09/07/2008

Nós (cinema brazuca em situação pós-colonial)

“A quem interessa?” Em qualquer investigação policial, é esta a primeira questão que se coloca: a quem interessa o crime? A quem interessa o cinema brasileiro? A questão atinge um problema real, mas esconde um embuste: ela parte da premissa de que é possível totalizar o que seja “o cinema brasileiro.[1] Mais honesto será desdobrar a pergunta em várias: Quantos “cinemas brasileiros” existem? Quais deles são interessantes? E para quem o são? Por que só alguns destes cinemas brasileiros são interessantes? E por que os outros não são? Quem quer que formule estas questões precisa reconhecer seu lugar dentro delas – se não há um único cinema brasileiro, muito menos há um único público.

Há uma velha provocação bem conhecida em favor deste conjunto de filmes impreciso e fragmentado, o “cinema brasileiro” – uma frase atribuída ao crítico, roteirista, historiador e teórico de cinema Paulo Emilio Salles Gomes: “mesmo o pior filme brasileiro é mais interessante do que o melhor filme estrangeiro”. O texto de Bernardo Oliveira presente nesse livro já havia se referido a essa provocação – que, se nunca chegou a ser formulada num slogan tão simples, é plenamente coerente com os textos de Paulo Emilio posteriores a 1960. Isto é evidente, por exemplo, num trecho (já citado pelo Bernardo) do ensaio “Explicapresenta”[2]:

O interesse aflito pelas novidades de fora apenas mascara o consumo passivo de produtos acabados, (…) por pior que seja o filme o diálogo com ele possui o mérito de existir e pode ter conseqüências.

E num outro texto, “Cinema brasileiro na universidade” [3] (publicado inicialmente com o título “A alegria do mau filme brasileiro”), ao comentar Pensionato de mulheres (segundo ele, um filme que, à primeira vista e com certa dose de preconceito, era considerado sério candidato à categoria “filme brasileiro inteiramente ruim”), Paulo Emilio termina com a certeza de que,

em suma, emana da análise de um mau filme brasileiro uma alegria de entendimento que o consumo da Arte de um Bergman, por exemplo, não proporciona a um espectador brasileiro.

Um belo slogan, estrategicamente necessário em algumas ocasiões, com certeza. Por exemplo, para quem pretender argumentar em favor da presença de algum – qualquer um – cinema brasileiro nos momentos em que sua mera existência estiver em perigo. Não se trata de um simples apelo ao sentimento nacionalista tradicional (cuja variante rasa sugere que os filmes devam ser vistos para “dar uma força ao cinema brasileiro”), mas sim de uma proposta de apreensão de cinema – segundo a qual não só o cinema próximo nos permite, presumidamente, uma compreensão mais ampla de suas questões, como também seus sentidos e falhas nos dizem respeito, mais do que os produtos de sociedades distantes.

Mas é preciso considerar em que medida esta idéia seria mais do que um slogan de uma campanha politicamente defensável. O que há de verdadeiro e de falso na afirmação? E o que há de absoluto e de relativo? Ou, sendo mais exato: o que há de atual e necessário na frase de Paulo Emilio? Em que medida ela pode ter envelhecido, tornando-se necessário voltar a discuti-la, não por estar esquecida – mas, ao contrário, por servir de base para um discurso engessador?

Portanto, é preciso compreender a força e as fraquezas desta idéia: de que maneira qualquer filme brasileiro pode ser, em tese, mais interessante do que qualquer filme estrangeiro? Há um equívoco comum na compreensão banal da frase: esta valorização do cinema nacional não pressupõe qualidade, mas reconhecimento de significados em nível maior do que se tem em filmes estrangeiros – é esta certa alegria de entendimento mencionada anteriormente. A rigor, não se defendia que os filmes brasileiros fossem qualitativamente melhores, mas que nós, espectadores brasileiros, poderíamos apreender deles mais significados do que apreendemos de filmes falados em outras línguas e ambientados em outras comunidades. Não por acaso, um dos argumentos centrais girava em torno da compreensão dos diálogos entre personagens. Num outro texto (“A ideologia da crítica brasileira e o problema do diálogo cinematográfico”[4]), ao observar que, por não saber sueco, não compreende as motivações da pronúncia do ator Max Von Sydow num filme de Ingmar Bergman, Paulo Emilio faz um comentário entre parênteses:

Não sei se o conhecimento da língua sueca me faria gostar mais, ou menos, da obra de Bergman. Afirmo simplesmente que recebo menos do que existe, e que nada me permite afirmar que haja maior significado naquilo que compreendo do que naquilo que ignoro.

É na compreensão da riqueza de significados que se baseia a defesa feita pelo crítico. Antes que um certo simplismo confunda esta defesa com uma avaliação geral de “qualidade”, cabe procurar nos textos de Paulo Emilio os muitos comentários sobre defeitos ou falhas dos filmes citados. Mas o caso é que mesmo as piores obras devem ser analisadas – porque até mesmo os piores filmes nos revelam algo de nossa sociedade, como ele afirmava em “Explicapresenta”:

O filme ruim, pelo simples fato de emanar de nossa sociedade, tem a ver com todos nós, e adquire muitas vezes uma função reveladora. Abordar o cinema brasileiro de má qualidade implica numa luta tenaz contra o tédio mas é raro que o esforço não seja compensado. O subdesenvolvimento é fastidioso, mas sua consciência é criativa.

Mesmo a representação mais tosca – ou sobretudo a representação mais tosca – é uma representação crítica do subdesenvolvimento da sociedade. Essa idéia atravessa seus textos mais célebres: em “Uma situação colonial?”,[5] de 1960, ele aponta que

O denominador comum de todas as atividades relacionadas com o cinema é em nosso país a mediocridade. A indústria, as cinematecas, o comércio, os clubes de cinema, os laboratórios, a crítica, a legislação, os quadros técnicos e artísticos, o público e tudo mais que eventualmente não esteja incluído nesta enumeração mas que se relacione com o cinema no Brasil, apresenta a marca cruel do subdesenvolvimento.

E treze anos depois, em Cinema: trajetória no subdesenvolvimento,[6] o diagnóstico é de que

em cinema o subdesenvolvimento não é uma etapa, um estágio, mas um estado. (...) O cinema é incapaz de encontrar dentro de si próprio energias que lhe permitam escapar à condenação do subdesenvolvimento, mesmo quando uma conjuntura particularmente favorável suscita uma expansão na fabricação de filmes.

