24/07/2008

Os mistérios do cinema e do samba (ou Todos os caminhos levam à Bahia) - sobre Bahia de Todos os Sambas (1983/1996)

Há um ponto crítico que pode ser percebido nos textos que compõem esta pauta, assim como nos demais escritos sobre filmes vistos como guilty pleasures, filmes que gostamos mas que, por qualquer razão, nos parecem ser ruins – o ponto é justamente que isso implica em duas visões opostas partindo do mesmo sujeito. De onde se pode tirar que um filme amado é ruim? Isso implica então na crença em um ‘terceiro olho’, uma capacidade de analisar ‘corretamente’, de forma ‘objetiva’ – quando nos parece que amamos por razões ‘pessoais’ aquilo que nosso bom senso indica que não é de boa qualidade, seja lá o que isso signifique em cada situação.

Pois é, não por acaso os afetos se voltam, na maioria dos casos, para filmes vistos num momento anterior ao ‘início da cinefilia’, quando descobrimos então o que é ‘realmente bom’, e também não é por acaso os filmes escolhidos são em sua maioria tipicamente hollywoodianos – ainda estávamos desarmados para o que depois parece clichê.

O problema de alguns, entre os quais me incluo, era justamente em lidar com a idéia deste ‘terceiro olho’, este certeza de que um determinado filme predileto seja uma porcaria, com certeza (sabe-se lá qual).

Depois de catar um pouco na memória e nos arquivos, acabei por encontrar então um filme que, frágil sob inúmeros aspectos essencialmente cinematográficos, realmente me encanta – ainda que não seja um filme que eu vá indicar para qualquer pessoa. Na verdade só indicaria a fãs dos artistas que aparecem – são eles que fazem o filme ser encantador, apesar de todos os problemas.

Bahia de Todos os Sambas é um documentário sobre um festival de cultura baiana realizado em Roma no verão de 1983. Neste festival se apresentaram, entre outros, Dorival Caymmi, João Gilberto, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Novos Baianos, Batatinha. São eles os astros do filme. Um bom filme, como se sabe, depende sobretudo do seu elenco, e este aqui é realmente bom.

Quem não for fã certamente irá se irritar com os problemas técnicos do som, que já não era grande coisa no cinema e foi destruído na telecinagem malfeita das empresas de distribuição. Se este é um problema sério (sobretudo na equalização de instrumentos, captados de forma precária e primária) que a incapacidade técnica dos distribuidores se encarregou de agravar ao extremo na versão em vídeo, não é no entanto o único do filme. Os pitorescos passeios filmados de Gilberto Gil e, mais tarde, das senhoras baianas por Roma não ajudam no ritmo, assim como as apresentações dos grupos de dança e capoeira e de Naná Vasconcelos – não imagino como tenha sido a passagem destes pela cidade italiana e pelo festival, mas pelo filme eles passam como turistas de caricatura. Se o não-fã mantiver o bom-humor diante dos problemas sonoros, precisará também ter uma paciência de Jó com a cadência do filme – se aos baianos não falta suíngue e ritmo, esse elogio não vale para o documentário. Sobretudo porque o filme nem sempre parece se encantar apenas pela beleza da arte que está sendo apresentada – há um fascínio com a visão de “manifestação de um povo” que é absolutamente desinteressante e ultrapassada. Não custa lembrar que o evento não se repetiu. A “revolução artística terceiro-mundista” não conseguiu ser mais do que moda de verão, e este povo ideal continua exatamente onde sempre esteve – continua existindo somente nas teses de uns e outros.

Para complicar tudo, depois de ver a obra o fã vai reconhecer os diversos problemas dos créditos do filme. Para se ter uma idéia, há uma confusão entre composições de Pixinguinha – Lamento, que abre o filme numa interpretação de Armandinho, é chamada de Carinhoso... Mais grave que isso, uma imensa parte dos músicos que aparecem na tela não é creditada – quem não for fã que trate de desistir!

Não, decerto não seria um filme a se indicar a uma pessoa desconhecida. Ainda mais que, nos casos mais famosos, estarmos tratando de artistas que despertam paixão e ódio – um ódio que, se já vinha se tornando cada vez mais comum devido ao valor dado pela mídia a estes artistas, só tende a aumentar diante das circunstâncias, quando vemos Gilberto Gil, um dos maiores destaques do filme, receber e aceitar o convite para assumir o Ministério da Cultura.

No entanto, o filme tem o mistério do samba. Isso não se explica, apenas se percebe.

Curiosa a escolha do Lamento de Pixinguinha para o início. A música carioca de Pixinguinha era filhote tanto dos ritmos negros das casas das tias baianas como da música importada da Europa, fosse através da música de igreja ou dos ritmos europeus de dança. Assim, parece que começamos com uma composição que representa toda essa mistura que tantos encantos trouxe – numa interpretação modernizada pelo solo de Armandinho, calcado na interpretação clássica do Jacob do Bandolim.

Pixinga participava de festas e reuniões em que se tocava e cantava o ritmo amaxixado que ganhou o nome de Samba no registro de Donga de Pelo telefone, como se sabe. No entanto, sempre foi notada a possível origem baiana do samba de roda, que teria sido trazido para o Rio de Janeiro nas imigrações conseqüentes do fim da escravidão. Isso tudo são águas passadas, discussões sobre uma época em que se dizia que “samba no morro não é samba, é batucada” – e, como já disse o poeta, o samba não nasce no morro nem na cidade, ele nasce no coração. Mas tudo isso vem à tona quando vemos Batatinha cantando seus sambas.

