenhum... Se por um lado existe um desleixo com o olhar no cinema brasileiro, do outro acho que falta também para muito cineasta levar porrada, porrada no bom sentido, pra melhorar... Agora, em oitenta ou noventa por cento dos casos é a vivência das coisas que forma o autor. É por isso que eu volto sempre a defender o cinema de autor. Porque isto exige uma continuidade e você acaba limpando no meio do caminho o cara que só quer se dar bem.

Daniel – Mas, Carlão, hoje os meios de comunicação oferecem caminhos para qualquer um que quiser se formar e aprender milhões de coisas... ao contrário, o que não falta é informação sobre cinema...

Carlão – Porque foi jogado na vala comum do audiovisual!

Daniel – Para mim, o problema não está nem na formação do autor, mas da formação coletiva, das discussões mais amplas. Porque eu sinto que coletivamente a coisa está dispersa, ainda...

Inácio – É, é exato...

Daniel – Fica cada um no seu individualismo e no seu marketing pessoal. Não existe ainda uma noção comum de movimento...

Inácio – Estou de acordo com você. Nem sei se onde que você quis chegar era isso, mas eu sinto que é uma questão de formação de povo, mesmo... A forma como as nossas escolas estão funcionando é deficiente. Falta muitas vezes uma noção de formação pictórica mesmo. Não só de quem vai fazer filme, mas um repertório mínimo ajudaria certamente as pessoas a irem assistir o Eu, Tu, Eles e ver aquele céu horroroso e perceber que tem algo errado ali!... Eu vejo muito o Canal Brasil, e eu sinto como no nosso cinema dos anos 70 teve um gosto forte por um irrealismo, um excesso, ele não cultiva esta coisa muito mais difícil que é de você estar no real...

Daniel – O naturalismo...

Inácio – Naturalismo me faz lembrar uma coisa muito antiquada. Prefiro usar realismo mesmo. Naturalismo me faz pensar em novela da Globo. Se bem que eu quero frisar que acho as novelas da Globo uma coisa importante.

Daniel – É um folhetim que funciona.

Inácio – É uma coisa digna que tem a sua função, não é contra isso que eu brigo. O problema não é a Globo, inclusive porque eles fazem a função deles melhor do que os outros. Mas, enfim, isto é outra história. Voltando para o cinema da década de 70, existia uma ficção da irrealidade, especialmente no cinema carioca, onde se tinha sempre algo de excessivo. Aí, se você pega os melhores cineastas, um Walter Lima ou Joaquim Pedro, eles driblavam isso, jogavam com isso numa boa... Você vê o excesso do Macunaíma e não tem problema.

Daniel – Ou do Guerra Conjugal...

Inácio – Que é um filme que eu não gosto muito, mas a parte dos velhinhos é maravilhosa. Enfim, todo mundo tem seus altos e baixos... Nós já tivemos momentos de embate, mas com muita freqüência o cinema hoje é auto-complacente. Queria com isso entrar nesta questão da crítica, que o Carlão falou do crítico italiano ter esta função de levar o espectador ao cinema. Vou te falar uma coisa, Carlão, isto foi algo que aconteceu na época da Embrafilme. Foi um momento que a crítica passou a levantar a bola daquele cinema de tal forma que esta crítica acabou desmoralizada... Porque você fala uma, duas, três vezes que Fulano é bom cineasta, na quarta o espectador não te leva a sério e ninguém vai ver o filme, porque ninguém é idiota. Não dá, uma hora o leitor percebe que não é...

Carlão – Olha, Inácio, eu discordo, porque eu não acho que a crítica era simpática com o cinema brasileiro não.

Daniel – Acho que ela foi até bastante cruel.

Carlão – Foi muito cruel!...

Inácio – Ela foi extremamente cruel com o cinema como instituição. A Folha, especificamente. A Veja, mais recentemente.

Cléber – A Folha mais nos anos 80 e a Veja mais recentemente por esta questão editorial de ser contra as leis de incentivo.

Inácio – No caso da Folha também era uma postura editorial contra a Embrafilme.