À parte a percepção aguda da fragilidade do cenário mesmo quando ocorre “uma expansão na fabricação de filmes” (percepção válida no período de 1995 a 2005, por exemplo), o que me parece mais interessante aqui é a relação que se estabelece com clareza entre o proveito que se pode tirar de um filme e as falhas apresentadas pelas produções (com todos os seus equívocos ou limitações) – cuja comparação com o modelo proveniente do capitalismo internacional evidencia nossos traços de subdesenvolvimento social. Essa premissa justifica a busca de uma relação “criativa” com as representações do subdesenvolvimento próprio da sociedade brasileira.


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Todos estes argumentos mantêm seu sentido se utilizados em outros países de produção cinematográfica subdesenvolvida (ou seja, que exista e, no entanto, seja marginal no sistema de exibição local). Como premissas, as idéias de Paulo Emilio ainda são fortes; no entanto, podem ser encampadas por um discurso dominante e arcaico, com suas qualidades e vícios. De fato, uma determinada elite atual, de certa maneira, encampa os slogans paulemilianos para se sustentar. Mas isso de modo algum apaga o brilho ou nega o sentido de seus argumentos. É como ele diz de Humberto Mauro, Mário Peixoto e Lima Barreto no ensaio Mauro e dois outros grandes:[7]

A mania de grandeza não é neles traço negativo de caráter, e sim arma para combater a frustração a que se vêem até hoje condenados todos os artistas e artesãos do cinema brasileiro. A sua megalomania é na verdade grito de protesto.


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Certamente até mesmo os piores filmes brasileiros podem nos ser muito interessantes – mas a primeira questão é evidente e antiga: quem somos nós? Qual é o espectador a que isto se refere? Mas vamos deixar essa questão para mais à frente. Em seguida, há a questão crítica: a que filmes estaríamos nos referindo como piores? Seriam aqueles com produção mais precária? Ou seriam os moralmente questionáveis? Ou talvez aqueles cuja criação cinematográfica parece estar mais engessada e menos inspirada? Ou não podem ser aqueles que, de forma evidente, só existem para manter um status quo do mercado de produção, para favorecer um grupo local instituído (ou ocupante, para usar o vocabulário paulemiliano)? Mesmo filmes de um de um sistema ocupante local devem ser defendidos por serem interessantes?

Estratégia é a palavra-chave dessa defesa da produção brasileira de cinema. Tal atitude é necessária em defesa do espaço de representação nacional – e, se sua argumentação pode ser usada em favor de qualquer forma de representação feita no país, com ela o crítico pretendia valorizar sobretudo os filmes mais populares, aqueles considerados os mais grosseiros. É o que ocorre, por exemplo, no já citado texto sobre Pensionato de mulheres. Não é por acaso que em Cinema: trajetória no subdesenvolvimento são usados termos tão claros e incômodos como ocupado e ocupante – trata-se da velha questão da dominação cultural. Paulo Emilio usou sua argumentação para apontar o interesse de filmes que representavam universos sociais e culturais não-dominantes. Como toda atitude estratégica, sua escolha está diretamente relacionada às circunstâncias.

Uma vez instituído qualquer formato de cinema no país, é preciso perceber seus vícios – e é preciso defender os outros cinemas brasileiros. Em determinados momentos, é preciso escolher os cinemas que vamos defender. Caso contrário, alguns cinemas brasileiros podem acabar engolindo o espaço de outros, e podem defender sua ação justamente com uma compreensão enviesada do discurso paulemiliano, ao alegar que sua mera existência como representação nacional justifica suas falhas e favorecimentos. Pudemos ver isto acontecendo ao longo dos últimos dez anos: um certo cinema pretensamente bem-feito tomou verbas e travou o caminho de outros cinemas. E, em casos reincidentes, este cinema bem-feito gerou alguns dos piores filmes da década.

Certamente estes produtos de uma elite cinematográfica representaram, a seu modo, a nossa tradição colonial – isto ficou evidente também nas constantes reações a possíveis mudanças no esquema estabelecido, nestas atitudes coronelistas de alguns produtores e realizadores que se arrogavam em falar em nome de um único “cinema brasileiro”. No entanto, o retrato oferecido pela própria existência de um cinema caríssimo restrito a um pequeno grupo, ainda que seja um retrato cruel, não se justifica por isso: trata-se, antes de mais nada, de uma situação que precisa ser transformada.
É a este uso nocivo que as idéias de Paulo Emilio vêm se prestando – e por isso precisam ser repensadas, delimitadas. Elas não são válidas absolutamente para todo o cinema brasileiro, e sim de forma relativa, a partir de certas circunstâncias condicionantes. Circunstâncias em que não haja, como se disse, uma produção de cinema mantida em favor de um segmento local socialmente dominante, ocupante.


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No centro da argumentação de Paulo Emilio Salles Gomes há um silêncio idêntico ao da nossa pergunta inicial: assim como na questão “a quem interessa o cinema brasileiro?”, sua lógica depende de que o conceito de nação mantenha-se absoluto, supremo e inquestionável como definição de comunidade e, portanto, como medida da possibilidade de compreensão dos signos cinematográficos. Se levada a seu extremo, seria uma premissa tão etnocêntrica quanto aquela do pretenso cosmopolitismo de uma certa elite nacional a que se contrapõe – e cuja lógica é invertida por estratégia, para tomar a atitude oposta, valorizando a cultura nativa. Como já foi apontado sobre outras apologias da “representação nacional”, um certo romantismo folclórico e o nacionalismo político se juntaram nessa atitude modernista de buscar construir uma imagem de país a partir da produção de filmes.

Modernista à moda daqueles que buscavam raízes desse país ainda sem caráter próprio – pois há uma oposição entre as idéias deste “discípulo” crítico de Oswald de Andrade e a “lei do antropófago” que este apresentou no Manifesto da Antropofagia: só me interessa o que não é meu. Alimentar-se da produção da metrópole vai funcionar como premissa da criação artística; já o interesse pela produção local advém de um esforço de compreensão crítica das características da cultura local.

