07/07/2008

Ficciocrítica: Lucia e o sexo (2001)

Jorge Luís e Luciana tinham se conhecido cinco dias antes – esse era o primeiro encontro deles. Chegaram apressados ao cinema, eles já estavam atrasados para a sessão. Jorge Luís tinha comprado os ingressos ainda na véspera – durante o Festival de Cinema só valeria a pena sair de casa se não houvesse o risco de serem barrados por conta da lotação da sala, é um verdadeiro inferno conseguir ingressos em fins de semana para as sessões do Festival de Cinema. Foi ela quem sugeriu para ver justamente este filme, porque eles tinham conversado sobre Amantes do Círculo Polar quando se conheceram – ela ficou curiosa quando soube que ele adorava o filme, que o tio espanhol dela dizia ser muito bom. Jorge, na verdade, já havia pensado em Lucia e o Sexo, tanto que o listou entre sugestões possíveis, mas ainda ficava sem jeito de sugerir um filme com esse título.

Entraram no cinema no início do curta-metragem – e ele fingiu que gostou quando ela sugeriu que se sentassem bem no fundo do cinema, na penúltima fileira.

Ele riu algumas vezes durante o filme, enquanto olhava pra mão dela no braço da poltrona ainda tímido. Pensou em encostar sua mão na dela quando viu Lorenzo e Lucia ficarem juntos – mas aí começou uma longa sequência de cenas de sexo, e ele ficou sem jeito, com medo de assustar a menina. Ficou mais sem jeito ainda quando viu Lucia correr excitada para cima de um Lorenzo adormecido, provocada pelas histórias que ele havia escrito. Ficou sem jeito, mas ficou ainda mais afim de correr o risco. “Vou ter que tentar alguma coisa antes desse filme acabar”, foi o que pensou na hora. Mas e a coragem, cadê?

Foi aquela cor branca que o ajudou. Tinha alguma coisa diferente na luz daquela ilha, ele já tinha notado desde o início, e era alguma coisa encantadora. Quando Lucia corria com sua moto no meio de uma estrada que se perdia no céu branco, ele resolveu enfim enfiar sua mão por entre as dela. Tocou no punho, na palma, olhou para ela, ela olhou, depois sorriu. E ele colocou seus dedos entre os dela e começou a acariciar suas mãos.

***

Voltando ao sofá, já com o conquistado pedaço de torta no prato, Guilherme ouviu da sua tia: “E Lucia e o Sexo, esse você já viu?”. Já, já tinha visto, tinha visto no cinema Odeon, numa sessão na madrugada.

Por mais divertidas que sejam as maratonas da madrugada do cinema Odeon, é preciso reconhecer que assistir aos filmes pressupõe uma certa boa-vontade com elementos caóticos mais presentes e constantes que em sessões normais. Para se ter uma idéia, volta e meia a platéia ouve bem alto a música que toca do lado de fora da sala de exibição – basta que haja uma fresta aberta entre as portas. Além disso, pessoas conversam, dormem, bebem cerveja, divertem-se, enfim.

Guilherme comentou então da curtição que foi a sessão na noite da Cinelândia, uma sessão muito doida (o filme começou às duas da madrugada), uma sessão em que ele ficou se ligando mais nos climas, nos sons e nas imagens do filme que no enredos em si – e era desta forma que os segredos e encantos do filme pareciam se revelar, como ele aprendeu que são as sessões de análise modernas, em que o analista-espectador não deve prestar atenção no discurso do paciente-filme, mas só em suas sonoridades , entonações e engasgos.

Mas espera aí, desse modo você foge da história, foge do filme, foi o que a sua prima falou na hora pra contestar ele. E talvez ela estivesse certa – engraçado que ela nem tinha visto o filme ainda. Mas na hora ele nem prestou atenção e continuou a falar – era melhor isso que ter que ouvir as mesmas opiniões de sempre sobre Cidade de Deus, que ele vinha escutando já havia meia hora, acompanhadas por piadas racistas que seus tios faziam questão de lembrar. Pelo menos o assunto Lúcia e o Sexo era mais divertido – sendo assim, ele não pensou duas vezes e engatou um relato da diversão que foi a noitada no Odeon. Se faltasse assunto, talvez fosse o caso de começar a falar do outro filme do Julio Medem que ele tinha visto, Os Amantes do Círculo Polar. Era melhor manter a conversa em torno do assunto cinema, embora talvez lhe custasse alguma gozação começar a falar em “outros filmes do diretor”... Na hora, na verdade, ele estava lembrando de como olhava de vez em quando para os lados e para trás, para ver as pessoas assistindo ao filme – vinha uma luz branca da tela que iluminava o cinema inteiro. Falando de outras coisas enquanto pensava nisso, ele já estava se embolando um pouco com o que dizia, misturando um relato da farra no Odeon com idéias confusas que ele tinha sobre roteiros com descontinuidade temporal – foi quando sua tia Cláudia aproveitou para cortá-lo e contar um pouco da sessão em que viu o filme, uma sessão normal, num sábado à tarde, no cinema Paissandu.

***

Cláudia queria ser escritora quando era adolescente. Talvez por isso tenha achado tanta graça quando viu Lucia se declarar para Lorenzo – quando ela diz que, depois de ter lido seu livro, se apaixonou por ele. Cláudia lembrava que já tinha sentido coisa semelhante anos antes.

Ela fôra ao cinema com a Lu, uma amiga de longa data. Ela não contou para os sobrinhos, mas já havia alguns dias que ela estava saindo de casa somente para trabalhar. Era sábado e ela estava triste e preguiçosa quando a Lu conseguiu convencê-la a encarar um filminho.

