25/07/2008

O Sopro no Coração (1971)


Não é mais antigo que o cinema o conceito de adolescer, de transitar da infância à idade adulta. Na verdade, se há alguns séculos não se tinha a noção de adolescência, hoje parece às vezes que todos o somos, uma vez que um dia o fomos – principalmente para um certo tipo de cinema, sobretudo o dos efeitos especiais. O Sopro no Coração é um filme sobre um garoto de catorze anos (quase quinze) – mas, ao invés de se identificar com seus conflitos, encanta-se com eles, em busca do tempo que ficou para trás (é um filme sobre um adolescente, e não para um adolescente). Não é que Laurent não sofra com seus problemas – a questão é que seus sentimentos, bons ou ruins, não têm a mesma força que a experiência em si. Por mais desagradável que seja no momento ter a primeira transa interrompida, a lembrança que resta é de uma situação divertida. Só resta rir.

É essa libertação de um certo recalque que o filme parece pleitear. A mãe de Laurent afasta-se da família por conta de um amante, o pai de Laurent é ausente, seus irmãos implicam com ele, a empregada não pára de reclamar, seus amigos são chatos... e daí? Vive-se mesmo assim, não é mesmo?. E pode ser divertido – não é ruim, no final das contas. O menino mimado, o pequeno gênio que ganha tudo e ainda rouba discos, que tem o problema de saúde a que se refere o título, o sopro no coração (que parece sugerir também um sentido de impulsividade), e por isso ganha a atenção de todos, aproveita a vida como pode e como lhe convém. Nisso, a mesmo tempo se une e se liberta de seus primos-irmãos do cinema francês, os garotos anárquicos do Zero de Comportamento de Vigo e do Antoine Doinel do Incompreendidos de Truffaut. Laurent, apesar da má saúde e dos mimos, tem a vitalidade e o sentimento de liberdade de seus aparentados cinematográficos – mas, por esta má saúde e mimos, não tem do que se queixar acerca de dinheiro e cuidados, ao contrário dos anteriores. Não precisa se preocupar em ter liberdade – ele tem de tudo, sorte dele, que pode ficar ouvindo jazz em paz.

Nisso o filme situa sua transgressão central, a quebra de tabu que o tornou famoso. Para a dramaturgia clássica, pior que o rompimento do tabu do incesto, só mesmo se este rompimento se der sem sofrimento, sem conseqüentes perda e purgação – isso sim é tabu de verdade. É isso que faz O Sopro No Coração. Não se trata de uma história em que o incesto provoca ou é provocado por um violento transtorno psíquico. A vida continua, e só resta rir. Em praticamente todos os outros exemplos que encontrarmos de tematização do incesto na ficção, teremos tramas em que o rompimento do tabu traz imenso sofrimento, traz uma ruptura definitiva com o relacionamento antes estabelecido – para lembrar de um exemplo marcante, dois anos antes Visconti fizera o seu Os Deuses Malditos. O Sopro no Coração transgride essa norma, o incesto rompe para evoluir, para conciliar. O filme consegue este feito bizarro, e no entanto muito natural: diante do rompimento do tabu, a conciliação é a maior transgressão – não custa lembrar que transgressão e rompimento de tabus são dois dos pontos centrais em grande parte dos filmes do realizador, Louis Malle.

Vale notar o encanto cinematográfico de Lea Massari (atriz de filmes como A Aventura de Antonioni e A Primeira Noite de Tranquilidade de Zurlini) como a italiana Clara, mãe de Laurent, assim como a fabulosa interpretação de Benoît Ferreux no papel principal (sua estréia no cinema), com um comportamento sempre remetendo a algo instintivo, não-planejado – é realmente incrível a divertida maneira que Laurent ataca as meninas, dobrando o pescoço e avançando de um jeito grosseiro, entre o desajeitado e o animalesco. Vale notar, sobretudo, que o filme tem uma vitalidade impressionante, uma incrível capacidade de reviver as experiências de Laurent, seja ouvindo o bebop de Charlie Parker (e como é boa uma trilha sonora com Bird Parker!), transando com putas, suportando a paquera de um padre mal-resolvido, seduzindo gatinhas no hotel, lendo tanto livros clássicos como libertinos ou vendo sua linda mamãezinha saindo do banho.

Texto publicado no folheto da sessão cineclube do Cinema Odeon em 11 de junho de 2003