Esta valorização das representações nacionais, como se sabe, era estrategicamente necessária e urgente. O mercado brasileiro de exibição de filmes, com raros momentos de exceção, sempre esteve ocupado pelo produto norte-americano, em grande medida devido à falta de legislação eficiente de apoio – e, evidentemente, devido ao desinteresse predominante em grande parte do público de cinema e em grande parte da elite social da população, de modo geral. Diante deste quadro, a tarefa mais importante para um crítico interessado era criar um contraponto à mentalidade dominante de que os filmes nacionais, sem exceção, são inferiores aos produtos da indústria norte-americana – caso contrário, este crítico estaria condenado a representar o mero repetidor local, mais ou menos sofisticado, das avaliações artísticas feitas nos países dominantes. Naquele momento, era urgente defender nossa “incapacidade criativa de copiar” como fonte de riqueza cultural – nossa necessária antropofagia cultural. Era a resposta possível à convicção de nossas elites de que o engrandecimento cultural se daria pela proximidade com a produção cultural dos países desenvolvidos – esta noção de que é preciso estar sempre “atualizado” (para usar o termo de Darcy Ribeiro),[8] ou, diríamos nos dias de hoje, “antenado”. Por isso Paulo Emilio notava que

não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro.[9]

Mas eu e o leitor sabemos, tanto quanto já sabia o escritor, que antes de sermos brasileiros somos humanos. Até que ponto e em que momentos devemos encampar essa aglutinação nacionalista deste “nós mesmos”, os nascidos no Brasil? A escolha evidentemente não se reduz à ideologia, ou terminaria por se assemelhar a uma espécie de fé, um fundamentalismo brasilianista. Essa questão da cultura brasileira já foi discutida longamente em outros textos; no caso do cinema, há dez anos Jean-Claude Bernardet apontava como lhe parecia ser mais interessante, sob os aspectos crítico e pedagógico, relacionar as produções brasileiras não através da continuidade de ciclos, mas a partir das relações com as cinematografias internacionais de cada época.[10]

Não me interessa aqui negar a existência dos chamados espíritos nacionais, estas características tradicionais de cada povo – não duvido de que nós brasileiros as tenhamos e de que elas sejam facilmente identificáveis por olhares mais atentos. Como as bruxas no ditado espanhol, podemos até não crer na validade destes espíritos nacionais, mas isso não os impede de, a seu modo, existir. No entanto, se os argumentos defendem as relações de reconhecimento que a arte pode provocar, desfavorecendo as de estranhamento, não é difícil contrapor apontando diversos caminhos de aproximação entre espectador e obra externos à comunidade nacional – não são poucos os filmes estrangeiros que permitem a pessoas diversas reconhecer em suas tramas situações próximas às de seu cotidiano, por exemplo.

Do mesmo modo, os estranhamentos internos da sociedade brasileira, ao serem constatados nos filmes, podem se mostrar tão inconciliáveis quanto os provocados pelas culturas mais exóticas ao nosso universo. Qual é a relação de reconhecimento que se espera em 2005 de um espectador acreano que porventura nunca tenha saído de sua terra diante de um filme retratando a urbanidade paulistana? O mesmo valeria em sentido inverso, caso viesse a funcionar a proposta de regionalização da produção: em que medida os graus de estranhamento e reconhecimento seriam menores, para um morador de São Paulo, entre um filme acreano e um passado na Ásia?

Há, é claro, a questão da compreensão da língua – embora as pronúncias e gírias criem problemas eventuais (algo que leva, por exemplo, Eduardo Coutinho a inserir legendas em trechos de seus filmes). Mas, sobretudo, a imagem pode criar aquela “representação nacional” já mencionada – o espectador de ambos os lugares pode partir do reconhecimento de que, apesar de toda a distância e da diferença de códigos que possa haver entre o seu cotidiano e a representação na tela, “aquilo é Brasil”. Assim talvez se faça um contraponto, através de uma prazerosa sensação pessoal de construir imaginariamente sua nação, à convicção geral acerca da superioridade cultural do modelo estrangeiro.

No entanto, como é bem sabido, não é possível dissociar a produção cultural de um país pós-colonial e subdesenvolvido da produção internacional dominante – e, se uma vez Paulo Emilio presumiu que “o povo foi protegido da influência cultural pela sua própria ignorância”, este argumento vem perdendo todo o seu sentido a cada dia. Os filmes produzidos em oficinas nas periferias freqüentemente mostram a forte influência que seus realizadores tiveram do cinema de gênero, sobretudo o norte-americano, disponível nas redes de televisão e locadoras, assim como as músicas das periferias assimilaram (de forma criativa mas sem “incapacidade”, graças à tecnologia e ao conceito de sampler) as batidas e sonoridades externas. Na década de Cidade de Deus e deste crescente cosmopolitismo do pobre,[11] torna-se cada vez mais difícil apontar exemplos desta “incapacidade criativa”. As expressões do universo cultural ocupado são cada vez mais antropofágicas e menos originais, cada vez mais “alternativas” e menos “incapazes” – e, dessa forma, a lei de Oswald em certas ocasiões pode ser estrategicamente mais valiosa do que os interesses paulemilianos.

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A hiper-valorização do critério nacionalista, estrategicamente necessária, usou como tática apresentar-se como desenvolvimento natural do sistema de valores a que se contrapunha. Nosso aprendizado colonial não se alterou ao longo do último século: nossa sociedade é formada pelo cinema norte-americano desde a infância. Nesse aspecto chegamos perto da totalidade: podem-se citar os nomes dos realizadores e críticos conhecidos, seja o de Adhemar Gonzaga, Paulo Emilio, Alex Viany, Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha ou quase todos os cineastas atualmente em atividade no país; pode-se citar também o nome dos passantes nas esquinas, dos ciclistas; dos gerentes das salas de cinema, dos produtores e técnicos – praticamente todos os brasileiros começam a conhecer o cinema através dos filmes norte-americanos (hoje em dia, através das redes de televisão, que quase não exibem filmes brasileiros). Sempre foi comum que este predomínio se traduzisse em convicção de inferioridade – e é bem conhecida a carga de preconceito enfrentada pelas produções brasileiras de cinema de várias épocas. Como contraposição, sua defesa precisou então se sustentar pelo choque, opondo-se por completo ao preconceito da sociedade: era preciso compreender a produção artística sobretudo como manifestação cultural. Portanto, para aqueles que se interessam pelas questões locais e nacionais, pelo próprio cotidiano, em suma, nem o mais bem-feito nem o mais “artístico” dos filmes estrangeiros chegariam aos pés da riqueza dos nossos filmes, sempre desvalorizados pela elite local.