Ela ficou hipnotizada. Durante alguns minutos ainda achou a música um pouco brega e insistente demais – mas logo esqueceu. Ficou encantada com a transa entre os desconhecidos Lorenzo e Elena. Sentiu o mesmo tesão de Lucia quando viu a estória de Belén com seu padrasto. Lembrou-se de casos não-vividos, vontades não-realizadas. Sentiu com Elena a dor de perder a filha. Pensou na idéia de romance, de novela, ficou fascinada com as idas e vindas da estória do filme, adorou a idéia das janelas – queria saber encontrar as janelas em sua vida. Vendo o filme, imaginava estórias para si. Saiu do cinema e convenceu a Lu de que valia a pena esticar a noite num bar no Jardim Botânico. E não se arrependeu.

Mas isso ela não iria contar para seus sobrinhos. Falou então bastante da beleza da fotografia e do enredo, e ficou bastante chateada com Guilherme, que não estava nem um pouco interessado no que ela dizia, parecia achar tudo bobagem. Bobo era ele.

***

O Baixo Gávea se torna um caos às segundas-feiras, mas é um lugar cheio de meninas bonitas. Certamente era para lá que deveriam rumar Julio e Rui depois de ver o filme. Eles se encontraram por acaso no início da sessão e combinaram de se falar ao final, uma vez que um gosta de sentar no fundo do cinema e o outro faz questão de ver o filme da terceira fileira em diante. Pela cara do amigo, Julio logo viu que ele não tinha gostado. Bem, era preciso pegar o ônibus, e até lá a conversa não iria fluir. “É brega!”, determinava Rui. “Vai se ferrar, só te respondo com um copo de chope na mão”, foi a única coisa que Julio podia dizer na hora. Dizer o quê? Que achou o filme lindo? Era melhor ter tempo para pensar em argumentos decentes...

E, no BG:

- É cafona!
- Aquele branco da tela, cara, aquilo é muito foda!
- É kitsch!
- Bicho, a estória é sobre contar estórias...
- Ridículo! Estorinha com buracos e janelas... fala sério!
- E o filme só tem gatinha...
- Ah, então é bom porque tem mulher gostosa? Então tudo bem, aí funciona...
- Não, cara, é bom porque seduz, porque cria tramas e fascina, porque é sobre o amor e é bonito...Porra, o que é aquele branco?!
- Saquei, é bonitinho... Além do mais, é ridículo isso de todo filme muderno agora ter descontinuidade temporal...
- Mas funciona, caramba!
- Pra quê, pra gente conhecer a Lucia e ao mesmo tempo o Sexo?
- Porque a trama funciona assim, pronto...
- Ah, tá!...
- Bicho, você não entendeu... O filme é cheio de sacanagem e é lindo... Sacou? É um filme safado que mulher vai adorar, manjou?
- Ridículo, filme pra pegar mulher, então...
- Tu fala isso porque não foi ao cinema com mulher.
- Nem você.
- Vou ver se ainda convenço uma hoje. Essa que tá entrando, por exemplo, será que se eu chamar ela topa? Com essa eu até caso
- Com essa eu até digo que o filme é bom.
- Cacete! Ela não vai querer saber de você, tu é chato pra caralho.

***

Bia já estava bem chateada por seu namorado ter visto o filme no cinema sem ela. Quando viu a caixa do DVD ao lado da tevê, na casa dele, resolveu que era isso que ela queria assistir. Mas estava com a janela errada, foi a desculpa dele. Como assim? Ele mostrou a capa do disco, e lá tinha um nome (full-screen) que queria dizer que a imagem do filme estava cortada. “Não é a mesma coisa”, disse ele, mas não adiantou – ela queria ver esse filme, e pronto!

E não é que o filme estava com tarjas? “Você não falou que estava cortado?”, e ele respondeu “É, a informação tá errada na caixa – erraram pra melhor, ainda bem!”.

Ela já estava chateada. Gostou muito do filme, mas ficou ainda mais chateada. “Por quê?”, e ela disse: “Você tinha que saber que eu ia gostar do filme!”, reclamou que era inaceitável ele não ter levado ela pra ver isso no cinema e ficou emburrada a noite inteira.

***

Lucas estava bem curioso para conferir Lucia e o Sexo. Viu quando seu pai trouxe o filme para casa, mas deixou para assistir de madrugada, quando todos estivessem dormindo – pensou que esse seria o tipo de filme que ele curtiria mais se visse sozinho.

Assistiu e se encantou. Mais do que com tesão, ele ficou apaixonado por Lucia, por Elena, por Belén. Quis saber o que os outros tinham dito do filme. Abriu o computador e pesquisou textos em português no Google. Gostou um pouco de uns, não gostou nem um pouco de outros, mas nenhum parecia ter dito tudo aquilo que ele achava que tinha que dizer.

Resolveu escrever o seu, então. Quando viu, estava embaralhando tudo na sua cabeça e no texto também. Aí conseguiu tirar um pedaço que, separado, parecia ser um ensaio pronto sobre o filme. Gostou, mexeu só um pouquinho e publicou no jornal do colégio. Acabou ficando amigo do pessoal do jornal que também curte cinema, e agora deve fazer parte da turma que vai organizar um cineclube na escola.

Quanto ao resto do texto, não foi abandonado, ainda está tomando forma, virou um monte de coisas ao mesmo tempo, divagações, estórias, comentários, idéias mil. De vez em quando ele escreve mais um pouco.



Texto publicado pela primeira vez em fevereiro de 2003