15/09/2008

A Direção do Olhar (Importante é a maneira de enxergar)

Esta certa ‘moda’ de documentários, muito comentada no Brasil, acontece em diversas cinematografias do mundo no momento (por razões já bastante discutidas, como as facilidades da tecnologia digital ou a aparição onipresente de uma figura midiática como Michael Moore), mas documentários têm provocado por aqui discussões inesperadas até alguns anos atrás. Um mestre comoEduardo Coutinho ganhou prestígio e notoriedade impensáveis há uma década, e diversos filmes enquadrados neste dito gênero vêm tendo boa recepção pelo público - coisa que, nos critérios do mercado, também seria inimaginável há alguns anos. Mas voltamos à velha questão: o dito mercado é um bom parâmetro para estabelecer critérios?

Meu amigo Felipe Bragança já pôs em questão num artigo recente na Revista Contracampo justamente este problema: até que ponto o documentário pode ser compreendido como gênero? Os filmes de ficção podem seguir gêneros de regras absolutamente diversas – que serão sempre compreendidos a partir da observação de suas características próprias. O cinema documental, por sua vez, arrisca-se sempre a ser compreendido apenas a partir da velha questão em torno de “o que é a verdade” – ou de formatos impostos e imitados ao infinito. Como se documentário fosse mais um gênero com regras específicas – quando se trata sobretudo de uma disposição dos filmes, de uma intenção de quem faz o filme. Não há menos maneiras de se fazer um filme documentário quanto as há de fazer um de ficção.

Há uma questão que surge para além destas pequenas limitações do olhar – o problema que se evidencia é para quem se dirige o panorama que se apresenta como filme. Para quem é dirigido o olhar. É este ponto que qualquer teoria geral dos formatos do gênero documentário não terá como dar conta. O olhar que se amplia para além do mero registro depende justamente da direção do olhar – e da compreensão de seu pano de fundo. Para quem se permite ver um documentário?

Para exemplificar: muito se falou sobre o circo de horrores que alguns viram em filmes recentes de Coutinho – especificamente em Edifício Master. Mas como saber de forma definitiva o que pode ser enxergado como humano e o que é bizarro por quem olha? Quem olha pode compreender de formas diversas o que vê, a partir de suas experiências pessoais– sobretudo quando se trata de um cinema baseado em um olhar documental, montadas a partir de situações diversas. Desta forma, cada filme precisa por natureza ter um ponto de partida e estratégias específicas de construir um olhar para os objetos e circunstâncias filmados. A regra é lidar com a realidade, não é? Como pretender estabelecer as estratégias e posturas corretamente definidas de um gênero de filmes então?

Um documentário dedicado a mostrar a natureza ou os animais, como alguns filmes franceses de sucesso nos últimos anos (Le Peuple Migrateur, Microcosmos) terá posturas e estratégias diferentes dos filmes de Michael Moore – não apenas pelo tema escolhido ser mais amplo, mas sobretudo porque o discurso escolhido não pretende se dirigir a uma população restrita. O documentário de Coutinho talvez se utilize de estratégias que serão compreendidas por parte dos espectadores de forma diversa da que pretendia quem fez – mas para quem se destinava o discurso do filme? Os espectadores não são pobres coitados– cada um é responsável pelo seu olhar. Torna-se cada vez mais evidente que, para compreender o cinema documentário, é preciso que, ao construir nossa visão crítica, tenhamos em mente a nossa própria perspectiva – já disseram por aí que toda crítica é autobiográfica, não? Esta compreensão e análise do público a que se destina um filme não é necessariamente um ponto negativo – ao contrário, a própria obra poderá se enriquecer a partir destes pressupostos de maneiras diversamente sofisticadas.

Num filme recente, o bastante comentado e nem tanto visto O Prisioneiro da Grade de Ferro (Auto-Retratos), de Paulo Sacramento, utiliza-se do recurso de entregar a câmera aos retratados – no caso, detentos do presídio Carandiru. Os ditos auto-retratos do subtítulo criam a possibilidade dos habitantes de um mundo escondido do resto da cidade retratarem seu cotidiano para os que nunca irão estar lá dentro. Assim como acontece em outros filmes que usam este mesmo procedimento - como Conversas do Maranhão, feito por Andrea Tonacci na década de 70 -, O Prisioneiro da Grade de Ferro pretende usar de forma positiva a tendência dos retratados quererem mostrar seus problemas para os olhares de fora - o filme assume-se como um relato para quem não está dentro do Carandiru. Sabe assim que atinge seu púbico possível, totalmente diverso daquele que irá conferir a ficção novelesca de Babenco - cujas intenções eram, justamente, criar retratos humanos dos presidiários para o grande público, e por isso fez uso de diversos recursos melodramáticos. Sacramento tinha noção da limitação mercadológica de seu filme (mesmo os documentários de sucesso são vistos sobretudo pela elite intelectual, queé majoritariamente também elite social – esse pequeno mundo dos públicos de cinema de arte das metrópoles), e seu filme não ignora esta questão. Já Babenco usou de tradicionais recursos narrativos da ficção para mirar em outro público, mais numeroso. Isto é o óbvio - os filmes têm estruturas que indicam a quem se dirigem. Conversas do Maranhão, o filme de Tonacci citado ali em cima para fazer uma breve comparação com O Prisioneiro da Grade de Ferro, pode ser retomado como exemplo: produzido pelo realizador junto a uma aldeia de índios, o expediente de entregar a câmera aos índios foi justificado junto à tribo pela intenção de fazer um filme que “mostrasse os problemas da aldeia para os poderosos de Brasília”, como Tonacci contou recentemente.

Noutro exemplo oposto, Nelson Pereira do Santos - que nos últimos anos tinha feito um curta e uma série de televisão, ambos documentários - lançou este ano seu retrato de Sérgio Buarque de Hollanda, Raízes do Brasil, obra em dois atos que se utilizam de estratégias contrárias. Raízes do Brasil I apresenta-se como um filme de família, uma rememoração de um personagem pelos seus familiares - comentando a importância da obra apenas em função da composição afetiva da figura do pai estudioso. Desta forma, o ponto de partida do filme de família parece apontar de início para uma restrição absoluta do público a que se destina – terminando, no entanto, por obter um retrato afetivo que será fundamental para a compreensão do ato seguinte. Raízes do Brasil II adquire outro tom, de versão resumida e distante da história de vida intelectual do escritor e de sua geração, simultânea à leitura de trechos do livro homônimo ao filme. Sendo o olhar de Nelson Pereira sobre Sérgio Buarque e sua geração, o filme termina também por ser um olhar amplo de Nelson por todo o período da história do país - coisa que se pode notar por alguns detalhes, como pequenas ironias na escolha da trilha sonora ou dos trechos de Raízes do Brasil. Ligados, os filmes constróem um retrato do intelectual que não pretende explicá-lo – mas sugerir vias de compreensão e somar olhares de natureza diversa sobre uma pessoa. Nelson Pereira assume o caráter didático ao dizer que seu filme é “um estímulo à descoberta da obra de Sérgio Buarque” – o filme se destina a despertar a curiosidade em quem não conhece o retratado.

Por que insisto neste ponto? Porque a relação do público de cinema com os filmes nos dias de hoje me parece problemática para um possível cinema documental. Qual a relação de olhar para a realidade se pode buscar junto aos públicos de classe econômica média/alta que procuram entretenimento em finais de semana nos shopping centers? Esta relação pode ser construída de que formas e em que níveis? Como estes cinemas documentários podem e devem ser incômodos? E em que precisam ser conciliadores, simpáticos?

E como é preciso se construir a relação com esta platéia dos documentários do circuito de filmes de arte? O que pode trazer e provocar o filme documentário aos espectadores – para além de eventuais sentimentos de indignação distante e imóvel?

E, se escaparmos de discussões velhas sobre diferenças entre cinema e televisão e imaginarmos o cinema documentário invadindo a programação televisiva, as perguntas se repetirão em outro nível – como incomodar e ser visto? E até que ponto um filme documentário pode abrir mão de incomodar?

* * *

Esta questão me parece presente, sem dúvida, devido à grande discussão em torno do último filme de Michael Moore, Fahrenheit 9/11. Ainda que não duvide do valor que alguns podem ver na própria cinematografia do filme, continuo surpreso em notar como o filme pode realizar experiências tão opostas – não acerca de sua qualidade, mas do sentimento que desperta. Não me refiro diretamente, no caso, às opções políticas ou estéticas de nós que assistimos. Refiro-me à oposição entre o que pode provocar o filme naqueles a que ele se dirige – eleitores norte-americanos – e o que pode provocar naqueles a que ele não se dirige – todos os que não votam nos EUA. Se nos primeiros esta discussão, mais do que presente, pode ser mobilizadora – sem querer entrar no mérito propagandístico do filme– isto não ocorre com nosotros. E a euforia que o filme parece trazer a uns, somada à melancolia que traz a muitos outros, parece evidenciar seu aspecto catártico - mas qual é a questão moral que se encontra nesta catarse? Sim, é possível encontrar um grande vilão para o mundo. E o que fazemos a partir daí? Ao aplaudir um filme que não se pretende ser muito mais do que uma propaganda eleitoral – aqui no Brasil têm sido comuns os aplausos ao final das sessões – exorcizamos sonoramente nosso sentimento de impotência.

Texto publicado originalmente em agosto de 2004 na revista on-line argentina Otrocampo

11/08/2008

Lifting de coração (2006)

Logo de início, vemos a imagem de um rosto feminino computadorizado enquanto ouvimos uma narração em off a nos apontar os sinais de envelhecimento que vão surgindo pouco a pouco, numa reproodução do que ocorre na pele humana com o passar dos anos. Trata-se de uma palestra do seu protagonista Antonio, cirurgião plástico – e esses primeiros momentos de Lifting do Coração deixam claro que o tema do filme é a sensação de envelhecimento e as consequências disso para a vida de Antonio. A trama não esconde sua simplicidade: é a estória de um homem casado de meia-idade que se apaixona por Delia, uma jovem de vinte e poucos anos – a previsibilidade chega a ser anunciada pelos próprios personagens, cientes da confusão que criam para si. Encantadora, prometendo-lhe uma vida inteiramente diferente da que planejava até então, Delia confunde a cabeça de Antonio, sujeito feliz no casamento.

É da paixão entre os dois e da dúvida sincera de Antonio que o filme se constrói. Ele não sabe o que fazer: ter mais um filho com a sua jovem paixão ou voltar à segurança e ao amor da família? Buscar uma nova juventude ou aceitar e curtir a chegada da idade?

Do primeiro ao último plano do filme, a questão da passagem do tempo se coloca através dos sentimentos e ações dos seus personagens principais. Simples como seu enredo, a forma narrativa de Lifting do Coração nos dá a chance de rever o talento do seu realizador, Eliseo Subiela. Se nesse novo filme já não se fazem tão presentes os arroubos poéticos de suas obras anteriores (Homem Olhando Para o Sudeste, As Últimas Imagens do Naufrágio, O Lado Obscuro do Coração), aqui ainda está presente o cuidado em delinear os sentimentos e desejos de viver dos seus personagens, sempre intensos, além do humor para criar tipos coadjuvantes – aqui há um taxista com vocação para psicólogo e um psicanalista metido a Don Juan, ambos impagáveis. Vale lembrar de um momento de cada um deles: o psicanalista ao transformar em instantes seu escritório numa garçonière; o taxista, entre tantos diálogos memoráveis, protagoniza uma cena em que procura reanimar Delia com uma canção divertidíssima (a se guardar o nome: Pizza Conmigo).