Este argumento estratégico foi defendido por Paulo Emilio com uma atitude de posicionamento “na linha de frente” (para lembrar o título de uma das coletâneas de seus artigos) – é comum em seus textos que ele use a si próprio como exemplo de postura inicialmente equivocada. O truque é simples: quando o crítico diz que teve uma determinada convicção e dá argumentos para mostrar que estava errado, consegue colocar em xeque todos os que pretenderem argumentar em sentido próximo ao de sua posição “antiga” sem soar impositivo. Penitencia-se por ter-se equivocado e com isso pode apontar os equívocos alheios semelhantes. “Meu caso pessoal é exemplar e deplorável”, comenta ele em seu último texto escrito, “Festejo muito pessoal”,[12] lembrando de sua própria juventude ao falar do desinteresse quase absoluto da sociedade pelo cinema brasileiro. Mascarada que seja, e por mais que diminua eventualmente, essa falta de interesse ainda se mostra evidente na nossa sociedade. Ela é notável, por exemplo, nas diferenças entre as manifestações a respeito de questões como a distribuição e visibilidade dos filmes (discussão silenciada, sobretudo com relação à exibição em redes televisivas), as suas indicações a prêmios no exterior (sempre acompanhadas de uma certa euforia midiática) ou a regulamentação do mercado de audiovisual, cujas tentativas são ocasionais e inconstantes, atoladas nos enfrentamentos com redes de televisão, exibidores, concorrentes externos e, justamente, por um certo sistema de castas nacional.

É preciso haver interesse pela produção nativa, isso é muito natural. Somente depois de conhecer é que se pode escolher. E em certo momento é preciso escolher. Devido à sabida alta toxidade, não é possível defender lixo industrial.


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Relembrei todas essas idéias de Paulo Emilio para tentar falar do cinema atual. É sempre um risco falar do momento imediato de uma produção próxima, sem distância, como esse livro se propôs a fazer. E discutir o cinema brasileiro é difícil para todos nós. É o velho problema de conseguir lidar com o reconhecimento e o confronto com algo intimamente próximo.

É fácil pensar no contraponto das perspectivas ditas multiculturalistas. Não tenho dúvidas de que, sem se preocupar com nacionalidade, uma mulher poderia dizer que “o pior filme de uma mulher é mais interessante que o melhor filme feito por um homem”, ou um negro poderia dizer que “o pior filme de um negro é mais interessante que o melhor filme feito por um branco” – citando aqui duas “minorias” que, mesmo não o sendo numericamente, tiveram que se organizar coletivamente para não se manter à margem da cultura dominante. Mas, embora esteja presente, não é esta a questão principal. A questão principal gira em torno da relação que o cinema nativo (e, na verdade, toda nossa produção cultural) pode estabelecer conosco – este difícil amor por uma produção problemática e próxima – e das relações específicas que os filmes desse período recente criaram nos seus melhores e piores momentos.


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Não é por acaso que alguns possíveis herdeiros de uma tradição paulemiliana escolhem específicos cinemas brasileiros em detrimento de outros. É o que faz Bernardo Oliveira com os filmes de oficinas. É também o que faz um pesquisador como Remier Lion com sua mostra “Cinema brasileiro: a vergonha de uma nação”, ao optar pelas produções de gênero, escancaradamente comerciais, feitas sobretudo nos anos 1960 e 70. Outros tantos estudiosos e apaixonados fazem o mesmo, escolhendo como favoritos as chanchadas, os filmes cinema-novistas ou os udigrudis. Elege-se um ou outro tipo determinado de produção como prova de uma certa força do cinema brasileiro, que a fraqueza de outras produções recentes obscurece mas não nega.

No entanto, o panorama geral da produção e exibição não nos permite mais uma defesa irrestrita de todos os filmes produzidos. Na situação atual, em meio a bons e maus filmes, há cinemas engasgados, travados, e há cinemas mantidos por um esquema viciado. É preciso combater este cinema viciado justamente em nome da pluralidade.

No prefácio de Cinema: trajetória no subdesenvolvimento, Zulmira Tavares transcreve um certo comentário de Paulo Emilio acerca do filme A estrela sobe:

Admito que A estrela sobe seja um produto que possa facilmente ser identificado com um bom produto norte-americano, mas não fica só nisso, (...) penso que as mulheres brasileiras se caracterizam por uma certa tonalidade verde – que, aliás, muito me atrai – e esta tonalidade me veio de repente, assim, surgiu acentuada no filme. Por causa dessas mulheres verdes (...) eu vou assistir ainda muitas outras vezes A estrela sobe.

Aqui posso apontar o problema grave, o qual, deve-se deixar claro, não está na idiossincrasia das “mulheres verdes”. O bom humor do comentário, muito bem-vindo, pode no entanto dar margem a interpretações equivocadas – talvez a defesa feita pelo crítico da relação forte que ele pode estabelecer com o filme possa ser confundida com mera piada, mas não o é. O valor dado à relação entre a obra e a memória pessoal do espectador é plenamente coerente, não é nem um pouco desprovido de sentido. No entanto, há um problema: o filme em si, que poderia “facilmente ser identificado com um bom produto norte-americano”.

É apenas uma curiosidade que o filme lembrado seja A estrela sobe, que não é mau filme. Mas este quase-bom-produto-internacional atualmente é nocivo. Talvez não fosse em outros momentos, talvez não tenha sido – mas agora, no atual sistema vigente, é. Explico o porquê de notar esta certa curiosidade: o mesmo realizador de A estrela sobe, Bruno Barreto, apresentou nessa década O que é isso, companheiro?, Bossa nova e O casamento de Romeu e Julieta. À parte o problema de que a feitura do “bom produto comercial” sempre se manteve com patrocínio de incentivos fiscais, há que se notar que estes filmes são de certa forma a ponta, o mais alto nível de uma certa casta que se estabeleceu na produção cinematográfica brasileira. Embora muitos dos curtas-metragens, feitos às centenas, sejam realmente bacanas, o sustento financeiro é dado às grandes produções de alguns nomes tradicionais. E os filmes de Bruno Barreto se destacam entre os elefantes brancos por conta de seu apelo e do bom artesanato quase sempre presente. São filmes que têm público suficiente para se manter sem incentivo, ao contrário de outros realizadores de filmes pretensamente comerciais (seu irmão Fábio Barreto, Paulo Thiago e Sérgio Resende em seus filmes recentes, por exemplo). Mas, sobretudo, são filmes feitos ambicionando uma certa “qualidade internacional” que de certo modo ressoa à Vera Cruz, como já se disse no texto que abre este livro. (Vale notar, também, que Barreto realizou dois filmes nos EUA neste período.)

