25/07/2008

Fragmentos de vida

Sabemos que o cinema se constrói a partir de fragmentos. Cada filme é feito pela montagem em seqüência dos planos rodados. E um país se constrói também por fragmentos – por pessoas, lugares, eventos –, mas a realidade não tem quem a ordene e ponha em seqüência lógica. Qualquer retrato que venha a ser feito ambicionando ser total e integral lhe será infiel – uma vez que, antes que esteja acabado, esta realidade já terá se modificado. Nenhum filme pode dar conta sequer de uma pessoa, quanto mais de um país inteiro. Portanto, não poderá ser senão por fragmentos que um cinema brasileiro irá ter algo a dizer sobre este país.

Muito já se falou em torno da histórica disposição dos cinemanovistas de “descobrir o Brasil” através do cinema. No entanto, a própria hegemonia deste discurso acabou por engessar a construção do olhar do cinema brasileiro – e as já envelhecidas teses nacionais-populares não raro se tornam argumento em prol do cinema mais conservador e desprovido de ousadia feito em Terra Brasilis. Não foram poucas as vezes em que as visões cinematográficas mais tipificantes e vampirizadoras se ampararam no discurso de “mostrar o Brasil de verdade”.

Os olhares históricos, nos últimos anos, em geral têm preferido as versões amenas e glorificadoras (ou, inversamente, negativas) das personagens mostradas à humanização das mesmas ou à atualização dos conflitos que protagonizaram – são armadilhas em que muitos tropeçam por conta do intento de se tornarem agradáveis ao público que hoje freqüenta cinemas em salas de shopping centers (intento, note-se, em raras ocasiões alcançado). É o que ocorre em grande parte dos retratos referentes à fase dos militares (O Que É Isso, Companheiro?, de Bruno Barreto, Lamarca, de Sérgio Resende, entre outros) ou a outros momentos históricos (Olga,de Jaime Monjardim, Diários de Motocicleta, de Walter Salles, Guerra de Canudos, de Sérgio Resende, entre outros). Da mesma maneira, as visões sobre favelas, subúrbios ou comunidades rurais esbarram em olhares mitificadores, pouco interessados em dramas que não corroborem suas teses. É o caso de Orfeu, de Carlos Diegues, de Quase Nada, de Sérgio Resende, e, de forma realmente patológica, de Deus É Brasileiro, também de Diegues (em que um Deus desanimado passeia por um país desajustado às suas vontades) - bem como dos sucessos de bilheteria Central do Brasil, de Walter Salles, e Cidade de Deus, de Fernando Meirelles. E se as alegorias, sempre um tanto totalizantes, hoje estão fora de moda, ainda percebem-se eventualmente algumas tentativas de propor teorias nacionais a partir destas encenações de momentos históricos ou de conflitos contemporâneos. Como, pela natureza da estrutura de produção de cinema que se estabeleceu nos últimos anos no Brasil, cada realização passou a depender, sobretudo, do talento e da vontade de cada realizador, em diversos casos tivemos exemplares bem-sucedidos – na maioria dos casos, foram filmes em que as teorias nacionais são antes atacadas de forma original do que impostas através de uma estética arcaica. É o que ocorre na relação entre estrangeiro e nacional em Amélia, de Ana Carolina (quando nenhum dos lados tem o privilégio da razão), na oposição entre liberdade e regras sociais em Abril Despedaçado, de Walter Salles (quando o conflito de mortes só pode ser encerrado com a fuga, sem conciliação possível) ou na nova configuração do conflito entre classes sociais presente em O Invasor, de Beto Brant (em que a instabilidade entre ricos e pobres não gera conflito e sim uma união constrangida de interesses).

Enquanto o cinema em chave épica, aquele que procurou falar de um certo caráter nacional, embrenhou-se diversas vezes nos últimos anos em armadilhas das totalizações, mais felizes têm sido os resultados das obras que se interessaram pelo íntimo de seus personagens. Seja com personagens históricos (em Madame Satã, de Karim Aïnouz, por exemplo), com personagens periféricos (Um Céu de Estrelas, deTata Amaral, O Primeiro Dia, de Walter Salles) ou dentro do registro documental (Nelson Freire, de João Salles, Santo Forte, Edifício Master e todos os demais filmes de Eduardo Coutinho), foram muitos os casos nos anos recentes em que a aproximação do cotidiano trouxe olhares inquietos sobre pessoas e personas - pequenos fragmentos do país.