Porém, mais do que a beleza da jovem Delia e mais do que esse humor delicioso, é a oposição que Antonio vive, entre a vontade de viver (própria dos personagens de Subiela) e a percepção da passagem do tempo que faz de Lifting do Coração o filme emocionante que é, entre seus tangos dançados desajeita e fogosamente e sua atenção a pequenos detalhes do cotidiano entre casais. Se o jovem cinema cheio de poesia e humor agora encontra a maturidade, vale notar que esta maturidade chega com o sabor dos bons vinhos, da boa vida que se pode viver. Os personagens de Subiela conseguem unir o desejo de ter a liberdade da poesia e o prazer de aproveitar a segurança da prosa cotidiana. Eles partilham conosco suas emoções e sonhos, suas fragilidades e escolhas. Desse modo, através da sua forma narrativa e da sua trama, Lifting do Coração, como seus personagens, mostra-se cheio de desejos, conjugando o sonho e a estabilidade, a paixão poética e o amor da maturidade.



Texto publicado em outubro de 2006

O cinema nosso de cada dia



Assim como Houve uma vez dois verões, duas outras produções anteriores fundamentais na história da Casa de Cinema eram comédias de costumes centradas nas histórias de amor de jovens gaúchos: o longa-metragem em super-8 Deu Pra Ti Anos Setenta, dirigido por Nelson Nadotti e Giba Assis Brasil, e o também longa, mas já em 35mm, Verdes Anos, dirigido por Carlos Gerbase. A influência desses dois filmes em Houve uma vez... foi sinalizada pelo próprio Jorge Furtado em diversas entrevistas (inclusive na presente nesta edição, no caso de Deu Pra Ti) – e já motivou uma série de artigos por aí afora. Todos estes são tomados pela agradável surpresa de que está se firmando no Sul do país – a partir da produção da Casa de Cinema – uma tradição de excelentes comédias de costumes centradas em personagens recém-saídos da adolescência.

Curiosamente, grande parte das opiniões veiculadas parece pressupor que comédias de costumes encantam o público por serem comunicativas, simpáticas e descompromissadas. Bem, comunicativas com certeza podem ser, se o pretenderem e forem bem-sucedidas – mas daí a descompromissadas vai longa estrada, dependendo do conceito que se depreende do termo. Nossos problemas diários podem definir quem somos, podem definir nossos rumos, e não é difícil notar que os retratos cotidianos destas comédias por vezes sintetizam idéias e objetivos comuns de diversas pessoas da mesma geração. Uma comédia de costumes tem um compromisso, do qual não pode escapar, com um certo olhar do dia-a-dia – poucos gêneros têm tamanho comprometimento com a vida cotidiana. Por trás do lugar-comum imediatista do "amor que tudo vence", temos escolhas éticas vitais na opção pelo amor teimoso e monogâmico de Houve Uma Vez Dois Verões – fazendo uma analogia com a tradição carioca de crônicas de costumes, tivemos escolhas assim na identificação plena de Todas as Mulheres do Mundo, na ironia de El Justicero, na opção de viver a vida dos filmes do Carvana dos anos ‘70 ou mesmo nas decisões inseguras de Amores Possíveis. Esse retrato é parte da regra do jogo do gênero. Desinteresse pela realidade, idealização de ambientes e nostalgia de uma época que nunca existiu são armadilhas mortais para o gênero – Bossa Nova que o diga. O amor teimoso de Chico por Roza em Houve Uma Vez Dois Verões ou as idas e vindas de Nando e Soninha em Verdes Anos remetem a uma realidade e apresentam personagens que interessam de fato aos seus realizadores, tendo decerto uma forte influência do cinema de gênero (tendo o exemplo evidente de American Graffiti) mas tendo também uma ligação afetiva direta pelo mundo que querem retratar, mesmo que já não façam mais parte dele.

Sendo assim, vale ressaltar a pepita originária desta nova tradição gaúcha, a que os outros filmes parecem sempre se remeter – porque compreendendo o que ela tem de especial podemos talvez perceber até que ponto o retrato do cotidiano no cinema, mesmo que imperfeito, pode ser deflagrador. O que há de especial em Deu Pra Ti Anos 70? Talvez seja esse momento inexplicável em que caímos no truque do mágico, em que a suspensão da descrença se dá de forma mais aguda, esse ponto em que acreditamos na verdade da mentira e nos parece que a ficção encontrou a realidade – ou melhor, faz parte dela integralmente. Como umas poucas crônicas de costumes, algumas já citadas, Deu Pra Ti não parece ser apenas um retrato de vidas – mais do que a história do amor de Ceres e Marcelo ao longo de dez anos, Deu Pra Ti pretender olhar para toda a década que os personagens viveram. Dessa forma, o filme nos transmite a sensação de ser parte integrante do momento que retrata e consegue manter deste momento uma atmosfera e um calor únicos. Se há algo que o filme nos deixa, é essa convicção de que o cinema precisa se arriscar a ver e fazer parte da vida cotidiana, essa convicção de que os frutos valerão a pena, de que a colheita sempre vem.

Depois de semear, a colheita acaba vindo. Veio no próprio Deu Pra Ti e veio de novo nos olhares – já nostálgicos, mas ainda curiosos – dos filmes que se seguiram. Na visão dos muitos personagens de uma geração que amadurecia em Verdes Anos, feito pouco tempo depois (três anos), na revisão do cotidiano adolescente gaúcho dos personagens Chico, Roza, Juca, Carmem e Violeta de Houve Uma vez.

É melhor então manter um olhar desconfiado para os elogios caretas a Houve Uma Vez Dois Verões. Decerto é muito bacana que tenhamos um filme tão agradável, com uma estrutura tão eficiente e uma delicadeza tão grande com seus personagens – mas o mais importante nisso não é o fato de que o filme se comunica bem com sua platéia, é o fato de que ele tem o que comunicar, ao contrário do que pensam alguns. Se a narrativa usa esquemas de estrutura de roteiro com naturalidade e inteligência, sem parecer engessada ou programada, não é isso que torna o filme rico, é seu interesse pelos dramas dos seus personagens – e a origem disto não está nos manuais de roteiro.



Texto publicado em fevereiro de 2003

03/08/2008

Brewster McCloud - Voar é com os pássaros (1970)


Voar é com os pássaros
é um filme curiosamente paradoxal: se é um dos exemplares mais evidentes do quanto o cinema de Robert Altman se deixou contagiar pelo clima de inovação narrativa próprio dos anos 70, com uma movimentação visual tomada pela vontade de voar que sua trama tematiza, este longa-metragem é também um diagnóstico severo sobre os limites dessa liberdade. Severo e bastante claro, a ponto de o filme intitulado originalmente com o nome de seu protagonista, Brewster McCloud, ter ganhado essa versão que explicita o tom de desilusão de seu enredo: Voar é com os pássaros. Aqui a ambição é livre, mas a quem está fora da sociedade e não dialoga com seus pares não resta caminho senão falhar. Ciente de ser uma versão hollywoodiana da lenda de Ícaro, Voar é com os pássaros é uma fábula que termina com autoconsciente amargura: no final das contas, nada resta senão seguir adiante com o espetáculo. Mas, ao mesmo tempo, esta fábula não constrói sua perspectiva a partir do ponto de vista conservador: ao contrário, Brewster McCloud, o filme, filia-se a seu protagonista, que por sua vez filia seu destino ao dos pássaros - a sempre pretender fazer mais do que pode. O filme sustenta esse sentimento presente na trama.

No primeiro momento do filme, o caminho de Brewster começa a se definir a partir da crise da situação estável inicial, quando Brewster mata seu patrão ricaço e sovina com a ajuda dos pássaros. Como numa variação do clássico Os Pássaros de Hitchcock, Brewster alia-se aos pássaros na sua revolta contra a civilização - e o faz a partir do momento em que se transforma em assassino; ou seja, para Brewster McCloud a possibilidade de voar é uma redenção para a morte. Ele mata sucessivamente para viver e quer voar para se sentir livre de uma sociedade que se apresenta como agressiva, autoritária e caótica, e é então que o envolvimento do desejo põe em jogo a sua vida. Este desejo de Brewster pela jovem Suzanne é definitivamente negativo para seus planos porque ele torna clara a sua distância dos pássaros: Brewster não é um deles, ele é apenas um rapaz esforçado. Assim, aquele rapaz que se sentiu do lado de fora de uma sociedade autoritária tem seu instante de vôo restrito ao espaço do circo; o sonho já nasce condenado a não poder escapar dos limites da tenda. Fábula pessimista, o filme se fecha como espetáculo circense, indicando que o sonho de alçar vôo pode ser destruído pela morte, mas o show não pára.

Se as tecnologias modernas como o cinema e a aviação trouxeram ao homem a possibilidade de voar, somente a sua própria ambição poderá fazê-lo ultrapassar os limites que sua condição inicial impõe. Brewster McCloud, o filme, realiza uma metáfora desse engajamento pela superação como que para evidenciar que somente dando asas e espaços a uma nova força poética que a criação poderá livrar-se do seu aspecto de circo fugaz. É preciso, para o filme, acreditar vitalmente na capacidade de ser como os próprios pássaros, de ter músculos para voar. Que o poema se finda em morte já é certo, mas isso não nega a aventura de romper os limites por alguns instantes. É uma ambição notável que o filme não abre mão de cumprir com inventividade até seu fim.

Texto publicado originalmente no catálogo da mostra As Muitas Vidas de Robert Altman, que se realizou em maio e junho de 2008 nos CCBBs de Rio de Janeiro, SP e Brasília

Ônibus 174 (2002)



Deveríamos ir àquela velha questão? O que diria um extra-terrestre se desembarcasse no planeta? O que diria ele do filme?

Bem, talvez a questão esteja velha demais. O mais triste que se pode notar sobre o filme Ônibus 174 em si é que todo comentário parecerá banal, repetitivo. O óbvio se impõe: a situação Ônibus 174, a equação que origina tudo, essa está aí, na nossa cara, todos os dias para a gente ver. Não importa muito o que o extra-terrestre acharia do filme, nem da realidade que o originou. Nem tampouco o mais importante será a visão de realidade que tem o filme. Essa realidade é que importa – por trás de todo o discurso, por trás de todo o espetáculo, por trás de todo o processo de investigação, é ela quem salta à frente em importância para nós não-extra-terrestres. Em outros filmes a construção do discurso documental se faz totalmente presente e crucial na narrativa – mas em Ônibus 174 a preocupação é com a investigação simples. A construção dramática cabe ao instante escolhido para documentar, o espetáculo trágico do seqüestro do ônibus. Isso é mais que cinema.

