24/07/2008

Novo cinema vivo

Recentemente, tivemos a notícia de que foi aprovada pelo Congresso a prorrogação e ampliação das leis de incentivo à produção audiovisual, além da criação de um fundo governamental de suporte à área. Esta ação se baseia na crença de que a produção audiovisual possui um valor cultural em si que justifica a sua manutenção através do apoio estatal (e, é claro, baseia-se também no reconhecimento implícito de que não há condições de mercado para sua auto-sustentação). E em que se baseiam as escolhas feitas pelos agentes do suporte estatal? Na avaliação de uma necessária representatividade cultural – ou seja, que os projetos escolhidos, em sua complexidade, ofereçam o retrato cultural mais “correto” possível da vida e dos desejos dos cidadãos do país. Com maior ou menor gradação, esta preocupação está na pauta de todos os agentes governamentais incumbidos de apoiar a produção audiovisual brasileira – ela sustenta a lógica da atual opção pelo apoio à regionalização das produções, por exemplo. Não é surpreendente, portanto, que o movimento do Cinema Novo volta e meia seja evocado feito fantasma insepulto para assombrar as novas produções - afinal, uma das preocupações fundamentais daqueles filmes é justamente esta: como retratar no cinema as principais questões da sociedade brasileira (e, assim, participar de sua transformação)? A questão seguinte também ainda incomoda, sobretudo num país em que a maior parte da produção de audiovisual independente é mantida pelo Estado: quem define quais são estes temas de interesse? E de que modo?

Algumas das cisões decisivas do período cinemanovista continuam dividindo as opiniões: os filmes a serem produzidos devem ser muitos e baratos (seguindo a lógica franciscana da frase de Saraceni sobre uma idéia na cabeça, uma câmera na mão e nada além do necessário) ou devem apresentar características (narrativas e estéticas) que permitam a inserção no mercado (porque, como já disse Gustavo Dahl décadas atrás, mercado é cultura)? Não custa lembrar que, dos mais de setenta filmes que estrearam em São Paulo em 2006, nem vinte deles tiveram público acima de dez mil pessoas, e somente dois passaram da barreira de um milhão de espectadores. Ou seja, talvez até se possa afirmar que “mercado é cultura”, mas a coisa se torna complicada no sentido inverso – se toda a cultura dependesse do “mercado”, ou seja, do comércio dos filmes, não teríamos nem cinco filmes brasileiros sendo produzidos por ano. Por isso se faz necessário o apoio estatal – mas para que tipo de filme? Se notamos que os duelos recentes em torno desta questão tiveram como protagonistas alguns célebres cinemanovistas (o já citado Gustavo Dahl até recentemente na presidência da Ancine, além de Orlando Senna na Secretaria do Audiovisual e Carlos Diegues, Luiz Carlos Barreto e Arnaldo Jabor questionando publicamente as escolhas governamentais – apoiadas, por outro lado, por nomes como Paulo Cezar Saraceni, Vladimir Carvalho e Nelson Pereira dos Santos), percebemos então mais uma razão para que as preocupações acerca de representação cultural do país (naturais do Cinema Novo) permaneçam à tona, reavivando velhos confrontos. Não é apenas uma certa ideologia cinemanovista que faz parte do poder atualmente – os próprios participantes do movimento continuam em primeiro plano.

Mas não é somente a agenda nacional-populista que esteve na base das idéias cinemanovistas - a contestação ao modelo vigente de narrativa cinematográfica, preocupação comum a todos os filmes, textos e diálogos do movimento, está hoje escanteada, presente em um número reduzido de filmes e não raro vista preguiçosamente como uma questão “datada”. Se as preocupações estéticas hoje são outras, o interesse cinemanovista em retratar a sociedade brasileira segue presente em numerosos filmes, de “Central do Brasil”, de Walter Salles, a “Amarelo Manga”, de Cláudio Assis, de “Cronicamente inviável”, de Sérgio Bianchi, a “Dois Filhos de Francisco”, de Breno Silveira, assim como em muitos dos documentários brasileiros recentes (“Vocação do poder”, “Ônibus 174”). É claro que isto também pode ser apontado em filmes recentes dos próprios veteranos do movimento, tão diversos como “O Maior Amor do Mundo”, de Diegues, “Edifício Master”, de Eduardo Coutinho, “Banda de Ipanema”, de Saraceni, e “Brasília 18%”, de Nelson Pereira. Da mesma forma, as preocupações em torno do “diálogo com o público”, comuns nos escritos dos anos 60, ainda são recorrentes (e é curioso que às vezes se conceda aos filmes mais preguiçosos a justificativa de supostamente procurarem este “diálogo com o público”).