E surge mais evidente ainda quando aparece Dorival Caymmi, tendo uma conversa pitoresca com Caetano Veloso – que comenta sobre a participação do patriarca nos vários momentos de sucesso da música brasileira em outros países. Para exemplificar, vemos um registro de Carmem Miranda cantando O que é que a Baiana Tem, a música que o tornou célebre na interpretação feita em 1939, quarenta e quatro anos antes do festival se realizar. Depois de Caetano Veloso fazer um comentário sobre a linhagem baiana, surge João Gilberto. Se Caymmi parece representar uma música que sempre existiu, que é anterior ao céu e à terra, João Gilberto canta algo que é sempre estranho, novo e repetido, diferente, pensado e cuidado. É o artista essencialmente apolíneo – o biscoito fino para as massas de que falou o modernista. João homenageia a Itália cantando Estate num idioma próximo ao local.

Depois dessa apresentação de uma certa linhagem do samba baiano, voltamos a Batatinha, depois chegamos à geração tropicalista – numa fase especialmente interessante de suas carreiras, antes de guinadas no caminho da música pop anos 80. Gilberto Gil, vindo de discos espetaculares como Refazenda, Refavela e Realce, repassa prazerosamente e cheio de balanço três canções de um período em que estava emplacando sucessos ano a ano, a célebre Aquele Abraço e mais Ela e Toda Menina Baiana.

Depois de Gil temos, enfim, Dorival Caymmi. Na época, 1983, Dorival já havia gravado todos os discos que definiram sua obra – no ano seguinte gravaria o seu último disco solo, sob a batuta de Radamés Gnattali – patrocinado por uma empresa, este disco só foi lançado para o grande público no final da década de 90. Já sendo um senhor de idade – e quando não foi? –, Dorival canta A Preta do Acarajé, a canção que Carmem Miranda gravou com ele no outro lado do disco de O Que É Que a Baiana Tem. Canta com seu violão suingado, seu ritmo de samba de roda que ninguém conhece tão bem. Depois canta em companhia da filha Nana a Canção da Partida que encerra a sua Suíte dos Pescadores.

Canta em Roma, a cidade antiga, mas está tranqüilo – sua música é anterior a tudo aquilo. A música de Dorival Caymmi parece eterna, antediluviana, anterior à separação dos continentes, à criação da Terra, ao surgimento da Via Láctea. Com sua simplicidade, Dorival parece estar sempre fazendo as coisas mais belas. Poucas coisas são tão bonitas quanto a música de Caymmi.

Depois teremos Gal Costa na função de musa, cantando Índia e Canta Brasil, já numa fase bastante distante da cantora ousada que um dia tinha sido, mas ainda mantendo um repertório de qualidade e original (não por muito tempo). Em seguida, Caetano Veloso, acompanhado da sua Outra Banda da Terra (provavelmente a fase mais feliz de sua carreira), canta dois clássicos desse período, Lua de São Jorge e Sim/Não, para em seguida mostrar aos italianos sua versão em voz e violão para Eu Sei Que Vou Te Amar, da dupla Vinícius/ Jobim.

Para sugerir que o percurso está acabando, voltamos a João Gilberto. Canta duas de Jobim, Wave (que havia gravado no disco Amoroso) e em seguida Insensatez – cuja gravação original é do seu terceiro disco, aquele em que Jobim arranjou apenas uma parte das faixas – e talvez sejam os arranjos mais bonitos que fez, os para Coisa Mais Linda, O Barquinho, Meditação e sobretudo Insensatez, variação de uma peça de Chopin. João regrava Insensatez três anos depois de voltar a morar no Brasil, depois de décadas no exterior – onde, depois das suas gravações históricas com Jobim na Odeon, fizera discos antológicos como João Gilberto En Mexico, o já citado Amoroso e o disco branco João Gilberto, onde interpretava, entre outras, Falsa baiana. João aparece no filme só nos shows, só com sua voz e com seu violão sincopado e constante, sua batida que mudou tudo, que parece ter uma firmeza que nos sustenta, que funciona de chão para o nosso dia-a-dia. A Itália certamente devia um registro de alto nível da música de João, uma vez que foi a península que, duas décadas antes, teve a sorte de ser o lugar escolhido para uma turnê de João com seu xará Donato – turnê da qual não há registros conhecidos. Depois, mais um registro histórico – João canta Louco (Ela Era Seu Mundo), uma canção de Wilson Batista que, mesmo sendo comum em seus shows, ele nunca gravou em disco. João dá seu recado ao regravar Wilson, assim como já regravara diversas vezes Geraldo Pereira ou Janet de Almeida – se sua música é aparentada com a eternidade de Caymmi e com a sofisticação de Jobim, ele também é herdeiro e intérprete da música carioca da época do rádio, sobretudo do samba sincopado dos malandros da Lapa.

Depois do prazer de ver e ouvir João Gilberto, temos a explosão da batucada para terminar o filme – seria uma oposição dialética entre Apolo e Dionísio? Ok, isso foi uma piada. Então, canta Caetano Veloso É Hoje, o samba da União da Ilha, para depois Gal cantar o hit Festa do Interior e terminar com Armandinho e os Novos Baianos Moraes Moreira e Paulinho Boca de Cantor apresentando Vassourinha Elétrica e depois Pombo Correio, em cima de um trio elétrico que se arrasta pelas ruas de Roma.

Temos aparições antológicas, então, da geração tropicalista, dos Novos Baianos, de Batatinha, de Armandinho. E temos a oportunidade de assistir a Caymmi e João Gilberto. Azar se não for bom cinema, o cinema que se dane – porque coisa melhor não há.

Texto publicado em dezembro de 2002