Ônibus 174, o filme, sendo bem feito, pensado e estruturado, tem portanto seu maior mérito em exibir para nós (‘de forma implacável!’, diria um mais empolgado) uma situação extrema causada por uma imensa teia de problemas e fragilidades sociais. Da observação e da investigação dos precedentes do evento central – o célebre caso do aprisionamento, ao longo de horas a fio, de uma série de reféns dentro de um ônibus por um bandido, numa rua central do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro – surge a pessoa Sandro do Nascimento, personagem central da tragédia, e descortina-se toda incompetência do tecido social em lidar com a marginalização de milhares de pessoas desde a infância. Esse é o tema para nós, brasileiros, para nós, cariocas, para nós que estamos vivos. Importa alguma coisa o que o extra-terrestre vai pensar? Ou o que vão pensar de nós mais tarde? Ou a primeira questão não será sobre a vida que queremos ter?

Num momento de reviravolta política como o do final do ano de 2002, Ônibus 174 estampa na nossa cara uma visão triste (e mínima) da imensidão do buraco em que estamos nos metendo – falamos de crime organizado para dar rostos ao nosso medo, mas também temos que viver com o crime desorganizado e sem nada a perder, nós todos estamos vendo ele se criar. Em gente sem emprego, sem escolaridade, sem nenhuma estrutura – ao deus-dará. E nos perguntamos por que será que se tornam ocasionalmente violentos.

Tudo isso nos é dito e repisado pelos depoentes do filme. Torna-se tema central também a desestruturação (e ingerência política) da polícia carioca – como se o mundo ficasse mais simples se o bandido tivesse levado uma bala na cabeça logo no início do dia. Não, a situação se acabaria ali, mas o mundo continuaria aqui para nós vermos e vivermos. E, de forma caprichosamente dramática, a tragédia foi alongada por ingerência política, como se fosse a intenção tornar evidente nossa incapacidade em lidar com Sandro. Foi preciso que ele, assumindo a figura trágica que se tornou, fosse atrás do próprio destino, que se entregasse à derrota diante dos representantes de uma sociedade que nunca soube lidar consigo senão com a violência. Como se diz no filme, a polícia que não conseguiu matar Sandro no massacre da Candelária terminou seu serviço anos depois. Somos nós que sustentamos e precisamos da polícia. Sandro estava do outro lado, e todo mundo tinha medo dele. Teve do destino o golpe de perder o apoio familiar (e educacional-financeiro), na infância e de forma traumática, e daí em diante passou a lidar com a falta de dinheiro e uma lembrança perturbadora – e a sociedade só se manifestou através dos seus representantes policiais e punitivos. Ônibus 174 é, sobretudo, o retrato da tragédia desse anti-herói brasileiro. E seu plano inicial logo explicita sua tese: essa é a vida de todos nós, esses problemas são de todos nós.

Não adianta chorarmos por Geísa, a vítima maior, que perdeu a vida sem razão nem culpa. Ela, quem matou foi o revólver de um homem descontrolado. Mesmo que ela mereça todas as nossas lágrimas, nada vai mudar ao entendermos o sofrimento dela. Já este homem descontrolado, é este que não teve ninguém em seu enterro que deve nos fazer olhar de outra forma nosso cotidiano. Foi ele quem matamos depois de longa perseguição – as pessoas que o fizeram por nós podem alegar para si a instabilidade emocional do momento, mas e nós, que por eles somos representados, o que podemos alegar? O que nossos representantes deram a Sandro em vida além de muita porrada? Uma civilização pode preferir achar que não teve responsabilidade alguma em fazer de Sandro um homem perigoso, uma figura violenta, que todos os atos dele foram decorrência do erro inicial de abandonar a família, pode enfim achar muito natural que um homem só tenha tido da sociedade a violência da polícia e do confinamento (sem ter ganho nada com este) – ou uma sociedade pode optar por revisar algumas opções quando se vê diante de casos assim.

De Rio Quarenta Graus a Central do Brasil, passando por Couro de Gato, Pixote e outros mais, o cinema brasileiro mostrou diversas vezes a infância abandonada. Ônibus 174 nos mostra uma tragédia conseqüente disso, apenas uma, apenas uma história para representar todo o nosso fracasso diante desse problema social.

Numa época de tanto otimismo com relação a mudanças, é um filme que deveria ser visto não apenas pelo presidente eleito Lula, mas por todos nós não-extra-terrestres. Precisa ser exibido em rede nacional, em canal aberto, precisa ser visto e discutido. Para que a discussão do tema amadureça, para que não tenhamos mais imbecis a defender que nossa questão social se resolve com violência policial, como dizia um presidente do início do século e como parece acreditar ainda uma boa parte da nossa população. Ao revelar todos os antecedentes da situação de violência criada por Sandro do Nascimento, Ônibus 174 mostra que precisamos de muito mais que isso.



Texto publicado em novembro de 2002

25/07/2008

O Sopro no Coração (1971)


Não é mais antigo que o cinema o conceito de adolescer, de transitar da infância à idade adulta. Na verdade, se há alguns séculos não se tinha a noção de adolescência, hoje parece às vezes que todos o somos, uma vez que um dia o fomos – principalmente para um certo tipo de cinema, sobretudo o dos efeitos especiais. O Sopro no Coração é um filme sobre um garoto de catorze anos (quase quinze) – mas, ao invés de se identificar com seus conflitos, encanta-se com eles, em busca do tempo que ficou para trás (é um filme sobre um adolescente, e não para um adolescente). Não é que Laurent não sofra com seus problemas – a questão é que seus sentimentos, bons ou ruins, não têm a mesma força que a experiência em si. Por mais desagradável que seja no momento ter a primeira transa interrompida, a lembrança que resta é de uma situação divertida. Só resta rir.

É essa libertação de um certo recalque que o filme parece pleitear. A mãe de Laurent afasta-se da família por conta de um amante, o pai de Laurent é ausente, seus irmãos implicam com ele, a empregada não pára de reclamar, seus amigos são chatos... e daí? Vive-se mesmo assim, não é mesmo?. E pode ser divertido – não é ruim, no final das contas. O menino mimado, o pequeno gênio que ganha tudo e ainda rouba discos, que tem o problema de saúde a que se refere o título, o sopro no coração (que parece sugerir também um sentido de impulsividade), e por isso ganha a atenção de todos, aproveita a vida como pode e como lhe convém. Nisso, a mesmo tempo se une e se liberta de seus primos-irmãos do cinema francês, os garotos anárquicos do Zero de Comportamento de Vigo e do Antoine Doinel do Incompreendidos de Truffaut. Laurent, apesar da má saúde e dos mimos, tem a vitalidade e o sentimento de liberdade de seus aparentados cinematográficos – mas, por esta má saúde e mimos, não tem do que se queixar acerca de dinheiro e cuidados, ao contrário dos anteriores. Não precisa se preocupar em ter liberdade – ele tem de tudo, sorte dele, que pode ficar ouvindo jazz em paz.

Nisso o filme situa sua transgressão central, a quebra de tabu que o tornou famoso. Para a dramaturgia clássica, pior que o rompimento do tabu do incesto, só mesmo se este rompimento se der sem sofrimento, sem conseqüentes perda e purgação – isso sim é tabu de verdade. É isso que faz O Sopro No Coração. Não se trata de uma história em que o incesto provoca ou é provocado por um violento transtorno psíquico. A vida continua, e só resta rir. Em praticamente todos os outros exemplos que encontrarmos de tematização do incesto na ficção, teremos tramas em que o rompimento do tabu traz imenso sofrimento, traz uma ruptura definitiva com o relacionamento antes estabelecido – para lembrar de um exemplo marcante, dois anos antes Visconti fizera o seu Os Deuses Malditos. O Sopro no Coração transgride essa norma, o incesto rompe para evoluir, para conciliar. O filme consegue este feito bizarro, e no entanto muito natural: diante do rompimento do tabu, a conciliação é a maior transgressão – não custa lembrar que transgressão e rompimento de tabus são dois dos pontos centrais em grande parte dos filmes do realizador, Louis Malle.

Vale notar o encanto cinematográfico de Lea Massari (atriz de filmes como A Aventura de Antonioni e A Primeira Noite de Tranquilidade de Zurlini) como a italiana Clara, mãe de Laurent, assim como a fabulosa interpretação de Benoît Ferreux no papel principal (sua estréia no cinema), com um comportamento sempre remetendo a algo instintivo, não-planejado – é realmente incrível a divertida maneira que Laurent ataca as meninas, dobrando o pescoço e avançando de um jeito grosseiro, entre o desajeitado e o animalesco. Vale notar, sobretudo, que o filme tem uma vitalidade impressionante, uma incrível capacidade de reviver as experiências de Laurent, seja ouvindo o bebop de Charlie Parker (e como é boa uma trilha sonora com Bird Parker!), transando com putas, suportando a paquera de um padre mal-resolvido, seduzindo gatinhas no hotel, lendo tanto livros clássicos como libertinos ou vendo sua linda mamãezinha saindo do banho.

Texto publicado no folheto da sessão cineclube do Cinema Odeon em 11 de junho de 2003

O Lado Escuro do Coração 2 (2001)

O tema é o amor. “A-M-O-R, amor”, como diz a letra de um samba. Como milhares de filmes, como zilhões de histórias. Só que esse aqui é escrachado – até tem enredo, mas a verdade é que não tem história, a história é o amor.

É uma continuação. Revisitamos o personagem Oliverio, poeta de meia-tigela, conquistador barato e romântico mal-resolvido – agora com menos cabelos a lhe proteger, mas ainda com o mesmo sonho sugerido na primeira seqüência do filme (assim como o era no primeiro): encontrar uma mulher que voe e cujo amor o faça voar. Para descobrir se elas têm esta capacidade ou não, o melhor é observar depois da transa – e fazer como a mãe dos pássaros, que lhes atira ao abismo para que voem. Se as mulheres não voam, paciência – se não o fazem, ele então teria que se livrar delas, de toda maneira.

O interesse criativo parece passar por toda espécie de despudor para recontar a mesma velha história de um desejo, que toda as canções têm para contar – a vital escolha por Eros em oposição a Thanatos, em oposição à morte. Entenda-se por despudor toda tática apelativa, exagerada, repetitiva, errada, redundante. Enfim, amorosa. A poesia de amor – nada mais clichê, nada mais banal. Para fugir do banal, tenta-se libertar a poesia – e não há nada mais banal que não querer ser banal falando de amor poeticamente.

Então não é preciso ter medo do que pode parecer banal, apelativo, exagerado e tudo mais: vamos ao exagero de boleros, aos encantos pictóricos, às frases feitas, ao flash-back dos momentos de amor. E com humor! Diz-se que não basta recitar poesia em um filme para fazer poesia em filme. Pois que se recite dezenas – com música ao fundo, tiradas engraçadinhas, imagens e representações óbvias e até clichês – o Tempo é um personagem que corre sem parar na sua motocicleta, carregando os protagonistas na carona, a Morte se divide em um homem e uma mulher vestidos de preto, Oliverio também vê sua consciência se dividir em dois pólos; isso sem contar a repetição da piada da cama que se abre para o abismo. Pudor pra quê?

