21/07/2008

Entrevista com Mario Carneiro - sobre seu trabalho com Fernando Coni Campos

Mário Carneiro, amigo e parceiro de Fernando Coni Campos por décadas, trabalhou em dois dos seus filmes – foi fotógrafo do primeiro longa-metragem do diretor, Morte em Três Tempos, e fotógrafo e co-roteirista do último, O Mágico e o Delegado, além de terem trabalhado em parceria também nos roteiros de Romance (dirigido por Sérgio Bianchi) e O Imponderável Bento (que Joaquim Pedro de Andrade não conseguiu produzir).

Já em duas outras ocasiões a Contracampo publicou entrevistas com Carneiro, uma vez por ocasião de uma exposição de gravuras de sua autoria, outra vez na edição sobre O Padre e A Moça, onde Mário já falou bastante de sua carreira. Desta vez tivemos o prazer de conversar com Mário ao longo de pouco mais de uma hora sobre sua amizade e sua parceria com Coni – numa entrevista que contou com a presença de Rubinho Jacobina, filho caçula de Coni Campos, Daniel Caetano e Ruy Gardnier.

 

Ruy Gardnier: Bom, a primeira pergunta é saber como foi que você e o Fernando se conheceram...

Mário Carneiro: Como é que eu conheci o Fernando...Bom, o Fernando era uma dessas pessoas que você já conhecia, acho que sempre o conheci...Quando eu conheci o Fernando Coni Campos, eu fazia parte de um desses movimentos do Cinema Novo, eu era um fotógrafo muito manjado, ganhei prêmio pelo Arraial do Cabo e aquela coisa toda, e a gente ficava ali em Botafogo, no antigo bar da Líder (laboratório Líder de cinema) , e ali aparecia muita gente, tomando um chopinho...e nesses encontros eu fui conhecendo aos poucos o Fernando. Depois ele começou como desenhista lá na NovaCap, e eu era muito amigo da filha do Lúcio Costa, e acho que por esse caminho nós nos conhecemos mais, mas a gente só se aproximou mesmo quando ele começou a filmar, numa noite de réveillon em Copacabana... E aí toca o telefone, eu atendo e era o Fernando dizendo que estava ali embaixo, que ia começar um filme ali na hora, mas que tinha esquecido o tripé no táxi! O fotógrafo era o Bartucci... O Fernando tinha uma desorganização espontânea, e eu disse que só tinha uma pessoa que tinha um tripé naquela hora da noite, e era o Gerson Tavares... Então o Fernando disse para eu esperar, "espera aí, Mário", que o Gerson estava passando ali na hora!... E ele correu, pegou o Gerson Tavares e foram buscar o tal tripé... na Tijuca, acho. Aí não pensei mais no assunto, mas aí parece que, até ir na Tijuca e voltar, o cabo de luz que o Bartucci tinha puxado para a praia, de tanto carro passar em cima, já não estava ligando...aí o Bartucci teve um ataque de nervos e foi embora, o Fernando tomou um porre, e diz que tentou se jogar da ponte do Jardim de Alah (Mário ri) – se suicidar na ponte do Jardim de Alah?...No outro dia ele me ligou e me convidou para fazer o filme no lugar do Bartucci, peguei o roteiro e uma semana depois começamos, numa casa ali na subida do Joá e quem fazia a produção era um pintor amigo dele. E aí fomos rodando o filme, o Morte em Três Tempos (1964), cheio de aventuras, uma noite fomos filmar num bar da cidade e aí o eletricista puxou a luz do prédio ao lado e aí apareceu o síndico, que era um neurótico mesmo, e disse que ia chamar a polícia, arrancou as coisas e acabou a luz no Bar e ficou tudo escuro... em suma, terminamos na polícia. Eu expliquei que éramos jovens, que o dono do Bar não tinha deixado a gente usar a luz do Bar e o delegado nos soltou...E acabamos salvando também um marinheiro grego que estava preso lá na delegacia, não sabia falar português, e levamos o cara para o cais do porto, coitado... Sempre um negócio muito aventuroso, a impressão que você estava fazendo um filme e que um outro filme estava acontecendo ao lado, eram vários filmes paralelos. O Fernando gostava muito de bar, tomava umas caninhas, e o Paulo Emílio, Paulo Emílio Salles Gomes, fazia um detetive no filme, e a gente tinha colocado o Plínio Sussekind para entreter o Paulo Emílio enquanto a produção andava, para o Paulo Emílio não se chatear... e aquela conversa foi ficando cada vez mais interessante, todo mundo parava pra ouvir os dois... e às vezes ele se aproveitava dessas conversas paralelas para improvisar no filme, o Fernando tinha muita imaginação, era muito livre...