E o que tivemos desta pretensa qualidade internacional? Em O que é isso, companheiro? tivemos um filme que vilanizou o líder esquerdista de origem operária (recalcado por isso), que se emocionou com os dilemas éticos e amorosos de um torturador, que enxergou os seqüestradores como um bando de trapalhões e o embaixador norte-americano como um herói cheio de bom-senso – tivemos portanto um filme com uma visão “imparcial”, segundo uma declaração de seu produtor. Talvez O que é isso, companheiro? (que concorreu ao Oscar com o título Four days in September) pudesse ser facilmente identificado com um bom produto norte-americano, mas não tem mulher verde que o redima.[13] O mais torpe filme brasileiro pode ser muito pior do que um mau filme estrangeiro.


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O ator Paulo José cunhou há alguns anos uma curiosa e bela frase: “o Brasil ainda faz os melhores filmes brasileiros do mundo”.[14] No entanto, se é preciso escolher quais são os cinemas brasileiros que realmente “nos interessam”, quais são os “melhores filmes brasileiros do mundo”, o problema está nestes “nós”. O leitor sempre terá que, ao mesmo tempo, desconfiar e se filiar a este pronome, porque o redator sempre fala de dentro, inevitavelmente envolvido pelo universo do filme e pela relação que ele estabelece com seu cotidiano e com suas perspectivas pessoais – caso não aja assim, o redator simplesmente não estará falando de um cinema nacional e sim de um cinema igual aos outros. Como espectador brasileiro do filme brasileiro, só posso fazer uma tentativa de compreender de dentro. Não me parece possível obter uma visão neutra, objetiva e imparcial sobretudo quando lido com o cinema próximo, nessa relação de afetos e ressentimentos. Recentemente, duas crônicas publicadas na Contracampo trataram destes dois aspectos, uma de Eduardo Valente, que falava da sua relação com os filmes brasileiros apresentados durante o Festival de Cannes, e outra de Guilherme Sarmiento, sobre o ressentimento tradicionalmente presente no diálogo entre crítica e produção no Brasil.[15]
E, levada mais à frente, a máxima de Paulo Emilio me leva a imaginar que não haverá cinema mais rico de sentidos do que o extremamente próximo, aquele que me diz respeito cotidianamente. Mesmo o pior filme feito por quem me é próximo pode ser mais interessante do que o melhor filme de um desconhecido...

(É uma velha tradição do cinema brasileiro a relação problemática com as patotas, as igrejinhas. No entanto, é preciso compreender as razões e os limites da crítica ressentida: é vital a aglutinação que, a partir de amizades e idéias comuns, possibilita produções e movimentos. A inexistência de grupos, coletivos, movimentos, gerações ou o que se pretender chamar de patotas é sinal de indigência. Por outro lado, é claro que esta união se torna nociva no contexto geral tão logo evolui para um esquema de favorecimento de um grupo em detrimento de outros.)

Acredito que seja preciso defender este cinema extremamente próximo, e cabe ao leitor pôr em perspectiva as escolhas do crítico. Que, por minha vez, cometeria grave equívoco caso me pretendesse objetivo – mas posso, ao menos, tentar perceber as relações entre meus afetos imediatos e as questões relevantes para este cinema brasileiro que passa na janela. Mesmo que a janela esteja errada e eu enxergue um microfone que não faz parte do filme – e essa imagem guarda uma curiosa relação com o cinema próximo, uma vez que, ao vermos este cinema, enxergamos naturalmente uma série de aspectos que, na realidade, não fazem parte do filme. Falar do cinema próximo é, portanto, saber que falo do filme e também do que está próximo ao filme – de certa forma, é quase uma compreensão pelo tato.

É necessário fazer escolhas e não ter pudor de tentar apontar as falhas, os equívocos, sobretudo porque é muito difícil discutir o cinema brasileiro. Nisso meu caso pessoal é exemplar e deplorável... Nunca me foi tarefa fácil ou agradável apontar falhas, e sei que não sou o único. Não se trata de mero compadrio local, mas do receio de ser injusto no julgamento diante de um gigantesco trabalho alheio (afinal, mesmo os piores filmes são resultado de grandes esforços coletivos).

Sei que não sou caso único, como disse, e tive nova oportunidade de constatar isso durante a feitura das entrevistas incluídas neste livro. Notei, por exemplo, que entre os cineastas há quem prefira não se manifestar acerca do tema cinema brasileiro. Se o leitor me fizer o favor de ler isso menos como relato e mais como recurso narrativo, sugiro que imagine inclusive casos de gente que, depois de conversar sobre o tema, não se sentiu à vontade para tornar publicas suas opiniões. Atitude inteiramente defensável, já que não seriam as palavras de um ou outro profissional reconhecido que poderiam alterar um sistema cheio de problemas, e as palavras de gente conhecida sempre podem ganhar um peso desproporcional. Mas isso me revelou com clareza (mais uma vez?) como é difícil lidar com a produção brasileira quando estamos inseridos nela, como já tinham me lembrado os textos que comentei anteriormente dos amigos Eduardo e Guilherme.

E é preciso superar este pudor, caso contrário um certo tipo de filme pode se tornar predominante no cinema brasileiro. É preciso atacar este cinema bem-feito de alto orçamento da mesma forma que é preciso atacar os funis e os represamentos da produção brasileira nas salas de cinema e televisão. Porque há cinemas represados e cinemas a serem efetivamente defendidos: o cinema dos mestres; o cinema urgente, que crie; e, é claro, o cinema extremamente próximo.


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Mas me preocupa uma certa tendência de enquadrar em certos clichês todos os focos de falhas, travas e limitações. Afinal, o cinema brasileiro nestes anos recentes teve momentos fortíssimos em certas obras, em meio às poucas chances dadas aos muitos estreantes e aos esquemas predominantes entre os veteranos do mercado. Dentro das limitações trazidas por esta pretensa diversidade, é possível encontrar jóias tanto em alguns dos formatos que a década viabilizou como em outros que ela praticamente esgoelou. Se procurarmos em seus diversos espaços, a evidência é que até em alguns formatos engessados houve filmes de interesse considerável. Ou seja, não faz sentido pretender apontar os “caminhos certos” a partir de estereótipos e clichês redutores.