A continuação relê o tema e reencontra o personagem –mas há algumas diferenças cruciais, inevitáveis diante dos anos que se passaram para criador e criatura do filme: Oliverio está mais só no mundo, ainda que tenha a mesma facilidade em criar amizades, está desgarrado em Barcelona, mas ao mesmo tempo está mais tranqüilo, tanto que alcança seu intento no final. Se a busca parecia por alguns segundos terminar no primeiro filme – apenas para que Oliverio descobrisse que ele também precisava fazer as mulheres voarem –, nesse a aproximação da morte o obriga a escolher a alternativa da vida. Ele também pode fazer a mulher voar, e a morte fica distante quando se tem um futuro amor para cuidar. Clichê, banal, apelativo – e tremendamente esperançoso e carinhoso. É a bela conta da maturidade que chega.

Como se disse, é uma continuação. Isso torna bastante improvável que venha a ser lançado em cinema ou em vídeo em Terra Brasilis, já que o primeiro filme não o foi (também só passou em festivais). É pena – por aqui os filmes latinos ainda têm apenas o espaço de uma mostra no CCBB, o Cine Sul, e esta mostra que acontece na maratona do Festival do Rio. Mas Subiela já fez coisa suficiente pra receber maior atenção de uma mostra ou festival por estas bandas – o seu Homem Olhando Para o Sudoeste estreou apenas em São Paulo (fez razoável sucesso), O Lado Obscuro do Coração, As Últimas Imagens do Naufrágio e Despabilate Amor passaram em festivais, seus filmes recentes nem isso conseguiram (tiveram mau desempenho na bilheteria, péssimo critério de importação). Subiela ganhou da crítica o ingrato rótulo de “cineasta poético”, seja lá que raio isto queira dizer – se os rótulos empobrecem, paciência: como se pode ver com esse número 2 do seu Lado Escuro do Coração, ele sabe muito bem jogar e brincar com isso.


Texto publicado em outubro de 2002

Fragmentos de vida

Sabemos que o cinema se constrói a partir de fragmentos. Cada filme é feito pela montagem em seqüência dos planos rodados. E um país se constrói também por fragmentos – por pessoas, lugares, eventos –, mas a realidade não tem quem a ordene e ponha em seqüência lógica. Qualquer retrato que venha a ser feito ambicionando ser total e integral lhe será infiel – uma vez que, antes que esteja acabado, esta realidade já terá se modificado. Nenhum filme pode dar conta sequer de uma pessoa, quanto mais de um país inteiro. Portanto, não poderá ser senão por fragmentos que um cinema brasileiro irá ter algo a dizer sobre este país.

Muito já se falou em torno da histórica disposição dos cinemanovistas de “descobrir o Brasil” através do cinema. No entanto, a própria hegemonia deste discurso acabou por engessar a construção do olhar do cinema brasileiro – e as já envelhecidas teses nacionais-populares não raro se tornam argumento em prol do cinema mais conservador e desprovido de ousadia feito em Terra Brasilis. Não foram poucas as vezes em que as visões cinematográficas mais tipificantes e vampirizadoras se ampararam no discurso de “mostrar o Brasil de verdade”.

Os olhares históricos, nos últimos anos, em geral têm preferido as versões amenas e glorificadoras (ou, inversamente, negativas) das personagens mostradas à humanização das mesmas ou à atualização dos conflitos que protagonizaram – são armadilhas em que muitos tropeçam por conta do intento de se tornarem agradáveis ao público que hoje freqüenta cinemas em salas de shopping centers (intento, note-se, em raras ocasiões alcançado). É o que ocorre em grande parte dos retratos referentes à fase dos militares (O Que É Isso, Companheiro?, de Bruno Barreto, Lamarca, de Sérgio Resende, entre outros) ou a outros momentos históricos (Olga,de Jaime Monjardim, Diários de Motocicleta, de Walter Salles, Guerra de Canudos, de Sérgio Resende, entre outros). Da mesma maneira, as visões sobre favelas, subúrbios ou comunidades rurais esbarram em olhares mitificadores, pouco interessados em dramas que não corroborem suas teses. É o caso de Orfeu, de Carlos Diegues, de Quase Nada, de Sérgio Resende, e, de forma realmente patológica, de Deus É Brasileiro, também de Diegues (em que um Deus desanimado passeia por um país desajustado às suas vontades) - bem como dos sucessos de bilheteria Central do Brasil, de Walter Salles, e Cidade de Deus, de Fernando Meirelles. E se as alegorias, sempre um tanto totalizantes, hoje estão fora de moda, ainda percebem-se eventualmente algumas tentativas de propor teorias nacionais a partir destas encenações de momentos históricos ou de conflitos contemporâneos. Como, pela natureza da estrutura de produção de cinema que se estabeleceu nos últimos anos no Brasil, cada realização passou a depender, sobretudo, do talento e da vontade de cada realizador, em diversos casos tivemos exemplares bem-sucedidos – na maioria dos casos, foram filmes em que as teorias nacionais são antes atacadas de forma original do que impostas através de uma estética arcaica. É o que ocorre na relação entre estrangeiro e nacional em Amélia, de Ana Carolina (quando nenhum dos lados tem o privilégio da razão), na oposição entre liberdade e regras sociais em Abril Despedaçado, de Walter Salles (quando o conflito de mortes só pode ser encerrado com a fuga, sem conciliação possível) ou na nova configuração do conflito entre classes sociais presente em O Invasor, de Beto Brant (em que a instabilidade entre ricos e pobres não gera conflito e sim uma união constrangida de interesses).

Enquanto o cinema em chave épica, aquele que procurou falar de um certo caráter nacional, embrenhou-se diversas vezes nos últimos anos em armadilhas das totalizações, mais felizes têm sido os resultados das obras que se interessaram pelo íntimo de seus personagens. Seja com personagens históricos (em Madame Satã, de Karim Aïnouz, por exemplo), com personagens periféricos (Um Céu de Estrelas, deTata Amaral, O Primeiro Dia, de Walter Salles) ou dentro do registro documental (Nelson Freire, de João Salles, Santo Forte, Edifício Master e todos os demais filmes de Eduardo Coutinho), foram muitos os casos nos anos recentes em que a aproximação do cotidiano trouxe olhares inquietos sobre pessoas e personas - pequenos fragmentos do país.

É interessante, neste caso, notar a experiência do veteraníssimo Nelson Pereira dos Santos, que optou por fazer dois filmes ao retratar a vida e obra de Sérgio Buarque de Hollanda. Se um filme nunca poderá contar de forma inteiramente fiel uma vida, Nelson faz justamente do choque entre seus dois filmes a riqueza do seu retrato. Dedicando a primeira parte a mostrar a família e as lembranças que cada um tem de Buarque de Hollanda (o retrato íntimo) e a segunda a narrar seu percurso intelectual e familiar, sempre relacionando a uma visão da história do país (o retrato histórico), Nelson Pereira soube dar a seu personagem a imagem de grandeza e de afetividade que lhe interessou. E, mesmo unindo o retrato histórico e o da intimidade, conseguiu transmitir a sensação de que os seus filmes não darão conta da pessoa retratada nem tampouco pretendem fazê-lo. Que o filme duplo de Nelson tenha sido pouco visto e entendido, isso sugere muito das dificuldades que um cinema brasileiro terá para provocar discussões entre seu público.

Mas, se ainda é possível que se diga que o filme de Nelson Pereira, por sua própria natureza, não mostrava maiores ambições em atingir o público, mais incômodo e preocupante é o caso das Garotas do ABC de Carlos Reichenbach. Retratando dramas cotidianos de um grupo de operárias da periferia urbana de São Paulo, o filme de Reichenbach teve um sério entrave: para o público que hoje freqüenta as salas de cinema, não há nada mais distante do que este tipo de retrato do cotidiano. Acerca de filmes com personagens do subúrbio das grandes cidades, percebe-se interesse do publico pagante por narrativas em torno de traficantes ou matadores (é o caso, por exemplo, de Cidade de Deus), ou mesmo pela violência que cerca o cotidiano das famílias (como em Contra Todos), mas o mesmo interesse não se manifesta pelas questões afetivas de mulheres trabalhadoras do subúrbio. O público que se interessa por este retrato afetivo do cotidiano habita outro lugar, social e geográfico – e o cinema brasileiro não consegue mais chegar a esse público, de renda baixa, que em outros tempos foi o seu principal destino, o seu mais fiel companheiro.

Chegamos, portanto, a um ponto, já antigo e bem conhecido, que enclausura a discussão de idéias e mantém uma imensa parte do cinema brasileiro à beira do autismo: é a ausência de uma estrutura de difusão dos filmes, seja em salas de cinema, nas locadoras ou na televisão. Cinema é feito para ser visto e ouvido – e não são brasileiros os filmes disponíveis para a gigantesca maioria da população. Tendo seu mercado consumidor tomado e eventualmente sendo reduzido a um gênero cinematográfico (não é raro encontrar locadoras separando os filmes brasileiros em prateleiras específicas, como é feito com dramas, policiais e comédias), o cinema aqui produzido sustenta-se quase integralmente através do suporte estatal, por meio de concursos e leis de incentivo. Mantido desta forma, tem abafados seus discursos e limitada sua capacidade de diálogo dentro da sociedade. Com raras exceções, quase sempre dignas de comemoração, a maior parte dos filmes brasileiros só consegue ter acesso a um público restrito às salas-bistrô do cinema de arte. Certamente seu impacto sobre este público pode ser profundo em diversos casos e escalas. Mas há um problema evidente nesta relação, na qual o Estado brasileiro cumpre o papel de mitigador de conflitos, sustentando através de esmolas (às vezes bastante caras) uma produção contínua que não é vista pela população que a sustenta. Adicionando-se a isso a lembrança de que o próprio Estado mantém uma rede de programação televisiva, onde não são exibidos os filmes que patrocina, temos então um triste retrato dos vícios criados por uma legislação baseada no princípio de manutenção de um hipotético “mercado cultural” (por mais paradoxal que seja o conceito). Feitos para criar um mercado e não tendo acesso às salas, locadoras e redes de televisão deste mercado, os filmes, como se pode perceber em diversos casos, têm procurado se adequar aos formatos mais palatáveis para o público de cinema.

Certamente devemos comemorar a cada ocasião em que um filme é bem-sucedido, seja comercialmente, quando vence as armadilhas da exibição e alcança um público expressivo, seja sobretudo esteticamente, quando sabe ignorar estas armadilhas e se faz maior – vale lembrar a bela frase de Paulo José, quando uma vez disse que o Brasil às vezes ainda faz o melhor cinema brasileiro do mundo. No entanto, não se pode negar a evidência: se esse cinema só pode ser visto por uma elite, os filmes bem-sucedidos podem ser centelhas, fagulhas que provocam o incêndio, mas esse cinema, no aspecto geral, jamais poderá ser a fogueira ou mesmo parte dela. Pode, de todo modo, retratá-la através dos seus fragmentos – e é preciso sempre notar a força que certos filmes mostram em seus resultados finais.