Daniel Caetano: O roteiro dele era aberto, então...

MC: Era bem aberto, e as coisas iam surgindo assim, um espaço grande para improvisação, uma época muito interessante por estarmos, de certa forma, reinventando um certo cinema urbano no Rio, com câmera na mão e pouca iluminação nas ruas. Era um trabalho com muita liberdade.

DC: Me disseram que estão restaurando o Morte em Três Tempos, que você ia ser chamado para marcar a luz...

MC: Parece que sim, me ligaram para falar disso, quero muito rever esse filme. Recuperar esse filme, isso vai ser genial...

RG: Bem, queria falar de uma coincidência de que vocês dois começaram trabalhando com as outras artes também, né? O Fernando era poeta, desenhista... trabalhou com o Lívio Abramo, tinha a coisa de trabalhar com o Lúcio Costa...

MC: É, o Fernando trabalhava como poeta e desenhista e eu também, eu tinha um escritório de arquitetura com um sócio...tínhamos esse certo elo "costiano", digamos assim... Mas, voltando ao filme, a mulher do Fernando na época, a Talula, fazia a fotografia de cena, era uma figura ótima... O Pedro de Moraes fez a minha assistência, era uma figura muito especial, o primeiro trabalho dele com cinema, o Vinicius de Moraes me ligou e disse que ia mandar o rapaz que ele queria trabalhar com cinema e disse assim: "Ô, Mário Carneiro, tá entregue, hein?" (risos), era pra eu cuidar dele, para ser o padrinho dele... O produtor reclamou de deixar aquele menino como meu assistente, que era muito inexperiente e coisa e tal, mas eu disse que pagaria por cada erro que a gente cometesse por causa dele, e aí fomos filmar. E fez tudo certo, deu tudo certo.... tirando um dia em que fomos filmar à noite e o Pedrinho botou um filme de filmar de dia para a gente filmar de noite... E aí tivemos que parar tudo! Mas eu tinha outro assistente também, o Elyseu Visconti, e os dois eram iniciantes e ficavam se engalfinhando para saber quem era o primeiro assistente, essa coisa de hierarquia, e eu dizia que eles que se resolvessem que eu não ia ficar diplomando ninguém porque os dois estavam começando, tinham que aprender juntos...Teve um dia, eu acho que foi o Elyseu, ele colocou o chassi ao contrário na câmera (Mário ri)...Mas deu tudo certo, chegamos até o fim com essa equipe e aí os dois já tinham aprendido, já eram bons assistentes... O fato é que agora poderemos rever esse filme, Morte em Três Tempos foi lançado, mas por muito pouco tempo, mais ou menos como é hoje... Foi o primeiro longa-metragem do Fernando, ele já tinha feito um curta sobre a obra do Aleijadinho.

RG: Foi exibido agora no Cinesul, foi um dos melhores curtas apresentados, ele faz um paralelo entre as estátuas e a própria doença do Aleijadinho – é muito interessante.

MC: Mas o Morte em Três Tempos foi muito mal lançado, não souberam lançar.

DC: É interessante que o Fernando Coni me parece que sempre preferia se colocar um pouco à margem do Cinema Novo, apesar de trabalhar com vocês...

MC: O Fernando sempre foi à margem de todos os movimentos, ele não era um agitador cultural, ele era um agitado! Não gostava de fazer parte de grupos, de nada... O Fernando via o mundo de uma forma diferente. Naquela época todo mundo era de esquerda e o Fernando tinha um certo fundo religioso que batia de frente com a cultura marxista, uma espécie de São Francisco, era um franciscano que gostava de tomar umas biritas... Mas não gostava daquele gênero Glauber de chegar já se impondo, se colocando e depois colocando o Cinema Novo nas nuvens, o Fernando se incomodava muito com esse tipo de atitude. O Fernando era bem mais radical como artista, apesar das dificuldades que ele tinha por conta desse temperamento todo. Ele teve uma carreira de poucos filmes, diante da enormidade de coisas que ele pensava, muito poucos. Como outros grandes cineastas no Brasil que não fizeram mais que cinco ou seis filmes...é preciso muita coragem para se fazer cinema no Brasil.

DC: Isso aparece de forma direta no Ladrões de Cinema, essa coisa do cinema roubado, subversivo.