Daniel – Isso numa fase em que se defendia as privatizações, o choque de capitalismo, as questões do neoliberalismo...

Inácio – Sim, mas você tinha que ter criado concorrência em condições idênticas, coisas do tipo... Como instituição se bateu mesmo, e se bateu às vezes de maneira equivocada, mas o problema é que o cinema brasileiro também abria as brechas para estes ataques... Tem coisas que não podiam acontecer e que acontecem... De tal modo que a imagem do cineasta era muito ruim. É uma imagem que só vai ser recuperada agora, com a figura do Walter Salles. Aí as pessoas viram que um cara como ele, filho de um famoso banqueiro e embaixador, também fazia cinema. Voltou a ser uma atividade de gente de bem... Mas, voltando aonde nós estávamos antes, eu acho que está meio perdida esta relação da crítica com a realização. Talvez eu esteja ficando velho, mas o que eu sinto é que as pessoas são muito seguidoras do que elas lêem no jornal ou vêem na televisão. Eu sinto isto de uma maneira meio desesperante, porque antes você tinha núcleos que se destacavam. Agora, hoje você tem esta coisa interessante que são as listas na internet. Ao mesmo tempo, isso isola.

Daniel – Cria guetos...

Inácio – Não tem congresso, festival, vira uma coisa de gueto. As pessoas ficam indefesas, tem muita informação, mas não tem como filtrá-las, filtrar o que é ou não é publicidade, as pessoas ficam indefesas diante disso. Quando alguém diz que aquilo é bom, aquilo passa a ser bom.

Carlão – Você está confundindo a coisa que eu estava falando dos críticos italianos.

Daniel – Que era basicamente defender com entusiasmo os filmes que achassem bons mesmo.

Carlão – E há uma diferença de contextos. Porque o ponto do artigo que eu li era justamente que o cinema italiano está melhorando e sobre o papel que a crítica cumpre nisso. Não é enaltecer qualquer merda, é destacar os méritos que o filme tem. Pelo contrário, eu acho que tem que ter um discernimento muito claro. Acho que toda crítica tem um perfil, existe a crítica entusiasmada e existe até a crítica política. Tem crítico que só faz isso, não faz outra coisa além de fazer política na parte de crítica. Faz jogo de poder... Agora, a única forma de gerar estímulo é o entusiasmo. Uma vez, eu e o Inácio estávamos conversando sobre aquele cara que foi pego plagiando texto estrangeiro...

Daniel – Pepe Escobar.

Carlão – Você falou um negócio do caralho certa vez, que é que, quando o Pepe Escobar escrevia sobre o festival do Cakoff, ele tinha tamanho entusiasmo que tudo que ele recomendava você tinha que ver no cinema, porra!... Até descobrirmos que o cara estava traduzindo tudo!...

Daniel – Pelo menos ele traduzia bem os textos!... (risos)

Carlão – Você ia ver e até podia discordar, falar que o Pepe exagerou um pouco, mas ia ver... Tá que é mais fácil de acertar seguindo certas referências num festival como esse, mas ele se arriscava apostando nos filmes...

Inácio – O Pepe tinha este lado sim.

Carlão – Era sempre interessante, porque ele empurrava o espectador ao cinema. Até que ele foi descoberto...

Inácio – Mas acho que não era tudo. Ele traduzia só de vez em quando, foram poucas vezes.

Carlão – Mas ele conseguia lotar as salas na mostra. Ele dava uma página inteira para o filme, dizia que era do caralho. Do outro lado, a crítica que poupa os filmes é tão nítida, tão clara, tão mentirosa!... Ela é como um filme mentiroso mesmo. Pode enganar o leitor apressado, mas o cara que conhece cinema eu acho que dificilmente é enganado. Esta que é uma crítica irresponsável, tanto para elogiar quanto para falar mal.

Daniel – Quem dera desse para perceber sempre, Carlão. Tem gente que escreve bem, disfarça bem, nem sempre dá pra ter certeza se é a opinião ou se tem má-fé...