Do que precisa então o cinema brasileiro para trazer inquietação, discussões e novas idéias à nossa sociedade? Necessita de ousadia, certamente – precisa querer incomodar, como cabe à melhor arte. Mas necessita, antes de tudo, que seja difundido de forma ampla (e não somente nos ocasionais eventos midiáticos criados pela Globofilmes). Para isso, é preciso encontrar seu público, ser exibido onde ele está, seja na rede pública de televisão ou em estruturas de difusão alternativas. Como se sabe, as visões mais ricas são as que conseguem abarcar fragmentos em maior número e diversidade possível. E este cinema precisa ser visto.

Texto publicado na edição nº 4 da revista Pensar Brasil, de maio-junho de 2005

Carreiras (2005)


Carreiras tem um clima febril, como uma embolada de idéias e momentos de uma personagem. E, desde o início, um eixo político se apresenta bastante claro em Carreiras, a defesa de um cinema de custos baixos e produção simples. Se isso já era evidente nos filmes anteriores de Domingos Oliveira, aqui a questão é explicitada em cartelas – desse modo, o realizador data e contextualiza as circunstâncias de sua produção, e a atmosfera do filme contamina-se por esta questão, dando ao seu enredo um certo sentido de urgência,

urgência que Domingos Oliveira controla e apresenta com sua encenação: esse é, dos seus filmes mais recentes, o mais escancaradamente ficcional na sua parte central, a história da jornalista Ana Laura. Carreiras não abandona o tom de realismo exacerbado dos filmes recentes do realizador, mas de todos é o que torna mais evidentes as características próprias de sua personagem protagonista – a Ana Laura de Priscilla Rozembaum não se confunde com o cotidiano da atriz ou de Domingos, ao contrário do que sugeriam certos momentos de seus outros filmes recentes – e Domingos Oliveira é essencialmente ficcionista, disso não há dúvidas. Dessa maneira, se o filme esclarece desde o princípio seu discurso político subjacente, Carreiras encontra sua força no plano ficcional de construção de uma personagem – não por acaso, é também o filme mais bonito visualmente entre os recentes do realizador –

e essa construção revela aquilo que os discursos podem apoiar mas não podem criar: a personagem encarnada pela atriz. Entre as muitas referências que costumam ser feitas ao cinema de Domingos Oliveira (Woody Allen, Fellini, Truffaut...), uma precisa ser acrescentada e destacada, a do norte-americano John Cassavetes – porque é no seu cinema que podemos encontrar um tom de urgência semelhante, assim como uma criação (feita de ação+improvisação, realismo exacerbado) tão forte de personagens por seus atores,

como atua aqui Priscilla Rosembaum, tal qual uma Gena Rowlands tropical, enfurecida. Sua egóica Ana Laura faz de Carreiras um filme único, admirável. Egoísta, ambiciosa, manipuladora, enraivecida, bêbada e cocainômana, com os cabelos brilhando ao sol da manhã, vai surgindo com força surpreendente a sua persona.

O que o filme tem de exemplar as cartelas iniciais já tornaram bastante claro. Carreiras diz e mostra que a ficção pode ser feita com criatividade e simplicidade, sem grandes custos, e que isso deve ser estimulado:

portanto, pelo que tem de exemplar, é projeto a ser seguido. Domingos já disse que está “quinhentos anos atrasado”. Tão atrasado quanto ele está o cinema, como se ironiza na comparação feita entre este e o teatro, no irônico diálogo coletivo inicial em mesa de bar. Mais atrasado do que Domingos e do que o cinema de modo geral, não há dúvidas, está o sistema brasileiro atual de produções caras que Carreiras critica.

Mas, por ser feito com criatividade, como já se disse, apresentar suas circunstâncias e datar-se não reduz o que o filme tem de único, ao contrário. Este sentimento de urgência que contagia a narrativa se alia à força da sua personagem - daí, mais do que imprescindível, Carreiras se torna cativante.

Texto publicado em setembro de 2005

Ética e moral

Um fato curioso: as questões sobre “como proceder” estão em voga nos filmes brasileiros recentes. Seja no envolvimento entre o íntimo e o social em Bens Confiscados, seja na oposição apresentada em De Passagem e no exame de relações sociais de Quase Dois Irmãos, seja nas trajetórias dos metalúrgicos esquecidos ou do metalúrgico levado ao poder em Peões ou Entreatos, seja na entrega da câmera pelo realizador aos presidiários em Prisioneiro da Grade de Ferro ou no direito do historiador em inventar o relato do passado em Narradores de Javé, ou mesmo em questionamentos ambíguos e problemáticos acerca dos procedimentos de corpos sociais específicos, como em Ódiquê e Contra Todos - em todos estes exemplos (e em diversos outros recentes) as questões éticas não são pano de fundo, são tema central. Será que estes exemplos indicam um movimento de tomada de posição coletiva de cineastas diante da célebre crise moral que assola o país? Talvez, ou talvez seja apenas um sinal de uma certa sintonia que se evidencia, para sorte da relação entre o cinema brasileiro e seu público - certas questões urgentes não se bastam em representações metafóricas, distantes. Não há como fugir da velha constatação de que o cinema que mais tratará de nossas questões será aquele feito junto a nós (com as exceções eventuais). Ao contrário do que apregoam os profetas da miragem do cinema industrial, é ligando-se decididamente à sua realidade que o cinema brasileiro vem despertando interesse, seja na ficção ou no documentário.

Neste ponto é preciso notar como são reveladoras e eventualmente assustadoras as escolhas feitas em certos filmes, como os já citados Ódiquê e Contra Todos e ainda Nina ou Glauber o Filme. O posicionamento ético de um filme não se fecha no seu tema ou escolha do herói – ele se define também na relação que o filme constrói com seu público. Neste ponto, constranger a platéia para provar teses não apenas esvazia os objetivos – na verdade, conspira contra eles. Se para fazer cinema no Brasil é preciso ter muita moral, no sentido vulgar da palavra, é preciso ter também muita moral, no sentido original deste termo, para que os questionamentos éticos não se embaralhem entre certezas e erros.

Texto publicado em dezembro de 2004

24/07/2008

Os mistérios do cinema e do samba (ou Todos os caminhos levam à Bahia) - sobre Bahia de Todos os Sambas (1983/1996)

Há um ponto crítico que pode ser percebido nos textos que compõem esta pauta, assim como nos demais escritos sobre filmes vistos como guilty pleasures, filmes que gostamos mas que, por qualquer razão, nos parecem ser ruins – o ponto é justamente que isso implica em duas visões opostas partindo do mesmo sujeito. De onde se pode tirar que um filme amado é ruim? Isso implica então na crença em um ‘terceiro olho’, uma capacidade de analisar ‘corretamente’, de forma ‘objetiva’ – quando nos parece que amamos por razões ‘pessoais’ aquilo que nosso bom senso indica que não é de boa qualidade, seja lá o que isso signifique em cada situação.

Pois é, não por acaso os afetos se voltam, na maioria dos casos, para filmes vistos num momento anterior ao ‘início da cinefilia’, quando descobrimos então o que é ‘realmente bom’, e também não é por acaso os filmes escolhidos são em sua maioria tipicamente hollywoodianos – ainda estávamos desarmados para o que depois parece clichê.

O problema de alguns, entre os quais me incluo, era justamente em lidar com a idéia deste ‘terceiro olho’, este certeza de que um determinado filme predileto seja uma porcaria, com certeza (sabe-se lá qual).

Depois de catar um pouco na memória e nos arquivos, acabei por encontrar então um filme que, frágil sob inúmeros aspectos essencialmente cinematográficos, realmente me encanta – ainda que não seja um filme que eu vá indicar para qualquer pessoa. Na verdade só indicaria a fãs dos artistas que aparecem – são eles que fazem o filme ser encantador, apesar de todos os problemas.

Bahia de Todos os Sambas é um documentário sobre um festival de cultura baiana realizado em Roma no verão de 1983. Neste festival se apresentaram, entre outros, Dorival Caymmi, João Gilberto, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Novos Baianos, Batatinha. São eles os astros do filme. Um bom filme, como se sabe, depende sobretudo do seu elenco, e este aqui é realmente bom.

Quem não for fã certamente irá se irritar com os problemas técnicos do som, que já não era grande coisa no cinema e foi destruído na telecinagem malfeita das empresas de distribuição. Se este é um problema sério (sobretudo na equalização de instrumentos, captados de forma precária e primária) que a incapacidade técnica dos distribuidores se encarregou de agravar ao extremo na versão em vídeo, não é no entanto o único do filme. Os pitorescos passeios filmados de Gilberto Gil e, mais tarde, das senhoras baianas por Roma não ajudam no ritmo, assim como as apresentações dos grupos de dança e capoeira e de Naná Vasconcelos – não imagino como tenha sido a passagem destes pela cidade italiana e pelo festival, mas pelo filme eles passam como turistas de caricatura. Se o não-fã mantiver o bom-humor diante dos problemas sonoros, precisará também ter uma paciência de Jó com a cadência do filme – se aos baianos não falta suíngue e ritmo, esse elogio não vale para o documentário. Sobretudo porque o filme nem sempre parece se encantar apenas pela beleza da arte que está sendo apresentada – há um fascínio com a visão de “manifestação de um povo” que é absolutamente desinteressante e ultrapassada. Não custa lembrar que o evento não se repetiu. A “revolução artística terceiro-mundista” não conseguiu ser mais do que moda de verão, e este povo ideal continua exatamente onde sempre esteve – continua existindo somente nas teses de uns e outros.

Para complicar tudo, depois de ver a obra o fã vai reconhecer os diversos problemas dos créditos do filme. Para se ter uma idéia, há uma confusão entre composições de Pixinguinha – Lamento, que abre o filme numa interpretação de Armandinho, é chamada de Carinhoso... Mais grave que isso, uma imensa parte dos músicos que aparecem na tela não é creditada – quem não for fã que trate de desistir!

Não, decerto não seria um filme a se indicar a uma pessoa desconhecida. Ainda mais que, nos casos mais famosos, estarmos tratando de artistas que despertam paixão e ódio – um ódio que, se já vinha se tornando cada vez mais comum devido ao valor dado pela mídia a estes artistas, só tende a aumentar diante das circunstâncias, quando vemos Gilberto Gil, um dos maiores destaques do filme, receber e aceitar o convite para assumir o Ministério da Cultura.

No entanto, o filme tem o mistério do samba. Isso não se explica, apenas se percebe.

Curiosa a escolha do Lamento de Pixinguinha para o início. A música carioca de Pixinguinha era filhote tanto dos ritmos negros das casas das tias baianas como da música importada da Europa, fosse através da música de igreja ou dos ritmos europeus de dança. Assim, parece que começamos com uma composição que representa toda essa mistura que tantos encantos trouxe – numa interpretação modernizada pelo solo de Armandinho, calcado na interpretação clássica do Jacob do Bandolim.

Pixinga participava de festas e reuniões em que se tocava e cantava o ritmo amaxixado que ganhou o nome de Samba no registro de Donga de Pelo telefone, como se sabe. No entanto, sempre foi notada a possível origem baiana do samba de roda, que teria sido trazido para o Rio de Janeiro nas imigrações conseqüentes do fim da escravidão. Isso tudo são águas passadas, discussões sobre uma época em que se dizia que “samba no morro não é samba, é batucada” – e, como já disse o poeta, o samba não nasce no morro nem na cidade, ele nasce no coração. Mas tudo isso vem à tona quando vemos Batatinha cantando seus sambas.