MC: Esse é outro filme inacreditável, também. Algum tempo antes, eu estava filmando um filme meu, o Gordos e Magros, em Santa Teresa no casarão da Laurinda Santos Lobo, um lugar que estava abandonado na época e cheio de mendigos e vendedores de rua. Apareceu então um rapaz que vendia limão, o Limãozinho, começou a olhar o movimento e de repente puxou um revólver e botou na minha cabeça! Disse que não ia deixar filmar ali, estava totalmente drogado, e aí eu comecei a convidá-lo a participar do filme e ele acabou gostando da idéia e começamos a trabalhar... Isso foi no Gordos e Magros. E aí no fim do dia ele resolveu dar um tiro numa luz e estourou um refletor de dois mil watts, o pessoal já estava ressabiado, o Bigode, que era diretor de produção, chamou a polícia e ele foi preso. Mas aí resolvemos soltar o Limãozinho, mandamos a polícia embora, e ele ficou muito grato, principalmente quando se deu conta do que tinha feito, "Poxa, estourei o refletor...", depois de ter passado a onda das drogas. Pois bem, tempos depois, o Fernando me chamou para fazer o papel do diretor no Ladrões de Cinema onde eu seria assaltado numa locação ali perto. Mas aí, já rodando o filme, no meio da cena do assalto em que roubam a câmera e me jogam no chão, a gente começou a ouvir uma gritaria: "Pára, esse aí é o Mário Carneiro, eu sou o Limãozinho, larga ele! Seu Mário!" Aí eu virei para ele, de costas pra câmera rodando, e falei disfarçado: "Calma, isso aqui é um filme!" (risos)... senão o Limãozinho já estava metendo um tiro em alguém da equipe! (risos)

DC: E sobre O Mágico e o Delegado?

MC: Esse foi outra aventura. Ele ia escrever o roteiro junto com o Jorge Laclete, mas houve um desencontro... Aí o Fernando chegou lá em casa e disse que o Jorge não ia poder fazer, e então fomos nós dois em frente. E assim, fizemos, em 11 dias estava pronto, e demorou mais um ano para sair o dinheiro e começamos a filmar. Eu achava que era o melhor filme do Fernando, mas agora eu revi o Ladrões de Cinema e acho que ele tem uma idéia mais bem fechada, apesar do Mágico ser um filme melhor acabado. Mas então fomos lá para Bahia filmar, o lugar de origem do Fernando, mas o Fernando estava muito doente, tomando uns remédios errados e já estava muito doente, com muita energia mas ofegante... O fato é que isso reduzia muito as energias do Fernando, continuava fazendo tudo, mas o medicamento errado estava agindo contra ele e então o filme foi feito com muito cuidado, uma equipe ótima. Foi aí que ele foi convidado para escrever o roteiro do Imponderável Bento, do Joaquim Pedro, porque ele tinha gostado muito do Mágico e o Delegado, e o Fernando falou com Joaquim que tinha trabalhado comigo e tinha sido ótimo, que queria me chamar para escrever junto com ele mais uma vez, me chamaram e ao Joaquim de Assis também. O Joaquim Pedro tinha umas idéias muito doidas sobre esse filme, e o Fernando adorava, se divertia... A idéia de um homem que quer se jogar com um avião sobre o planalto mas aí desiste e pula de pára-quedas deixando o avião cair noutro lugar... Logo o Fernando lembrou de que conhecia um rapaz que tinha feito isso: queria se jogar de avião num lugar e desistiu bem na hora, e aí a gente ligava para esse amigo do Fernando e perguntava coisas, e a história foi ficando cada vez mais real, mais real, e o Joaquim foi ficando numa felicidade danada, e escrevemos tudo, deixando Joaquim Pedro fazer a versão final, digamos assim. Uma pena que esse filme nunca tenha sido feito... O pessoal da Embrafilme achou que tinha muito efeito especial, muito caro, passou do orçamento e aí nunca foi filmado. Uma pena. Depois, me lembro bem, o Fernando começou a adaptar o Ladrões de Cinema para um musical que seria dirigido pelo Arnaldo Jabor, em inglês, atores americanos: Made in Brazil, seria o nome...Foi bom porque deu um bom dinheiro para o Fernando. A última vez que eu falei com o Fernando foi quando ele tinha acabado de escrever esse trabalho para o Jabor, ele me ligou, estavam comemorando o roteiro, estavam todos contentes...Aí o Fernando falou para mim: "Olha, eu acho que a hora chegou...eu senti umas coisas e acho que não vou passar de hoje...". Mandei ele chamar um médico, mas ele disse que nada adiantava, de que ia morrer de qualquer jeito... Morreu bebendo uísque, diante da televisão. Foi uma pena muito grande, não havia solução médica para o problema do Fernando, morreu com 54 anos, bastante jovem.