Observando, por exemplo, um caminho muito comentado: este chamado “boom de documentários” certamente funciona como ótimo chamariz e como clichê crítico, mas, em meio a diversos filmes problemáticos (como Barra 68, de Vladimir Carvalho, com sua narração em off bastante questionável) ou preguiçosos e vampirizantes (como no retrato folclorizado feito em Glauber o filme, labirinto do Brasil, de Silvio Tendler), sem dúvida podemos encontrar muitos bons filmes, alguns especialmente marcantes. Filmes como O prisioneiro da grade de ferro, estréia de Paulo Sacramento, já bastante comentado neste livro; Onde a coruja dorme, média-metragem de Márcia Derraik e Simplício Neto; Nelson Freire e Entreatos, de João Salles. E o cinema de Eduardo Coutinho,que de certa forma teve nestes dez anos seu período de florescimento tardio.

Os filmes de Coutinho neste período (Santo Forte, Babilônia 2000, Edifício Master e Peões) fizeram dele um caso único de produção contínua e consagração de um veterano nesta década. Trata-se de um caso marcante e especialmente influente, ainda que esta influência nem sempre tenha sido bem digerida. Mas não é por acaso que os filmes de Coutinho provocaram tanto interesse da parte de alguns. Com o rigor estabelecido nas regras dos recursos cênicos e narrativos, Coutinho definiu com clareza seu papel para o espectador, fazendo-o participar da compreensão do imaginário dos entrevistados. Não lhe interessou o mundo dos fatos e das coisas, e sim o mundo das pessoas, das vozes, das compreensões de mundo. Nos filmes que levaram a assinatura de Eduardo Coutinho, ele foi responsável pelas idéias claras de cena e procedimentos, além de cuidar do encadeamento, mas sua construção do imaginário consegue deixar evidente que ela depende das vozes e dos ouvidos dos outros. Os filmes se constróem nos mundos de seus entrevistados/personagens e nas suas razões – as crenças em Santo Forte, as expectativas em Babilônia 2000, as histórias cotidianas em Edifício Master, a memória em Peões. O interesse é justamente por estes relatos em torno do imaginário: são documentários nos quais o que interessa são as histórias, não os fatos.

Se os filmes de Coutinho, de certa maneira, pareceram se manter em um plano diferente das questões que preocupavam os outros documentaristas, os de Nelson Pereira dos Santos parecem ter encontrado soluções claras e simples para várias destas questões. Meu cumpadre Zé Kéti, como muitos outros do período, foi um filme afetivo e pessoal sobre um personagem próximo e/ou mítico – e nisso o filme tomou posição clara, ao se apresentar como uma homenagem de muitos a um amigo que faleceu. O filme fez o mesmo com relação à interpretação para a câmera dos personagens do documentário: eles cantam para ela. Finalmente, o curta-metragem deixa sempre claro que se trata, ao mesmo tempo, de uma homenagem em filme a Zé Kéti e do registro desta homenagem, que culmina numa bela feijoada, compartilhada pelo diretor. Por sua vez, os dois filmes Raízes do Brasil trouxeram uma perspectiva propositadamente inconclusa no aspecto de construção de personagem histórico, um problema tradicional do cinema documental. O personagem Sérgio Buarque de Hollanda, retratado oralmente em sua vida familiar e sua trajetória como escritor – ou seja, na esfera íntima e na esfera pública –, não é nunca delineado por completo. No fim das contas, ele se constrói num espaço vazio e imaginário entre estas diferentes esferas de memória, sendo, antes de mais nada, uma provocação.

Ainda dentro dos formatos viabilizados pelas circunstâncias, vale lembrar os acertos da fase inicial das leis de incentivo, comumente tratada com desprezo por seus vícios bem conhecidos. De um período de alguns filmes muito caros, tivemos alguns filmes realmente fortes como Amélia, A ostra e o vento, Dois Córregos, Estorvo, todos possibilitados pelas leis de incentivo. Com todos os efeitos nefastos que podem ser apontados, estas leis abriram caminho para diversos filmes de qualidade variada, como notou Sara Silveira na entrevista publicada neste livro. Os dois maiores acontecimentos sociais recentes do cinema brasileiro– Carandiru e Cidade de Deus –, graças aos quais, por breves dias, ele escapou da condição de gueto, foram ambos sustentados por leis de incentivo.

Ou seja, a questão não se resume a considerar definições vagas como “documentários”, “filmes históricos” ou “filmes das leis de incentivos” como os problemas a serem atacados. O mesmo pode ser dito dos chamados filmes “comerciais” ou “industriais”, aqueles co-produzidos pela Globofilmes e/ou produzidos pelos produtores mais conhecidos. Mesmo considerando que um sistema de organização da produção diferente do que se estabeleceu deva ser defendido e que, de fato, uma grande parte destes filmes caros resultou em filmes muito pouco interessantes – a imensa maioria das ditas comédias românticas, por exemplo, como já notou P. R. de Almeida nesse livro, assim como os filmes de grandes estrelas (como Xuxa e Renato Aragão) –, é preciso lembrar que algumas produções caras e amparadas pelas grandes empresas mostraram força considerável na sua construção cinematográfica. É o caso dos já citados Carandiru e Cidade de Deus, assim como de Lisbela e o prisioneiro – que, com seu enredo em torno da própria narrativa se construindo com figuras típicas e com o prazer que exibe em contar uma história, talvez tenha sido no período a experiência mais bem-sucedida de registro não-realista em personagens e atores entre os filmes de alto orçamento. Por mais sentido que faça defender urgentes mudanças estruturais, a tendência a transformar o cenário de produção de filmes em palco de uma luta de classes estilizada, em que os pobres mocinhos são mais talentosos do que os ricos vilões, não é justa com os filmes nem faz sentido como estratégia diante de um mercado de exibição tomado pelo produto estrangeiro.