E surge mais evidente ainda quando aparece Dorival Caymmi, tendo uma conversa pitoresca com Caetano Veloso – que comenta sobre a participação do patriarca nos vários momentos de sucesso da música brasileira em outros países. Para exemplificar, vemos um registro de Carmem Miranda cantando O que é que a Baiana Tem, a música que o tornou célebre na interpretação feita em 1939, quarenta e quatro anos antes do festival se realizar. Depois de Caetano Veloso fazer um comentário sobre a linhagem baiana, surge João Gilberto. Se Caymmi parece representar uma música que sempre existiu, que é anterior ao céu e à terra, João Gilberto canta algo que é sempre estranho, novo e repetido, diferente, pensado e cuidado. É o artista essencialmente apolíneo – o biscoito fino para as massas de que falou o modernista. João homenageia a Itália cantando Estate num idioma próximo ao local.

Depois dessa apresentação de uma certa linhagem do samba baiano, voltamos a Batatinha, depois chegamos à geração tropicalista – numa fase especialmente interessante de suas carreiras, antes de guinadas no caminho da música pop anos 80. Gilberto Gil, vindo de discos espetaculares como Refazenda, Refavela e Realce, repassa prazerosamente e cheio de balanço três canções de um período em que estava emplacando sucessos ano a ano, a célebre Aquele Abraço e mais Ela e Toda Menina Baiana.

Depois de Gil temos, enfim, Dorival Caymmi. Na época, 1983, Dorival já havia gravado todos os discos que definiram sua obra – no ano seguinte gravaria o seu último disco solo, sob a batuta de Radamés Gnattali – patrocinado por uma empresa, este disco só foi lançado para o grande público no final da década de 90. Já sendo um senhor de idade – e quando não foi? –, Dorival canta A Preta do Acarajé, a canção que Carmem Miranda gravou com ele no outro lado do disco de O Que É Que a Baiana Tem. Canta com seu violão suingado, seu ritmo de samba de roda que ninguém conhece tão bem. Depois canta em companhia da filha Nana a Canção da Partida que encerra a sua Suíte dos Pescadores.

Canta em Roma, a cidade antiga, mas está tranqüilo – sua música é anterior a tudo aquilo. A música de Dorival Caymmi parece eterna, antediluviana, anterior à separação dos continentes, à criação da Terra, ao surgimento da Via Láctea. Com sua simplicidade, Dorival parece estar sempre fazendo as coisas mais belas. Poucas coisas são tão bonitas quanto a música de Caymmi.

Depois teremos Gal Costa na função de musa, cantando Índia e Canta Brasil, já numa fase bastante distante da cantora ousada que um dia tinha sido, mas ainda mantendo um repertório de qualidade e original (não por muito tempo). Em seguida, Caetano Veloso, acompanhado da sua Outra Banda da Terra (provavelmente a fase mais feliz de sua carreira), canta dois clássicos desse período, Lua de São Jorge e Sim/Não, para em seguida mostrar aos italianos sua versão em voz e violão para Eu Sei Que Vou Te Amar, da dupla Vinícius/ Jobim.

Para sugerir que o percurso está acabando, voltamos a João Gilberto. Canta duas de Jobim, Wave (que havia gravado no disco Amoroso) e em seguida Insensatez – cuja gravação original é do seu terceiro disco, aquele em que Jobim arranjou apenas uma parte das faixas – e talvez sejam os arranjos mais bonitos que fez, os para Coisa Mais Linda, O Barquinho, Meditação e sobretudo Insensatez, variação de uma peça de Chopin. João regrava Insensatez três anos depois de voltar a morar no Brasil, depois de décadas no exterior – onde, depois das suas gravações históricas com Jobim na Odeon, fizera discos antológicos como João Gilberto En Mexico, o já citado Amoroso e o disco branco João Gilberto, onde interpretava, entre outras, Falsa baiana. João aparece no filme só nos shows, só com sua voz e com seu violão sincopado e constante, sua batida que mudou tudo, que parece ter uma firmeza que nos sustenta, que funciona de chão para o nosso dia-a-dia. A Itália certamente devia um registro de alto nível da música de João, uma vez que foi a península que, duas décadas antes, teve a sorte de ser o lugar escolhido para uma turnê de João com seu xará Donato – turnê da qual não há registros conhecidos. Depois, mais um registro histórico – João canta Louco (Ela Era Seu Mundo), uma canção de Wilson Batista que, mesmo sendo comum em seus shows, ele nunca gravou em disco. João dá seu recado ao regravar Wilson, assim como já regravara diversas vezes Geraldo Pereira ou Janet de Almeida – se sua música é aparentada com a eternidade de Caymmi e com a sofisticação de Jobim, ele também é herdeiro e intérprete da música carioca da época do rádio, sobretudo do samba sincopado dos malandros da Lapa.

Depois do prazer de ver e ouvir João Gilberto, temos a explosão da batucada para terminar o filme – seria uma oposição dialética entre Apolo e Dionísio? Ok, isso foi uma piada. Então, canta Caetano Veloso É Hoje, o samba da União da Ilha, para depois Gal cantar o hit Festa do Interior e terminar com Armandinho e os Novos Baianos Moraes Moreira e Paulinho Boca de Cantor apresentando Vassourinha Elétrica e depois Pombo Correio, em cima de um trio elétrico que se arrasta pelas ruas de Roma.

Temos aparições antológicas, então, da geração tropicalista, dos Novos Baianos, de Batatinha, de Armandinho. E temos a oportunidade de assistir a Caymmi e João Gilberto. Azar se não for bom cinema, o cinema que se dane – porque coisa melhor não há.

Texto publicado em dezembro de 2002

Novo cinema vivo

Recentemente, tivemos a notícia de que foi aprovada pelo Congresso a prorrogação e ampliação das leis de incentivo à produção audiovisual, além da criação de um fundo governamental de suporte à área. Esta ação se baseia na crença de que a produção audiovisual possui um valor cultural em si que justifica a sua manutenção através do apoio estatal (e, é claro, baseia-se também no reconhecimento implícito de que não há condições de mercado para sua auto-sustentação). E em que se baseiam as escolhas feitas pelos agentes do suporte estatal? Na avaliação de uma necessária representatividade cultural – ou seja, que os projetos escolhidos, em sua complexidade, ofereçam o retrato cultural mais “correto” possível da vida e dos desejos dos cidadãos do país. Com maior ou menor gradação, esta preocupação está na pauta de todos os agentes governamentais incumbidos de apoiar a produção audiovisual brasileira – ela sustenta a lógica da atual opção pelo apoio à regionalização das produções, por exemplo. Não é surpreendente, portanto, que o movimento do Cinema Novo volta e meia seja evocado feito fantasma insepulto para assombrar as novas produções - afinal, uma das preocupações fundamentais daqueles filmes é justamente esta: como retratar no cinema as principais questões da sociedade brasileira (e, assim, participar de sua transformação)? A questão seguinte também ainda incomoda, sobretudo num país em que a maior parte da produção de audiovisual independente é mantida pelo Estado: quem define quais são estes temas de interesse? E de que modo?

Algumas das cisões decisivas do período cinemanovista continuam dividindo as opiniões: os filmes a serem produzidos devem ser muitos e baratos (seguindo a lógica franciscana da frase de Saraceni sobre uma idéia na cabeça, uma câmera na mão e nada além do necessário) ou devem apresentar características (narrativas e estéticas) que permitam a inserção no mercado (porque, como já disse Gustavo Dahl décadas atrás, mercado é cultura)? Não custa lembrar que, dos mais de setenta filmes que estrearam em São Paulo em 2006, nem vinte deles tiveram público acima de dez mil pessoas, e somente dois passaram da barreira de um milhão de espectadores. Ou seja, talvez até se possa afirmar que “mercado é cultura”, mas a coisa se torna complicada no sentido inverso – se toda a cultura dependesse do “mercado”, ou seja, do comércio dos filmes, não teríamos nem cinco filmes brasileiros sendo produzidos por ano. Por isso se faz necessário o apoio estatal – mas para que tipo de filme? Se notamos que os duelos recentes em torno desta questão tiveram como protagonistas alguns célebres cinemanovistas (o já citado Gustavo Dahl até recentemente na presidência da Ancine, além de Orlando Senna na Secretaria do Audiovisual e Carlos Diegues, Luiz Carlos Barreto e Arnaldo Jabor questionando publicamente as escolhas governamentais – apoiadas, por outro lado, por nomes como Paulo Cezar Saraceni, Vladimir Carvalho e Nelson Pereira dos Santos), percebemos então mais uma razão para que as preocupações acerca de representação cultural do país (naturais do Cinema Novo) permaneçam à tona, reavivando velhos confrontos. Não é apenas uma certa ideologia cinemanovista que faz parte do poder atualmente – os próprios participantes do movimento continuam em primeiro plano.

Mas não é somente a agenda nacional-populista que esteve na base das idéias cinemanovistas - a contestação ao modelo vigente de narrativa cinematográfica, preocupação comum a todos os filmes, textos e diálogos do movimento, está hoje escanteada, presente em um número reduzido de filmes e não raro vista preguiçosamente como uma questão “datada”. Se as preocupações estéticas hoje são outras, o interesse cinemanovista em retratar a sociedade brasileira segue presente em numerosos filmes, de “Central do Brasil”, de Walter Salles, a “Amarelo Manga”, de Cláudio Assis, de “Cronicamente inviável”, de Sérgio Bianchi, a “Dois Filhos de Francisco”, de Breno Silveira, assim como em muitos dos documentários brasileiros recentes (“Vocação do poder”, “Ônibus 174”). É claro que isto também pode ser apontado em filmes recentes dos próprios veteranos do movimento, tão diversos como “O Maior Amor do Mundo”, de Diegues, “Edifício Master”, de Eduardo Coutinho, “Banda de Ipanema”, de Saraceni, e “Brasília 18%”, de Nelson Pereira. Da mesma forma, as preocupações em torno do “diálogo com o público”, comuns nos escritos dos anos 60, ainda são recorrentes (e é curioso que às vezes se conceda aos filmes mais preguiçosos a justificativa de supostamente procurarem este “diálogo com o público”).

No entanto, para compreender as grandes mudanças de perspectiva, é preciso ter em mente as diferenças de conceituação: o Cinema Novo que estava acontecendo nos anos 60 não foi em momento algum a mesma coisa que o Cinema Novo que podemos compreender hoje – até porque não se pode comparar o momento em que surge um movimento ao momento em que suas propostas, já consolidadas, permanecem presentes diante de novas circunstâncias. Aquele foi um movimento de jovens em busca de uma certa arregimentação coletiva a partir de interesses comuns, enquanto hoje o que temos é a permanência de temas, esta série de características percebidas historicamente que continuam presentes nos filmes recentes. Não faz sentido conceituar Cinema Novo tão-somente como sinônimo de um grupo fechado com propostas já há muito conhecidas. Esta conceituação equivocada, bastante comum nos dias de hoje, é na minha opinião a chave para compreender a recente recusa de Nelson Pereira em ser classificado como cinemanovista, a ponto de preferir que seus filmes dos anos 60 não fossem incluídos na mostra atualmente em cartaz no CCBB-SP (o que gerou um certo desencontro de informações para alguns jornalistas). Ainda que na década de 60 ele tivesse opinião diferente (Nelson já se disse parte do Cinema Novo, como se pode verificar numa entrevista de 1964 publicada em “O Processo do Cinema Novo”, de Alex Viany), eu enxergo certa lógica na recusa: com a distância histórica, as crenças e os caminhos dos cinemanovistas (os que sobreviveram) se distaciaram das que Nelson escolheu, a seu ver – porque o que era Cinema Novo em 1964 é diferente do que é o Cinema Novo em 2007.

