03/07/2008

O Crocodilo (2006)



O filme de Moretti traz de forma implícita uma velha preocupação, mais uma vez decisiva: como o cinema pode pretender discutir as relações entre a política nacional e o cotidiano das pessoas e, a partir disso, tomar partido e levar o espectador à reflexão? Na mesma Itália onde o cinema assumiu facetas ora profunda ora superficialmente ativistas, o filme de Moretti procurou expor a crise deste papel nos anos de Berlusconi, de seus times de futebol e dos seus canais de TV. Por saber o quão antiga é essa questão em torno da representação da grande política pelos filmes, O Crocodilo lança um olhar sobre o papel e o espaço social do cinema, quando o cinema de gênero que se contrapunha ao cinema dito politizado de décadas atrás encontra-se igualmente decadente – pelo menos nas suas formas puras, pois o que O Crocodilo faz é assumir que atualmente, para se comunicar e provocar seu público, um filme sobre as questões da grande política pode (ou deve?) seguir certos procedimentos do cinema de gênero. Para isso, o filme se utiliza de toda sorte de artifícios narrativos a partir duma trama em que um produtor decadente de filmes de gênero se vê envolvido na produção de um idealista filme-denúncia sobre Berlusconi. Ao final, O Crocodilo mostra o seu lado devorador quando traz uma nova questão: como refletir sobre personagens tão gigantescos e caricaturais como Berlusconi? Na mesma Itália de Nero e Calígula, Moretti faz uma nova declaração de princípios para o seu cinema. Se para trazer suas preocupações políticas e estéticas ele se utiliza do formato da comédia de erros e do enredo auto-referente, para expor o seu ataque a uma figura real ele próprio, o autor, também precisa se mostrar. Moretti leva ao limite a crise entre autor de ficção e personagem real – e, se Berlusconi tem muitas facetas (e nenhum o redime), é preciso que o próprio Moretti se veja e se coloque como Berlusconi para expô-lo e entender o que ele representa. No final das contas, o mundo mudou depois desse filme? Bem, na verdade o mundo muda sempre, e certamente o cinema mudou bastante – só não percebe quem não viu.

publicado pela primeira vez em fevereiro de 2007