RG: Bem, acho que você podia falar um pouco mais sobre essa informalidade de criação do Fernando, essa coisa de roteiros abertos, vocês filmaram muita coisa que ficava de fora da montagem? Nesse clima de improvisação, costumavam fazer cenas que não eram aproveitadas depois?

MC: No Mágico o roteiro estava mais fechado, mais maduro e também porque o produtor era o Oscar Santana, que era um cara jogo duro, acostumado a produzir filmes comerciais, era um cara meio reacionário na época...A gente já se aproximou de novo, mas na época foi duro, ele queria interferir, aparecer...

Rubinho Jacobina: Eu sabia de mais um roteiro dele, você conhecia o Fiel do Amor?

MC: Claro, foi também um outro roteiro que ele vendeu para o Jabor, chamado o Fiel do Amor, um roteiro magnífico que o Jabor nunca rodou – ele estava com mania de comprar tudo, estava bem de grana, acho. Cheguei a trabalhar com o Jabor no roteiro do Eu sei que vou te amar, ele estava cheio de idéias de adaptar vários livros juntos, queria misturar os enredos de quatro livros e eu dizia que não ia dar. Um dia, cheguei e ele estava de mau-humor, "pô, tive uma briga com minha mulher...", e tinha escrito algumas coisas sobre isso – eu li e disse: "Esse aqui é o seu filme, ou você esse aqui ou não vai fazer nenhum!". Aí ele falou "Mas então eu não vou te pagar...", eu disse, " Vai pagar, sim, estou trabalhando aqui há um mês contigo, como é que não vai pagar?". Ele ficou puto, mas pagou (risos). Mas o Fiel do Amor seria um belo filme do Jabor, um belíssimo roteiro do Fernando muito bom para ser dirigido pelo Jabor.

DC: Como é a história, você lembra?

MC: Uma história romântica de um casal. Um menino romântico que se casa com uma menina e, alguns meses depois, essa menina morre...e ele então corta os cabelos da menina e guarda a cabeleira dela, querendo guardar a paixão até o fim. Mas aí ele acha um diário dela escondido numa gaveta, e ela contava tudo as fantasias que se passavam na cabeça das mulheres românticas naquele diário, e o filme segue assim. Era um diário erótico de sua mulher e ele entra em crise, fica muito mal, e quer se suicidar, mas... aí não me lembro...

RJ: Se não me engano, ele resolve cair na gandaia...

MC: Isso! Ele cai na gandaia e, a cada dia que ele volta para casa, novas histórias começam a aparecer escritas nas páginas do diário, objetos sumidos da falecida voltam a aparecer... Fiel do Amor... Era uma história muito bonita, um pouco mágica. Um dia alguém ainda vai filmar esse roteiro do Fernando. Era um belo roteiro.

RJ: E como diretor, no set, com atores, como ele era?

MC: O Fernando não tinha aquela formação ritualística do diretor de cinema, como teve Joaquim Pedro, que tinha estudado na França. Ele não se preocupava com a nomenclatura dos planos, com a hierarquia, essa coisa de ter que pedir licença ao diretor para dar opinião sobre qualquer coisa, não tinha nada disso nos filmes do Fernando, ele falava normalmente sobre o que queria e ouvia nossas opiniões.

RJ: Na entrevista que saiu com ele no Pasquim, o Jaguar faz uma brincadeira, perguntando "como é que é isso, eu venho ver as filmagens do filme dele e você bebendo comigo no boteco enquanto todo mundo trabalha no set?". E ele responde que justamente já sabia que estavam arrumando do jeito que ele queria e que não precisava ficar aporrinhando os técnicos...

MC: Olha, isso também deve ter sido algo rápido, ele não deve ter se demorado... Mas ele também não precisava ficar vigiando a equipe, olhando cada enquadramento... Ele sabia o que queria fazer, dizia de forma clara e confiava na gente. Uma simplicidade eficaz... E não era frágil, isso não é sinal de fragilidade, mas de segurança – é preciso ter muita confiança para não precisar da pose de diretor... Comigo era como uma dupla: um está cantando daqui, outro está cantando de lá, mas a música era uma só...

Transcrição de Felipe Bragança

Entrevista realizada no Rio de Janeiro no dia 30/06/2003. Publicada originalmente em julho de 2003