No entanto, para compreender as grandes mudanças de perspectiva, é preciso ter em mente as diferenças de conceituação: o Cinema Novo que estava acontecendo nos anos 60 não foi em momento algum a mesma coisa que o Cinema Novo que podemos compreender hoje – até porque não se pode comparar o momento em que surge um movimento ao momento em que suas propostas, já consolidadas, permanecem presentes diante de novas circunstâncias. Aquele foi um movimento de jovens em busca de uma certa arregimentação coletiva a partir de interesses comuns, enquanto hoje o que temos é a permanência de temas, esta série de características percebidas historicamente que continuam presentes nos filmes recentes. Não faz sentido conceituar Cinema Novo tão-somente como sinônimo de um grupo fechado com propostas já há muito conhecidas. Esta conceituação equivocada, bastante comum nos dias de hoje, é na minha opinião a chave para compreender a recente recusa de Nelson Pereira em ser classificado como cinemanovista, a ponto de preferir que seus filmes dos anos 60 não fossem incluídos na mostra atualmente em cartaz no CCBB-SP (o que gerou um certo desencontro de informações para alguns jornalistas). Ainda que na década de 60 ele tivesse opinião diferente (Nelson já se disse parte do Cinema Novo, como se pode verificar numa entrevista de 1964 publicada em “O Processo do Cinema Novo”, de Alex Viany), eu enxergo certa lógica na recusa: com a distância histórica, as crenças e os caminhos dos cinemanovistas (os que sobreviveram) se distaciaram das que Nelson escolheu, a seu ver – porque o que era Cinema Novo em 1964 é diferente do que é o Cinema Novo em 2007.

Rever os filmes do período em um panorama amplo nos dá a chance de tentar compreender o percurso dessas idéias ainda tão presentes. E não importa se esta compreensão parcial do percurso não é o mesmo que vivê-lo – afinal, esta revisão pode gerar novos percursos. Esta inquietação gera uma contaminação certamente muito mais interessante do que a preguiça dos que têm por hábito não ver os filmes e repetir os velhos discursos (isso parece uma obviedade, mas é preciso lembrar que ver os filmes é imprescindível para poder pensar e falar sobre eles).

Há atualmente diversos empecilhos que impedem a difusão adequada dos filmes brasileiros – esta velha questão, anterior ao período do Cinema Novo e bastante discutida naquele momento, continua tristemente atual em meio a todos os processos de modernização: quase todos os filmes brasileiros, recentes ou antigos, são inacessíveis para a imensa maioria da população. Há poucas salas para exibi-los, os lançamentos em DVD são limitados e eles praticamente não são exibidos nas emissoras de televisão, nem mesmo nas redes públicas (e por que não são? Eis a questão!).
Isso não impede, no entanto, que a linguagem audiovisual seja renovada pelos filmes e compreendida de modo cada vez mais ágil pelos espectadores de uma era posterior ao surgimento dos videoclipes e videogames. Pensar nas relações que podem nascer da agilidade inconstante dos olhares de hoje com a inquietação criativa e transformadora daqueles filmes dos anos 60 já é um bom motivo para uni-los em seqüência mais uma vez – e poder (re)ver os filmes daquele movimento de jovens em busca de novos caminhos audiovisuais. Porque há novos cinemas a surgir por aí, vários movimentos jovens e potencialmente criativos que estão aparecendo no panorama do audiovisual brasileiro – e é preciso saber o que nossos cinemas ainda têm de novo para poder alimentar o que vem pela frente

Texto publicado no caderno Fim de Semana da Gazeta Mercantil de 9/02/2007