Seria fácil mas também equivocado apontar que as fragilidades de alguns filmes devem ser creditadas à falta de recursos. Além de os filmes de alto orçamento terem predominado no cenário, a célebre lição de Roberto Santos pode ecoar – o desafio deve ser compensar a falta de recursos com a criatividade. E algumas das maiores jóias desse período foram feitas com poucos apoios e orçamento reduzido – como exemplos iniciais, lembro de certos filmes de realizadores tradicionais, facilitados pelo apoio de órgãos como a Riofilme ou o CTAv-MinC: foi o caso dos dois de Rogério Sganzerla, Tudo é Brasil e O signo do caos, e de um de Paulo Cezar Saraceni, Banda de Ipanema. Lembrei deles porque acho que têm muito a ver com o tema desse texto. Os dois filmes de Sganzerla tratam da relação do gênio (na figura estrangeira de Orson Welles) com a cultura local – e falam sobretudo do constante problema da cultura brasileira em ter que se constituir, ao mesmo tempo, a partir das influências de elementos externos e contra estas influências. O signo do caos, com seu tom de deboche trágico, parecia procurar uma expressão simbólica que pudesse ser definitiva dessa deglutição cultural – não uma simples expressão, mas uma expressão justa no jogo entre ocupante e ocupado. E o filme de Saraceni, por sua vez, entranha-se profundamente na realidade de seu diretor. Ao se apresentar como uma “etnografia da amizade”, como escreveu Ricardo Miranda,[16] Banda de Ipanema é um cinema em que nossa relação de envolvimento e reconhecimento é preponderante. Com sua despreocupação diante do “bem-fazer”, inteiramente contrária à tendência predominante, Saraceni pareceu afirmar em filme algo semelhante ao que eu já afirmei aqui: os filmes com os amigos são mais interessantes do que qualquer outro. É interessante lembrar que seu filme sofreu entraves (por sorte breves) nas mãos de burocratas financeiros das autarquias, uma vez que destoou fortemente do panorama geral do cinema brasileiro. No entanto, justamente por essa diferença, tornou este cinema mais rico – e é um dos filmes mais divertidos da carreira de Saraceni, com certeza. Disse que é interessante porque me parece que, claramente, um problema está aqui: os ditos apoios dos órgãos competentes são restritos e são mínimos para os filmes de orçamento reduzido, filmes que em tese têm mais liberdade para ampliar o escopo dos cinemas brasileiros, esteticamente e tematicamente. Estes dois filmes são interessantes, mesmo sem terem conseguido “despertar interesse” – e outros filmes de baixo orçamento, em alguns casos especialmente fortes, não se saíram mal nas bilheterias: O invasor, Madame Satã. Mais sinais de força poderiam ter vindo dos muitos cineastas veteranos que sabidamente tinham projetos e também de incontáveis estreantes, como já apontou Filipe Furtado em outro ensaio desse livro.


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Madame Satã, O invasor, O prisioneiro da grade de ferro, Meu cumpadre Zé Ketti, os filmes de Coutinho e de Domingos Oliveira – todos eles (e mais alguns outros) buscaram uma ligação extrema entre o registro em filme e o espaço da intimidade, uma certa sensação e realidade na apresentação do mundo exibido. É nisso que encontram sua força.

A força que pode ganhar esse reconhecimento é que mantém o sentido das idéias que Paulo Emilio defendia e que ainda hoje ecoam por aí. Mas assumir isso significa ir sempre para a linha de frente, seja para elogiar ou para apontar as falhas – e não é esse o espírito que predomina atualmente nas manifestações de espectadores e críticos. Enquanto uma pequena parte da crítica se dedica a tentar criar polêmicas fúteis a partir de agressões, a maioria evita a crítica pontual, assim como qualquer opinião que fuja do elogio aos nomes que se consagram. Nisso evidencia-se uma hipermetropia em conseqüência do desinteresse em que o cinema brasileiro vive mergulhado: com exceção que se possa abrir a alguns repórteres, não há esforço de discussão dos problemas locais, mas sobretudo preocupação com a citada atualização da produção estrangeira. Vale a pena relembrar o caso de Olhos de Vampa, lançado direto no mercado de DVD, como já citou o Filipe em seu artigo, e todos os casos dos muitos filmes que mofam nas prateleiras. A grande imprensa abriu menos espaço para estes problemas de distribuição do que para os de alguns filmes estrangeiros, tanto mais tradicionais, como os de Woody Allen, como menos conhecidos, como os de Kiarostami. É evidente que a própria constituição cultural de uma sociedade como a brasileira, ainda periférica e subalterna, pode e precisa deglutir as influências externas para crescer. Tantos anos depois do Manifesto Antropofágico, trata-se de uma obviedade notar que é preciso encontrar interesse nos filmes não-brasileiros, fazê-los nossos – inclusive e sobretudo os filmes das cinematografias mais diversas e distantes da grande indústria. Mas a relevância e a prioridade de certas questões são demonstrações inequívocas da preguiça crítica e da falta de visão estratégica que congelam as discussões sobre o cinema brasileiro – certamente filmes brilhantes como Dez e Desconstruindo Harry podem nos trazer muitas questões interessantes ao cinema, ao nosso cinema. E esse cinema só vai existir e fazer pleno sentido quando fechar seu ciclo de produção, exibição e discussão. Sob esse aspecto, a possível apresentação tardia das obras-primas internacionais certamente precisa ser contornada pelos mais interessados, mas a defesa dos espaços para os cinemas brasileiros não tem que ver somente com a fruição e o crescimento estéticos imediatos, trata-se de estruturar sua própria existência, saltando da mediocridade apontada por Paulo Emilio.


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É preciso escolher a favor, tanto quanto é preciso apontar equívocos. Cabe a quem vê os filmes, a quem redige e a quem lê descobrir onde está o cinema mais próximo – não apenas a sala de cinema, como no slogan, mas sobretudo a produção de cinema e as idéias de cinema. Ao fim e ao cabo, trata-se sempre da relação entre cinema e vida. Portanto, não faz sentido manter pudores em deixar a experiência de vida contaminar (e enriquecer) a compreensão dos filmes. Os filmes mais interessantes são os que estão mais próximos de nós, e não há força cinematográfica que se compare a eles, quando nos parecem realmente bons. Nesse sentido, acho que a relação mais fraca que se pode ter com a produção de cinema é justamente a do distanciamento, pretendida por alguns críticos e espectadores.