Rever os filmes do período em um panorama amplo nos dá a chance de tentar compreender o percurso dessas idéias ainda tão presentes. E não importa se esta compreensão parcial do percurso não é o mesmo que vivê-lo – afinal, esta revisão pode gerar novos percursos. Esta inquietação gera uma contaminação certamente muito mais interessante do que a preguiça dos que têm por hábito não ver os filmes e repetir os velhos discursos (isso parece uma obviedade, mas é preciso lembrar que ver os filmes é imprescindível para poder pensar e falar sobre eles).

Há atualmente diversos empecilhos que impedem a difusão adequada dos filmes brasileiros – esta velha questão, anterior ao período do Cinema Novo e bastante discutida naquele momento, continua tristemente atual em meio a todos os processos de modernização: quase todos os filmes brasileiros, recentes ou antigos, são inacessíveis para a imensa maioria da população. Há poucas salas para exibi-los, os lançamentos em DVD são limitados e eles praticamente não são exibidos nas emissoras de televisão, nem mesmo nas redes públicas (e por que não são? Eis a questão!).
Isso não impede, no entanto, que a linguagem audiovisual seja renovada pelos filmes e compreendida de modo cada vez mais ágil pelos espectadores de uma era posterior ao surgimento dos videoclipes e videogames. Pensar nas relações que podem nascer da agilidade inconstante dos olhares de hoje com a inquietação criativa e transformadora daqueles filmes dos anos 60 já é um bom motivo para uni-los em seqüência mais uma vez – e poder (re)ver os filmes daquele movimento de jovens em busca de novos caminhos audiovisuais. Porque há novos cinemas a surgir por aí, vários movimentos jovens e potencialmente criativos que estão aparecendo no panorama do audiovisual brasileiro – e é preciso saber o que nossos cinemas ainda têm de novo para poder alimentar o que vem pela frente

Texto publicado no caderno Fim de Semana da Gazeta Mercantil de 9/02/2007

Pecados de Guerra (1989)


Há uma tristeza tremenda que parece definir Pecados de Guerra. Em cada plano, cada imagem e cada som há uma dor rara de se ver filmada. Não é agradável, portanto – mas é essa tristeza que justifica e sustenta o filme.

Em plena guerra do Vietnã, o soldado Eriksson é colocado diante do dilema de ser ou não conivente com um crime hediondo cometido por seus companheiros de farda – o estupro de uma jovem vietnamita. A narrativa toma o ponto de vista deste soldado, por mais instável e inseguro que ele pareça ser em diversos momentos. Ele não contemporiza em momento algum, em nenhum instante ele parece aceitar a idéia de ser conivente com o crime – mas ele falha, e com ele falham e falhamos todos. Não, decididamente não é um filme agradável.

A guerra é o inferno para quem está lá, com certeza – e a gente sempre lembra que se tratava de uma invasão a um país que não desejava receber a “ajuda” que vinha da América do Norte (algo semelhante a 2003?). Bem, mas a história é sobre um personagem que lá está, no meio da guerra, num lugar onde a vida pode de fato terminar no instante seguinte. Convive com seus companheiros, fica amigo deles, tem a vida salva por eles, quer sair do acampamento com eles – para encontrar prostitutas locais –, em suma, guerrear é um troço simples, você faz parte dos bons e os inimigos são os maus. Só que, não podendo ter encontros com mulheres em determinada noite (guerra é guerra), os seus companheiros resolvem se exceder um pouco. E aí? Salvaram a vida do cara, são os camaradas dele, até que de repente há um certo surto coletivo – induzido por diversas circunstâncias, inclusive pela estrutura hierárquica – e os caras que têm o discurso de salvar o mundo mostram que perderam em definitivo o respeito pela vida alheia. Fazer o quê, então?

O ponto ético central do filme é nunca tergiversar, nunca negar a gravidade do ato ou justificá-la por conta da realidade que cerca a situação – ao contrário, a narrativa percebe que essa realidade só torna ainda mais problemática a atitude. Não deve ter sido fácil para os americanos ver esse retrato na tela: entraram no país dos caras, mataram milhares dos caras e ainda estupraram e mataram as jovens mulheres do lugar. Além disso, também perderam milhares de vidas e terminaram escorraçados da região – e o início do filme se passa no final do período político seguinte, o de Richard Nixon sendo investigado por Watergate. A expressão de Eriksson ao ouvir as últimas frases do filme (“mas o pesadelo agora acabou...não? Espero que sim.”) indica que, infelizmente, parece que esse pesadelo é recorrente.

Que não se pense, no entanto, que este pesadelo recorrente é privilégio de nações guerreiras – na nossa guerra civil de cada dia temos nossas versões diversas para os gestos doentios da estupidez coletiva de pequenos grupos, como podem atestar casos tenebrosos de vandalismo juvenil. E o que fazer numa hora dessas? O filme se posiciona – tem que ter brio para não ficar ao lado da turma. E sobreviver.

A presença única desse conflito moral – cuja opção não é nem pode ser posta em questão – torna este filme estranhamente diferente dos demais filmes do diretor. Ao invés de trabalhar seu fascínio pela técnica narrativa de cinema e pela analogia com o engodo da aparência, De Palma deixa por um momento de dedicar sua vida ao cinema e dedica seu cinema à vida. Daí encontra a razão de ser do seu projeto e daí também – contando com o desempenho fabuloso do elenco – encontra toda a força e dor que tornam o filme incomum e impressionante.

Noel, o Poeta da Vila (2007)

Seria simples justificar o interesse por Noel, o Poeta da Vila atribuindo ao filme a qualidade de nos relembrar de modo afetivo as canções do compositor, e de fato o filme depende em grande medida das criações de Noel Rosa. Mas há algo além: o que o filme tem de mais interessante, mais do que as canções, é o modo que encontra para trazê-las. Noel, o Poeta da Vila lida com personagens que hoje ícones da canção popular brasileira – e trabalha isso na chave do despojamento, do encanto prazeiroso da simples encenação. O filme parece menos preocupado em dar consistência psicológica aos personagens do que permitir que eles simplesmente se imponham no ambiente.

Nesse sentido, é especialmente feliz aqui a relação entre os ícones do passado e os músicos do presente. Parece simples, e de fato o é, usar jovens sambistas como Pedro Miranda e Eduardo Galloti, ou mesmo um já não tão jovem como Wilson das Neves, para trazer ao filme a ambiência das rodas de samba da época – e o trunfo do filme é apostar antes na simples construção do ambiente do que na falsa verossimilhança da recriação posada. Assim, pode-se dizer que o filme se orienta mais para criar imagens que reúnam afetivamente numa construção narrativa as canções de Noel do que para elaborar um universo dramático – como se vê no final, a criação da cena que origina o clássico “Último desejo” é mais interessante como uma invenção fabular do que como um clímax dramático.

Todo o filme tem esse tom, e é isso que lhe dá charme – cada canção parece ter a sua própria estória, sem demandar qualquer espécie de verossimilhança dramática para isso. Desse modo, Noel, o Poeta da Vila merece um elogio singular: é um longa-metragem que parece curta. Não apenas porque tem uma graça que parece torná-lo leve, mas principalmente por, ao ser um somatório de canções, ambientes e momentos encontrados de forma afetiva, demonstra uma discreta e deliciosa liberdade no modo de narrar. Noel, o Poeta da Vila é um filme que mostra mais interesse em adentrar ambientes e rever a beleza das criações musicais do que em seguir os tons, andamentos e modulações dramáticas do academicismo típico. Deste modo, em seus melhores momentos guarda a beleza instantânea de uma boa roda de cantoria com pandeiro, cavaquinho e violão.

Texto publicado originalmente em novembro de 2007

Discutindo esse tal de “cinema popular” no Cine BH

No início de novembro aconteceu em Belo Horizonte o CineBH, no aprazível bairro de Santa Tereza. Aconteceram alguns encontros bacanas por lá, tanto de filmes quanto em mesas de debate – participei de duas delas, numa mostra em que foram exibidos em sessão dupla o clássico São Paulo S.A., do Person, e o bonito A Via Láctea, da Lina Chamie, e que também exibiu Eu Matei Lúcio Flávio em tempos de Tropa de Elite. O filme do José Padilha acabou sendo discutido em boa parte dos debates, mas é um filme com questões tão específicas que merece um artigo à parte. Mas, de todo modo, o que me motivou a escrever essa crônica foi a participação em duas mesas que, de certa forma, trataram dos espaços tidos pelos filmes brasileiros recentes. Isso, somado à leitura de uma interessante entrevista de Jorge Peregrino, o responsável pelas ações de distribuição da Paramount na América Latina, me levou a querer voltar a alguns pontos aqui na Contra. Para registro.

Não pude, para meu azar, estar presente na abertura nem na primeira mesa de debates, que contava com a presença de vários realizadores mineiros. Na primeira mesa em que participei lá em Belo Horizonte, no segundo dia da Mostra, estive na boa companhia do Hernani Heffner, do José Carlos Avellar e do Inácio Araújo. No final o debate esquentou: que tipo de filme deve ser estimulado no país e que tipos de filme devem ser produzidos? Inicialmente o Hernani fez um histórico naquele nível fabuloso que a gente conhece e me levou a pensar em algo que pode parecer evidente, mas precisa ser compreendido para se entender o panorama atual: por conta de todas as alterações na própria forma de ter acesso aos filmes, o público de cinema mudou inteiramente seus modos de acesso, seus gostos e seu repertório. Não foram poucos os que sonharam com uma indústria de cinema no Brasil e gastaram fortunas e anos nessa quimera – mas hoje um sistema desse porte soa ainda mais irreal justamente porque se trata de um sistema insustentável, que foi parte de uma outra era. Os sistemas com maior nível de produção dependem do apoio governamental ou de redes de televisão. E por aqui, como sabemos, há essencialmente um suporte estatal para a produção, com ainda incipientes esquemas de difusão.