Carlão – Sim, claro que tem aquele cara que tem um puta talento para te narrar o filme, aí você vai no cinema e não é nada daquilo... (risos) Lembro de uma vez um amigo me contando Jesus Cristo Superstar, ele me narrou o filme com gestos, fez toda uma construção que eu fui ver no dia seguinte!... E saí do cinema querendo matar ele, porque o filme não tinha nada a ver com aquilo! Falei: "Porra, você contando é melhor que o filme!" (risos)... Ele tinha pegado o melhor da idéia e tratado como se fosse o filme todo... Mas o que para mim é importante é que a critica precisa estimular. Uma das coisas que eu me orgulho foi no período que eu dei aula na ECA ter estimulado os alunos a conhecer cineasta como Shohei Imamura, que eu exibia até sem legenda.

Daniel – Eu fui testemunha disso.

Carlão – Eizo Sugawa eu exibia sem legenda também. E os alunos iam...

Cléber – Inácio, nesse panorama que a gente vive hoje, onde os filmes são tratados basicamente como produtos, qual acaba sendo a função da crítica num veiculo de grande circulação como a Folha? Especialmente quando a gente sente que as pessoas estão, cada vez mais, muito mais interessadas em saber a cotação para saber o que assistir do que propriamente em debater com o crítico...

Inácio – Assim você já me desanimou. Para falar a verdade, Cléber, quando eu comecei a dar o meu curso de história do cinema foi um pouco por esta angústia que o jornal cria, ou a revista cria, de não saber bem com quem você está falando. E leitor que escreve carta para jornal, em geral, são todos uns loucos. Daí que você fica sem ter uma resposta...

Cléber – O pior é quando você escreve uma crítica negativa e o cara te manda os parabéns pelos elogio que você fez ao filme! (risos)

Inácio – Cléber, eu realmente não sei, porque para mim a crítica sempre teve uma função extremamente pessoal, uma vontade de tentar entender as coisas... Foi para isso que eu comecei a escrever. O Jairo tinha a coluna no São Paulo Shimbum, aí às vezes eu escrevia algo lá, o Carlão também. Depois a gente fez a revista Cinegrafia, lembra, Carlão?... Era um desejo de tentar compreender as coisas... Hoje eu acho muito engraçado, porque muitas pessoas vêm até a mim e perguntam "e aí, como é que eu faço para ser crítico de cinema?". Eu digo que, poxa, eu não sei, porque comigo simplesmente alguém parou e falou "escuta, quer escrever na Folha?"... Porque eu nunca procurei me formar para ser crítico. Nunca tinha me passado pela cabeça a idéia de escrever num jornal. Quando nós fazíamos o jornal nos anos 80, quando o jornal era mais elitista, você tinha um trabalho de análise maior mesmo, hoje você por vezes parece que está fazendo um trabalho de hai-kai. Ao mesmo tempo eu procuro ser otimista, eu penso assim, que eu tenho que fazer o meu trabalho o melhor que eu posso. E torço para que a pessoa que vai ao cinema se interesse, porque se ele esta só em busca da autoridade, de saber se o filme recebeu duas ou três estrelas, eu tenho pouca coisa a fazer. Mas eu acho que às vezes, até mais do que a gente pensa, tem uma importância... Eu lembro do Alcino Leite Neto, que contou de uma vez em que ele estava em Minas, aí chegaram pra ele e disseram "vocês aí em São Paulo não sabem da importância que vocês têm, porque aqui em Belo Horizonte a gente lê, depois discute, briga com vocês, concorda ou discorda"... Ou seja, às vezes tem um monte de pessoas a que você não tem acesso para quem este trabalho tem uma importância. Especialmente se você tem uma postura de um certo rigor, evita falar bem de qualquer coisa, mas também não fala mal de qualquer coisa... Evita aquela postura ranzinza de simplesmente ver defeito em tudo, até porque se você quiser você encontra defeito em qualquer coisa, vê Cidadão Kane e diz que o Joseph Cotten não está bem...

Daniel – O Bergman disse recentemente que acha o Orson Welles um canastrão!...

