15/07/2008

Rio Zona Norte (1957)

Amigo, você já viu "Rio Zona Norte"? Se a resposta é não, meu conselho é que veja logo, é um filme especialmente bonito.

É o segundo longa-metragem de Nelson Pereira dos Santos, com fotografia de Hélio Silva, protagonizado pelo Grande Otelo, com músicas de Zé Ketti e arranjos de Alexandre Gnattali, produzido em 1957, lançado em 1958.

Quando foi lançado, foi bem pichado, foi criticado pelos papas da crítica da época. Disseram que era melodramático, uma volta ao realismo psicológico, um filme distanciado das propostas de vanguarda da época, na época a onda era fazer filme barato retratando a realidade. "Rio Zona Norte" até era assim, mas tinha flash-back, flash-back não podia, era proibido pelos dogmas da época. O Alex Viany, de quem o Nelson Pereira tinha sido assistente no "Agulha no Palheiro", esculhambou, não gostou nem um pouco. O Paulo Emílio Salles Gomes também não curtiu, a reação dos dois está nos seus livros "Introdução ao Cinema Brasileiro" e "Trajetória no Subdesenvolvimento".

Foi um fracasso de bilheteria. O Nelson tinha ganho uma grana boa com o sucesso do "Rio 40 graus", que estourou graças à polêmica criada pela interdição do filme pelo delegado Menezes Cortes. E com essa grana ele produziu dois filmes, "O Grande Momento", obra de estréia do Roberto Santos, feita em São Paulo, e o "Rio Zona Norte". Os dois foram mal-recebidos, não fizeram dinheiro, Nelson ficou cheio de dívidas e teve que ir trabalhar em um jornal por um bom tempo.

Olhando agora, de longe, depois de tanto tempo, parece que valeu a pena, não?...Outra conseqüência do fracasso do filme é que Nelson teve que adiar o projeto que fecharia a trilogia carioca, “Rio Zona Sul”, um filme que se passaria à noite, nas boates de Copacabana, registrando o ambientes dos inferninhos da época, que depois veio a se tornar mítica. Quando teve condições de produzir um novo filme, Nelson já resolvera adaptar um romance de Graciliano Ramos sobre uma família de retirantes. Foi para o nordeste, choveu, deu tudo errado, ele acabou fazendo outro filme, só fez “Vidas Secas” anos depois, mas isso tudo é uma outra história.

Nelson já contou que amadureceu muito ao longo de seus primeiros filmes, e “Rio Zona Norte” alterou sua visão de cinema, porque teria sido o momento em que ele começou a se ligar de fato na importância da montagem do filme. Isso aconteceu especialmente na cena clímax, quando o Espírito (o personagem do Grande Otelo, um compositor de samba desconhecido) apresenta uma canção para a cantora Angela Maria. O montador, um portenho chamado Rafael Valverde, queria mostrar Angela Maria quando começava a acompanhá-lo, e Nelson percebeu que isso não era o mais importante, que era preciso mostrar a reação do Espírito. A discussão mexeu tanto com a cabeça dele que os três filmes seguintes de Nelson foram trabalhando na moviola (“Barravento”, de Glauber Rocha, "O Menino da Calça Branca", curta de Sérgio Ricardo, e "Pedreira de São Diogo", curta de Leon Hirzman, que fez parte de “Cinco Vezes Favela”).

Nelson Pereira teve dificuldades com Grande Otelo, achava que ele se entregava muito nas cenas. Demais, até, para o olhar neo-realista do nosso amigo, que tratou de inventar soluções para obter uma interpretação mais seca do ator. No entanto, Nelson foi corajoso ao chamar o consagrado comediante das chanchadas para protagonizar seu drama, e foi muito feliz com seu gesto, Otelo está magnífico. Otelo já tinha feito muitos filmes sérios, como “Amei um Bicheiro”, mas era evidente a má vontade de parte da crítica e do público ‘bem-nascido’ com ele, que só voltou a trabalhar com alguém do chamado Cinema Novo dez anos depois, em “Macunaíma”.


Apesar de ter sido um fracasso de público e crítica, a simplicidade e grandeza de "Rio Zona Norte" ganhou vários fãs. David Neves e Joaquim Pedro achavam ser o melhor filme da carreira de Nelson Pereira. Neves, inclusive, chegou a escrever um carinhoso artigo sobre o filme na revista “Filme Cultura”, nos anos ’70, despertando a curiosidade dos seus pares e tirando o filme do esquecimento em que estava injustamente enterrado.

O filme é uma obra-prima, a cena do Otelo com a Angela Maria é uma das coisas mais lindas que eu já vi.

Lançaram há pouco tempo uma versão do Roteiro, com supervisão do Nelson, junto de versões do "Rio 40 Graus" e do "Amuleto de Ogum". Os textos que o Nelson escreveu nas introduções são fundamentais, riquíssimos, e na introdução ao "Rio Zona Norte" ele conta que fez o filme em homenagem aos sambistas brasileiros, e principalmente ao seu compadre Zé Ketti.

Nelson Pereira morou seis meses em Bento Ribeiro com Zé Ketti para conhecer seu cotidiano, até se sentir apto para escrever o roteiro. Contou uma vez que, já na época, não era muito seguro andar à noite na rua. Mas sempre que a barra parecia ficar pesada, Ketti começava a cantar: "Eu sou o samba/ A voz do morro sou eu mesmo sim senhor...". Era seu passaporte, ninguém lhe tocava. Ninguém faria mal ao samba em pessoa.

Quanto ao conselho inicial deste artigo, vale lembrar que a Riofilme e a Sagres relançaram o filme em vídeo recentemente, ele já havia sido lançado pela Manchete Vídeo, há mais de dez anos. Portanto, ele pode ser encontrado em locadoras de boa qualidade. Vale a pena catar. Ou, quem sabe, esperar que se dignem a lançar uma cópia nova em uma boa mostra.



Texto publicado em fevereiro de 2000