Relato aqui minha experiência pessoal. Certamente os filmes da minha geração e dos meus amigos tiveram impacto mais forte e constante do que as grandes produções dos gênios internacionais e, da mesma forma, dos muitos talentos nacionais. Às vezes acabamos nem lembrando mais se conhecemos antes as pessoas (ou suas idéias) ou os filmes, e isso nem importa tanto. Mas, reconhecendo a influência, a admiração e a amizade que tenho pelos cineastas Carlão Reichenbach ou Nelson Pereira, por exemplo, não tenho dúvida de que isso influencia fortemente a minha compreensão dos filmes, e isto não me parece diminuir os filmes em si ou as idéias que posso ter a respeito deles e, se pequenas elas são, acho que essa justificativa não se sustenta. O olhar assumidamente próximo, podendo ter mais ou menos argúcia, não é por natureza nem mais nem menos consistente do que um olhar distante. É apenas uma perspectiva, como lembrou o Bernardo. Aceitando que nosso olhar sempre esteja limitado por sua perspectiva, podemos procurar perceber a grandeza dos detalhes de obras próximas.

E esses dez anos apresentaram algumas coisas bastante fortes dessa turma grande de minha geração, de minha região (ainda travada por conta do nosso subdesenvolvimento, como outras tantas). Coisas como ir ao Odeon ou ao CCBB ver os programas da Curta Cinema e me deparar com filmes como Ação e dispersão ou Onde a coruja dorme; como ir a São Paulo acompanhar o Festival de Curtas e ver Um sol alaranjado; como acompanhar o festival É Tudo Verdade no CCBB-RJ e ter a oportunidade de ver o média-metragem O Galante rei da Boca; ou como caminhar da minha casa até o Cine-Buraco para ver as estréias dos episódios da série Capitão Zum.

Não me incomodo se conheço e sou amigo de alguns dos realizadores desses filmes que lembrei – ao contrário, acho que essa proximidade faz esses filmes terem muito mais a me dizer. Talvez não interessasse para olhares distantes a agressividade temática e visual de Ação e dispersão, talvez não lhes dissessem respeito o assunto e a atitude de “um homem e uma câmera, nunca duas noites na mesma cidade, até o dinheiro acabar” (dinheiro da Petrobras, como o filme nos avisa e relembra) que norteiam o curta-metragem do Cezar Migliorin. Assim como olhares distantes poderiam também relativizar o interesse pelo retrato do cotidiano de compositores de samba feito em Onde a coruja dorme, ou o cuidado na composição das relações entre dois personagens presente no Um sol alaranjado do Valente. Olhares distanciados poderiam não ter seu interesse despertado pelo retrato de um personagem e de uma época do cinema brasileiro como o apresentado no média-metragem de Alessandro Gamo e do amigo Luís Alberto Rocha Melo, poderiam nem mesmo perceber como este retrato trata não somente do cinema brasileiro dos anos 70, como também dos anos 2000. Uma pessoa que opte pela objetividade distanciada, enfim, pode até mesmo se sentir pouco à vontade no ambiente claustrofóbico do Cine-Buraco ou não considerar interessante a relação que os filmes da série Capitão Zum fizeram com um punhado de convenções do universo pop de quadrinhos e seriados. Um olhar distante pode não ter interesse pela aproximação com o cinema de gênero (uma certa vontade de recriar gêneros e heróis) que essa série de curtas fez, uma aproximação ao mesmo tempo gozadora e integral, numa antropofagia crítica de fazer inveja a qualquer filme de Brian De Palma. No entanto, se por acaso o olhar se pretender cada vez mais distanciado, logo não verá interesse no cinema brasileiro, no cinema em geral, nas pessoas, no mundo, no universo, em tudo que for vivo, enfim...

Sim, é claro que é preciso saber que nosso olhar é sempre perspectivo, e portanto saber escolher de onde essa visão perspectiva deve partir. É como já dizia Helena Ignez em Sem essa aranha (1970), de Sganzerla, enxergando longe: “esse sistema solar não presta”. E, lembrando de outro filme antigo, diante da pergunta sobre quem poderia se interessar pela história de sua vida, em El justicero (1967), de Nelson Pereira, El Jus conclui: “eu”.

Por nossa visão depender do lugar que escolhemos, nós só vamos conhecer estes cinemas brasileiros que nos interessam quando nos aproximarmos deles. Estabelecer essa proximidade com esses cinemas continua sendo nossa questão urgente.






[1] Embuste há bastante tempo percebido: em Cinema brasileiro: propostas para uma história (São Paulo: Paz e Terra, 1978), Jean-Claude Bernardet escrevia que “O cinema brasileiro não existe mais, existem cinemas brasileiros”.
[2] Em Um intelectual na linha de frente, Ed. Brasiliense.
[3] Idem.
[4] Um intelectual na linha de frente.
[5] Em Crítica de cinema no Suplemento Literário, vol. 2. São Paulo: Paz e Terra/Embrafilme, 1981.
[6] Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra/Embrafilme, 1986.
[7] Um intelectual na linha de frente.
[8] Em Teoria do Brasil, já citado por Bernardet em Cinema Brasileiro: propostas para uma história.
[9] Cinema: trajetória no subdesenvolvimento.
[10] Em Historiografia clássica do cinema brasileiro. São Paulo: Annablume, 1995.
[11] Essa expressão foi criada por Silviano Santiago num ensaio homônimo, recentemente editado em livro, no qual tratou da crescente capacidade demonstrada por pequenas organizações políticas e culturais – como o carioca Nós do Morro, da favela do Vidigal – de divulgar seu trabalho através dos instrumentos de comunicação globalizados.
[12] Um intelectual na linha de frente.
[13] A relação entre os personagens maniqueístas e as figuras reais que os inspiraram ficou evidente numa polêmica envolvendo o líder comunista no filme, cujo correspondente na vida real foi defendido por amigos. Há um resumo das reações no livro de Luiz Zanin Oricchio, Cinema de novo – um balanço crítico da retomada (São Paulo: Estação Liberdade, 2003), na parte em que trata das polêmicas do cinema brasileiro na mídia.
[14] Citado na coletânea de depoimentos O cinema brasileiro no século XX, editada por Isabella Nicolas, com patrocínio da Petrobras (publicado em 2004, sem editora).
[15] Em “Cartas de Cannes VIII”, http://www.contracampo.com.br/71/cannes8.htm, e “Crítica e ressentimento”, http://www.contracampo.com.br/72/criticaeressentimento.htm, respectivamente.
[16] “Paulo Cezar Saraceni ou a etnografia da amizade”, em http://www.contracampo.com.br/50/saraceni.htm

artigo publicado no livro "Cinema Brasileiro 1995-2005 - Ensaios Sobre Uma Década" (ed. Azougue, Rio de Janeiro: 2005)