Já que a produção depende das esmolas do suporte estatal, a questão da escolha dos filmes a serem apoiados volta sempre à tona, e esse primeiro debate de que participei não foi exceção. Um jovem curta-metragista mais entusiasmado defendia que era preciso apoiar mais filmes como O Invasor e que filmes como Carandiru nem deveriam ser feitos, na sua opinião. Bem, apesar de achar curioso que os filmes citados não sejam muito recentes, comentei que acho Carandiru um filme bastante interessante, como os leitores da Contra já souberam através de um Cinema Falado, mas o sentido geral do que ele disse (além, é claro, da empolgação, sempre louvável, mesmo que eventualmente cansativa) não me parece de todo errado. Avellar ponderou que, na sua opinião, qualquer filme realizado é algo bom, porque por pior que seja permite uma discussão sobre ele. Não discordo dessa afirmação, cuja tendência aqui no Brasil seria associar ao pensamento do Paulo Emílio, mas acho interessante voltar a essa questão depois de ter lido a entrevista do Jorge Peregrino, porque nela o distribuidor aponta que é preciso diferenciar filmes “autorais” de filmes “comerciais” – que os primeiros podem ser feitos a fundo perdido, mas os segundos precisam apresentar retorno de bilheteria, uma vez que é a isso que se propõem. Creio que qualquer tentativa de conceituar o que seria “autoral” em oposição ao que seria “comercial” seria bastante frágil – no entanto, parece-me mais simples diferenciar orçamentos altos de baixos orçamentos. Seria simples e estimulante para o espaço dos filmes se na nova versão da Lei do Audiovisual tivesse sido inserido um item que exigisse alguma espécie de reinvestimento da renda. Na atual estrutura de apoio filme a filme, no entanto, não existe cinema popular ou comercial, existem apenas ocasionalmente filmes-fenômeno, a uma média aproximada de um por ano, como se sabe.

De todo modo, vale lembrar, sem nenhuma dose de novidade, que nem o incentivo à produção nem a discussão sobre filmes podem ficar pautados pela questão da bilheteria. E, justamente por isso, a lógica do apoio às produções de baixo orçamento fazem muito mais sentido do que o benefício a um cinema dito comercial que no entanto dá prejuízo – digo que “faz mais sentido” porque é mais coerente com um esquema de incentivo que permite fenômenos eventuais, mas não organiza um sistema em que os filmes estão em relação direta com as platéias. (Talvez esse seja um comentário paradoxalmente repetitivo e fora de época, uma vez que a Lei do Audiovisual já foi prorrogada sem alterações nesse sentido).

No debate do dia seguinte, mediado pelo cinético Léo Mecchi, estiveram juntas pessoas que representavam algumas tentativas de difusão dos filmes, à margem do esquema de exibição em circuito comercial: cineclubes, festivais, DocTV, pontos de cultura. A discussão focava o fato de que cada vez há mais esquemas de difusão dos filmes que ficam à margem do circuitão se estabelecendo por aí – se o circuitão está cada vez mais barra-pesada, então a solução para a difusão é arrumar esquemas alternativos. Eu já tinha comentado com o Léo noutra ocasião que tenho tido a chance de ver como isso anda rolando por conta das notícias que recebo sobre as exibições do Conceição – fiquei sabendo de esquemas de difusão em horários alternativos, como faz o Cinecult, e dos esquemas de exibição em cineclubes que andam acontecendo, por exemplo. No final do debate, o foco na difusão pela TV levou a um questionamento sobre as ações recentes do governo, que foi defendido pelo Mauricio Hirata, diretor do programa DocTV. Essa ação do MinC de que o Mauricio participa é muito interessante, mas ele ficou numa saia justa, até injusta, quando foi lembrada a questão da exibição dos filmes incentivados na rede pública de TV. Por quê os filmes não são exibidos assim? Seria injusto cobrar uma resposta do Mauricio Hirata, que estava representando uma outra ação do MinC, muito boa como já foi dito. Mas a TV é a questão inevitável quando se pensa em difusão alternativa em larga escala.

Outra questão bem óbvia seria o uso da web. Não seria interessante se os filmes incentivados se tornassem disponíveis para download após alguns anos de janela comercial?

(Começo a ficar receoso de que esse texto se torne uma coleção de idéias fora de hora... Mas não fora de lugar, ao menos)

O segundo debate de que participei (e último em que pude estar presente), com mediação do Ricardo Calil, tratou de diálogos entre filmes de diferentes períodos – a curadoria do cinético Cléber Eduardo, como já comentei, juntou na programação filmes tematicamente próximos, como São Paulo S.A. e A Via Láctea ou Menino do Rio e Houve Uma Vez Dois Verões (além de relembrar Eu Matei Lúcio Flávio em tempo de Tropa de Elite). Lina Chamie, a diretora de A Via Láctea, falou sobre sua alegria em ver a reunião do seu filme com o do Person em uma sessão dupla – algo que ela já havia comentado com emoção quando apresentou o filme para o público – e também falou sobre outras relações com obras diversas que lhe ajudaram/inspiraram a produzir o seu filme. Como andei tratando dessas relações entre filmes de épocas diferentes em alguns trabalhos recentes (uma proposta de mostra, um texto juntando Rio Zona Norte e Madame Satã, outro juntando O Signo do Caos e Serras da Desordem), tentei tratar não exatamente do que aproxima os filmes, mas o que aproxima a própria origem deles – o que têm em comum na perspectiva de que partem para mostrarem seus mundos. O debate ficou animado pelos questionamentos propostos pelos mineiros da mesa, os professores Ataídes Braga e Paulo Augusto Gomes. No caso do primeiro, Ataídes comentou como as relações históricas imediatas entre filmes são ao mesmo tempo redutoras e irrestritas, já que outros filmes de temas semelhantes poderiam ser usados, levando a outras relações – Paulo Augusto, por sua vez, fez uma defesa do viés autorista, considerando de modo geral que essa perspectiva de diálogos não trata das questões ligadas ao talento dos realizadores. A partir de um comentário do mediador Calil e de outro do Cléber, saí do debate com uma questão na cuca, por conta da reincidência de algumas questões que aparecem nos filmes de uma forma quase cíclica, se esse termo já não estivesse contaminado demais ao se falar de filmes brasileiros. Cheguei a comentar sobre a relação que vejo entre O Signo do Caose Carnaval Atlântida, mas talvez tudo seja uma grande refilmagem de Carnaval Atlântida – e, eis o drama, agora sem Oscarito nem Severiano para ajudar a dar certo.

A impressão final, como ciclo, dá a volta e se assemelha ao início: a gente pode fazer filmes, mas sistema de produção que possibilite um cinema “popular” ou “comercial” só vai acontecer com espaço de difusão na TV e chance de reembolso e reinvestimento em novas produções. Sem isso, os filmes vão ser feitos, mas só vão poder se espalhar pelas margens – e ocasionalmente podem chegar à crista, que afinal é a margem superior das ondas.

Texto publicado em novembro de 2007

O Olhar de Mario Carneiro


Quando observamos em retrospecto, torna-se evidente como o trajeto estético percorrido por Mario Carneiro ao longo dos filmes em que trabalhou é fundamental na construção de visualidade própria do cinema feito no Brasil nas últimas décadas. Mais do que um simples modelo, o que o olhar de Mario Carneiro estabeleceu (junto com seus parceiros) foi a concepção de uma luz ao mesmo tempo complexa, com alto grau de elaboração, e simples, a partir de poucas fontes de luz. É comum e natural que o seu trabalho como artista plástico seja relacionado aos filmes que fez, como forma de compreender, através de sua trajetória, como se impôs o grau de sofisticação presente nos trabalhos de Mario – estes trabalhos que logo se tornaram referências no imaginário dos cinemas brasileiros. No entanto, ao vermos em conjunto as imagens que fez para dezenas de filmes desde o final dos anos 50, o que se torna notável não é apenas a sofisticação de um olhar acostumado a trabalhar imagens, mas sobretudo o modo como esta sofisticação se constrói: é um modo de poucos e bem-utilizados recursos, trazendo aos filmes um estilo visual simples, que se adequou tanto aos instantes em que as narrativas se voltavam à apreensão do cotidiano quanto aos momentos de construções visuais mais dramáticas e recortadas.

Esta simplicidade comum aos trabalhos de Mario Carneiro precisa ser relembrada ao se discutir o grau de influência deste olhar “pictórico” para registrar que o seu cinema não se trata de uma arte “armada”, como se fosse mera importação da construção pictórica para o registro fotográfico contínuo. Ao contrário – antes de apresentar uma “armação visual de mundo”, em que cada elemento parece ser exibido tão-somente para dar estrutura ao quadro (algo comum a muitos cineastas que elevam a estilização ao extremo), a visualidade dos filmes feitos por Mario Carneiro apresenta-se como uma construção a partir dos elementos do mundo. Estes “murais em movimento” organizam as imagens a cada instante a partir de uma conjugação de rigor, clareza e sensibilidade. Isto é evidente em diversos trabalhos seus, tanto no início da sua carreira em cinema, em Arraial do Cabo, de Paulo César Saraceni, quanto em anos recentes – em 500 Almas (que só tem o sol como fonte de luz), de Joel Pizzini, por exemplo.

Mário Carneiro, sempre um grande prosador, formou diversas parcerias ao longo dos anos – com Joaquim Pedro de Andrade, com Domingos de Oliveira, com Fernando Coni Campos, sobretudo com os citados Pizzini e, mais ainda, Saraceni. De Arraial do Cabo a 500 Almas, passando por Couro de Gato, Porto das Caixas, O Mágico e o Delegado e Harmada, entre tantos outros, sobressaem ao mesmo tempo uma coerência estética rara e uma beleza comum a todos os filmes – talvez sejam causa e conseqüência, talvez não. Cada filme tem suas características, seu tom próprio. Arraial do Cabo até hoje impressiona com suas imagens dos pescadores registradas num preto-e-branco cheio de sol, enquanto Porto das Caixas parece ser feito na palheta inversa, em meio à escuridão. Se Couro de Gato voltou à favela seguindo as lições de Rio 40 Graus, O Padre e a Moça apresenta uma fotografia recortada e estetizada até onde a beleza visual permite. Se Harmada usa luzes teatrais em ambientes interiores, 500 Almas utiliza-se do ambiente externo e das cores do dia. Além disso, Mario foi um diretor de cinema que manteve seu elo com a pintura, realizando documentários sobre alguns dos principais nomes das artes plásticas no Brasil, como o seu mestre Iberê Camargo, e ainda Milton Dacosta, Lygia Clark, Anna Bella Geiger, Cícero Dias, entre outros.

A memória do cinema brasileiro quase sempre esquece dos seus principais artistas – e sobretudo seus técnicos-artistas, aqueles que participaram da criação sem deixar a assinatura de realizadores. Há uns poucos que se tornam lendas entre iniciados, mas a verdade é que é bastante difícil imaginar um festejo para um técnico do cinema brasileiro - seja ele um diretor de fotografia, um montador ou um editor de som – que permita reunir diversos trabalhos seus numa mostra de filmes. É esta oportunidade que o Centro Cultural Banco do Brasil está oferecendo aos seus freqüentadores – e assim, de certa maneira, podemos imaginar quantos técnicos e artistas são necessários para gerar uma cinematografia.

Entre muitos, que se homenageie agora o talento de uma figura especial. A grandeza dos trabalhos do artista e técnico Mario Carneiro nos permite celebrá-lo nesta mostra. Portanto, vamos aos filmes.

Texto escrito para o catálogo da mostra Homenagem a Mario Carneiro, realizada entre abril e maio de 2007 no CCBB do Rio e SP.