Inácio – Pode até achar... Eu acho engraçado... Tem aquele leitor que só quer saber como está o ator. Que é o critério mais duvidoso que tem, eu acho que a interpretação do cara é ótima e o outro a dez metros de mim achou uma merda.

Daniel – Sem contar que se o montador trabalhar mal o ator pode ficar péssimo – ou pode ser salvo na montagem, num caso contrário...

Inácio – Eu estou tentando nem entrar nestas coisas. O que eu acho é o seguinte, o trabalho crítico, seja na Folha, seja na Época, seja na Contracampo, seja pessoalmente como o Carlão faz em lista de discussão ou conversa com amigos, é minoritário. O que você vai ter é marketing, divulgação, o interesse pelo cinema mesmo vai ser sempre minoritário. Eu sinto que nós estamos na resistência.

Cléber – Eu pergunto isso porque eu sinto que o marketing acaba sendo decisivo inclusive no espaço que a crítica acaba tendo, isso pelo menos nos veículos comerciais o que não é o caso da Contracampo ainda. Não adianta o Amarelo Manga ser dez vezes mais importante que o filme do Guel Arraes, porque o filme do Guel Arraes vai ganhar mais espaço em todos os veículos do que o Amarelo Manga, nem que seja para o cara detonar. Retornando ao exemplo da Globo Filmes, todos os filmes dela, além de todo o espaço na sua própria mídia, que me parece legítimo, acabam ganhando nos jornais impressos, que seriam um meio de maior reflexão, um espaço também bem maior que o dos outros filmes.

Carlão – Deixa eu me meter um pouco. Esse leitor que não dá tanta importância para critica e lê de forma mais efêmera o jornal, quando ele só se deparar com informação sobre um filme tal em todo lugar, é óbvio que ele vai acabar dando preferência para ver aquele filme. Agora, tem este outro lado da crítica, que é lida por uma minoria muito pequena, mas que, queira ou não queira, tem uma importância para a formação desta minoria. Eu assisti uma cena até emocionante, de certa forma, no lançamento da revista Cine Monstro. O Carlos Primati (editor da revista) chegou para mim e me pediu: "Me apresenta o Bruno de André, porque foi o cara que mais me influenciou na forma de escrever". E eu fiz questão de chamar o Bruno de André. O Primati lia as criticas dele na Visão... Porra, quem lia a Visão?! Uma meia dúzia de pessoas liam!... Mas, mesmo assim, algumas pessoas foram influenciadas pelo olhar cinematográfico, pelo jeito de gostar de cinema, pela forma de escrever. Ele começou a se interessar por escrever crítica pela forma que o Bruno de André escrevia sobre faroeste. Eu achei isso do caralho! Esta importância que, queira ou não queira, o crítico possa ter. O resto para mim é irrelevante, merchandising mesmo. Não que eu não ache que tenha lá a sua importância, mesmo que não seja crítica de fato, aquele entusiasmo que o Rubens Ewald tem falando dos filmes da indústria de cinema, que é algo que também tem o seu público, que desperta o interesse das pessoas... Às vezes eu fico impressionado com a forma como pessoas que nem têm tanto interesse no cinema me perguntam do Ewald...

Daniel – Mas aí entra muito o lado dele servir como um abalizador de opinião, de não fugir do senso comum, do que a maioria vai achar.

Inácio – Pois é, pegando só um gancho nisso que o Daniel falou, essa questão da empatia existe mesmo. E este eu acho o pior leitor, aquele que quer uma confirmação daquilo que ele gosta...

Daniel – O que não quer discordar do crítico. Se ele discorda, ele já não gosta.

Inácio – Eu, desde que eu me entendo como leitor, o que eu mais gostava era de discordar, "o quê que este cara viu nesse livro ou filme?", isto pode te levar a descobrir novas coisas ou não, mas gera uma curiosidade. Mas acho que existe uma tendência geral da imprensa de ser uma coisa muito mastigada. Se você usa uma expressão mais técnica, o editor pede que você coloque junto um glossário, uma explicação do termo. Mas daí vem muito uma mudança no mundo mesmo. Na geração de vocês que não é como a nossa, que a única coisa que tinha como diversão era ler, então a gente lia, se tinha algo complicado você ia mesmo até o dicionário procurar saber o que era... Hoje em dia, se o leitor vê uma palavra que ele não conhece, o cara fica ofendido, acha um absurdo, diz que não pode, que não é academia...

Carlão – Você falou um negócio que me lembrou do Rubens Biáfora... Que era um critico que a gente discordava direto, que às vezes ninguém conseguia entender como ele podia gostar de certas coisas, mas você lia, ia ver e tinha alguma coisa! A gente saía e falava "não é que é verdade?"...

Inácio – Algo tinha, não era tudo que ele via, tinha um pouco de loucura, mas algo tinha.

Carlão – Mas falta hoje esta loucura. Não por acaso Bergman foi descoberto por ele aqui no Brasil.

Daniel – Antes do Khouri?

Carlão – Foi ele e o Khouri.

Inácio – O Biáfora tinha uma coisa interessante, que na década de 70 ele implicava que ator não podia ser cabeludo, que não podia pôr calça boca de sino, e é engraçado, porque você revê estes filmes hoje e entende o que ele queria dizer. Porque eu vejo no Canal Brasil, os filmes daquele época, e você não consegue ver aquilo, fala "de que planeta vieram estes caras?", você nota como aquilo tudo soa datado, aqueles cortes, aquelas roupas... O único problema é que para o Biáfora corte clássico era corte escovinha do exército! (risos)... Você tinha que dar um desconto aqui e ali, mas o que ele falava tinha uma pertinência.

Carlão – Ele tinha um olho que era impressionante...Foi o primeiro a sacar Antonioni...

Inácio – É verdade... Agora, o que eu queria era voltar ao que Cléber tinha falado. É uma coisa que eu formulei nos últimos dias, que existe uma tendência a se estigmatizar quem vem da televisão. Quando se quer falar mal de um filme se diz que ele é televisivo, mas eu acho que é o contrário, a televisão agregou a linguagem do cinema. Por isso que não faz sentido este curso de audiovisual, porque é o cinema ainda. A novela hoje, o que é? Um cinema de 40, 50 anos atrás, simplificado porque o cara tem que rodar quarenta, cinqüenta minutos por dia. Agora, é evidente que um filme como o Lisbela e o Prisioneiro, que eu ainda não vi, tem uma presença maior por uma série de motivos que são absolutamente extra-cinematograficos.

Daniel – Eu não acho que se possa reclamar de falta de exposição do Amarelo Manga na mídia.

Inácio – Também não acho. Mas é evidente que os maiores sucessos vão ser aqueles que passaram de algum modo pela televisão, já que é uma propaganda tão violenta que se o filme é bom ou mal não importa, algum público vai ter. A TV vai fazer aquela função de familiaridade...

Carlão – Porra, se os caras quiserem me ajudar na divulgação, eu aceito na hora! (risos).

Inácio – Claro. Agora, se o cinema brasileiro hoje quiser sobreviver nas condições que existem, quer dizer, um cinema de multiplex para classe média, se quiser ter uma presença nas salas, neste tipo de sala, vai ter que trabalhar com este tipo de fenômeno midiático. Saindo daí vai ter o Coutinho, que só tem feito preciosidades, vai ter o Carlão, que vão estar na maior parte das vezes fora deste grande circuito de badalação, mas que vão ser as âncoras de um cinema mais ambicioso. Claro que nada impede o Guel Arraes de fazer ou ter feito um grande filme. O que é plenamente possível, o Guel Arraes se formou em cinema.

Daniel – Inclusive, quando ele foi para TV, diziam que ele fazia cinema na TV.

Inácio – Sim, mas eu nem fui um grande fã das coisas que ele fez naquela época...

Carlão – O único grande perigo que eu acho que precisa ser levado a sério é quando os procedimentos de linguagem começam a ser submetidos a uma linguagem televisiva.

Daniel – Esta gramática da televisão não é filhote da gramática do cinema?

Carlão – Olha que muitos dizem que é do rádio, cuidado... Há quem diga que é mais próximo do rádio que do cinema.

Daniel – Mas é do cinema também, claro.

Carlão – Sim, mas é diferente a forma como esta influência se dá, como ela age. O que se critica com uma certa propriedade é uma subserviência à linguagem da televisão.

Inácio – Isto só acontece com os caras de cinema. Inclusive, Carlão, esta história do rádio eu não compro não.

Carlão – Mas o próprio pessoa de televisão dizia isso.

Inácio – Era o rádio, mas quem era o rádio? Otávio Gabus Mendes! Que é um cara que tinha vindo do cinema... Estes caras todos, Gabus Mendes, Walter Durst, todos eram caras cuja paixão era cinema, mas passaram pelo rádio antes de chegar a TV. Eu não sei se é muito por aí... O que eu acho é o seguinte, a TV acaba sendo a desculpa da coisa para, retornando ao que já tinha dito antes, justificar que estamos, tanto quem veio da televisão ou do cinema, dirigindo no escuro. O perigo real disso aí é formar um monopólio.

Carlão – Isto é uma discussão que vai muito mais longe. Inclusive por uma coisa que é primordial para você, que foi montador, que é a edição. Existe hoje um conceito errado que supõe que montagem e edição são a mesma coisa. Este é o grande perigo e é a pior contribuição que a televisão está trazendo num certo sentido.

Inácio – Sim, se bobear a televisão traz o pior dela.

Carlão – Claro, claro.

Cléber – O meu problema com o Lisbela... não é nem o ser televisivo, eu acho o filme pior do que muitas das coisas que o Guel Arraes faz na TV.

Filipe – Mas é pior mesmo.

Cléber – Para mim é um sub-programa de televisão.

Carlão – Quem?

Cléber – O Lisbela e o Prisioneiro. Minha crítica ao filme não é que ele é televisivo, é que eu acho que o Guel Arraes faz melhor que isso na televisão.

Daniel – O que vocês estão dizendo tem menos a ver com parecer televisão, mas com parecer acomodado mesmo.

Carlão – Para mim isto é uma coisa séria, porque você percebe que estão substituindo a figura do montador pela do editor. O editor é um operador de equipamento, um cara que não tem cultura cinematográfica, inclusive não sabe definir o que é montagem, o conceito de montagem. O cara simplesmente corta, o cara acha que é brilhante ele ficar lá cortando de qualquer jeito. De repente, um menino de 24 anos de uma hora para outra é considerado o melhor montador do Brasil. Nada contra estas figuras em si em si, mas isto é uma loucura! A turma corta filme como se estivesse cortando bife! É verdade, não há conceito! O negócio é só dar agilidade, velocidade. Velocidade não é conceito de montagem, vá à merda, porra!...

Cléber – Me incomoda muito neste sentido a morte do plano. Os planos viraram flashes. Você nem vê imagem às vezes. Parece caleidoscópio mesmo, uma coisa não liga com a outra. Quer mais esconder a imagem do que revelar.

Daniel – Mas aí se pode cair no fetiche pelo plano-sequência. Há filmes com planos-sequência que não funcionam, que são um pé no saco, assim como a montagem rápida pode ser bem usada...

Filipe – O problema não é a montagem rápida em si, porque ela pode ser uma opção se bem pensada, o problema é que a maioria não pensa...

Carlão – Existe só a velocidade. Como se estivesse montando publicidade, esta é a grande verdade.

Inácio – Carlão, outro dia na Tv a cabo eu vi um filme que parece Corrida em Busca do Amor! Os Náufragos do D17, do Luc Moullet...

Carlão – Mas o Luc Moullet me lembra o meu cinema.

Inácio – Continua lembrando. E o personagem é um corredor de rali. Aí aparece um cara num observatório, uns soldados atrás do Saddam Hussein, o filme se passa em ‘91. Mas é muito bom!

Daniel – Portanto, é com a lembrança do Moullet que vamos encerrar.


Entrevista realizada por Cléber Eduardo, Daniel Caetano e Filipe Furtado
Transcrição: Filipe Furtado
Revisão: Daniel Caetano
(publicado em setembro de 2003)