É interessante, neste caso, notar a experiência do veteraníssimo Nelson Pereira dos Santos, que optou por fazer dois filmes ao retratar a vida e obra de Sérgio Buarque de Hollanda. Se um filme nunca poderá contar de forma inteiramente fiel uma vida, Nelson faz justamente do choque entre seus dois filmes a riqueza do seu retrato. Dedicando a primeira parte a mostrar a família e as lembranças que cada um tem de Buarque de Hollanda (o retrato íntimo) e a segunda a narrar seu percurso intelectual e familiar, sempre relacionando a uma visão da história do país (o retrato histórico), Nelson Pereira soube dar a seu personagem a imagem de grandeza e de afetividade que lhe interessou. E, mesmo unindo o retrato histórico e o da intimidade, conseguiu transmitir a sensação de que os seus filmes não darão conta da pessoa retratada nem tampouco pretendem fazê-lo. Que o filme duplo de Nelson tenha sido pouco visto e entendido, isso sugere muito das dificuldades que um cinema brasileiro terá para provocar discussões entre seu público.

Mas, se ainda é possível que se diga que o filme de Nelson Pereira, por sua própria natureza, não mostrava maiores ambições em atingir o público, mais incômodo e preocupante é o caso das Garotas do ABC de Carlos Reichenbach. Retratando dramas cotidianos de um grupo de operárias da periferia urbana de São Paulo, o filme de Reichenbach teve um sério entrave: para o público que hoje freqüenta as salas de cinema, não há nada mais distante do que este tipo de retrato do cotidiano. Acerca de filmes com personagens do subúrbio das grandes cidades, percebe-se interesse do publico pagante por narrativas em torno de traficantes ou matadores (é o caso, por exemplo, de Cidade de Deus), ou mesmo pela violência que cerca o cotidiano das famílias (como em Contra Todos), mas o mesmo interesse não se manifesta pelas questões afetivas de mulheres trabalhadoras do subúrbio. O público que se interessa por este retrato afetivo do cotidiano habita outro lugar, social e geográfico – e o cinema brasileiro não consegue mais chegar a esse público, de renda baixa, que em outros tempos foi o seu principal destino, o seu mais fiel companheiro.

Chegamos, portanto, a um ponto, já antigo e bem conhecido, que enclausura a discussão de idéias e mantém uma imensa parte do cinema brasileiro à beira do autismo: é a ausência de uma estrutura de difusão dos filmes, seja em salas de cinema, nas locadoras ou na televisão. Cinema é feito para ser visto e ouvido – e não são brasileiros os filmes disponíveis para a gigantesca maioria da população. Tendo seu mercado consumidor tomado e eventualmente sendo reduzido a um gênero cinematográfico (não é raro encontrar locadoras separando os filmes brasileiros em prateleiras específicas, como é feito com dramas, policiais e comédias), o cinema aqui produzido sustenta-se quase integralmente através do suporte estatal, por meio de concursos e leis de incentivo. Mantido desta forma, tem abafados seus discursos e limitada sua capacidade de diálogo dentro da sociedade. Com raras exceções, quase sempre dignas de comemoração, a maior parte dos filmes brasileiros só consegue ter acesso a um público restrito às salas-bistrô do cinema de arte. Certamente seu impacto sobre este público pode ser profundo em diversos casos e escalas. Mas há um problema evidente nesta relação, na qual o Estado brasileiro cumpre o papel de mitigador de conflitos, sustentando através de esmolas (às vezes bastante caras) uma produção contínua que não é vista pela população que a sustenta. Adicionando-se a isso a lembrança de que o próprio Estado mantém uma rede de programação televisiva, onde não são exibidos os filmes que patrocina, temos então um triste retrato dos vícios criados por uma legislação baseada no princípio de manutenção de um hipotético “mercado cultural” (por mais paradoxal que seja o conceito). Feitos para criar um mercado e não tendo acesso às salas, locadoras e redes de televisão deste mercado, os filmes, como se pode perceber em diversos casos, têm procurado se adequar aos formatos mais palatáveis para o público de cinema.

Certamente devemos comemorar a cada ocasião em que um filme é bem-sucedido, seja comercialmente, quando vence as armadilhas da exibição e alcança um público expressivo, seja sobretudo esteticamente, quando sabe ignorar estas armadilhas e se faz maior – vale lembrar a bela frase de Paulo José, quando uma vez disse que o Brasil às vezes ainda faz o melhor cinema brasileiro do mundo. No entanto, não se pode negar a evidência: se esse cinema só pode ser visto por uma elite, os filmes bem-sucedidos podem ser centelhas, fagulhas que provocam o incêndio, mas esse cinema, no aspecto geral, jamais poderá ser a fogueira ou mesmo parte dela. Pode, de todo modo, retratá-la através dos seus fragmentos – e é preciso sempre notar a força que certos filmes mostram em seus resultados finais.

Do que precisa então o cinema brasileiro para trazer inquietação, discussões e novas idéias à nossa sociedade? Necessita de ousadia, certamente – precisa querer incomodar, como cabe à melhor arte. Mas necessita, antes de tudo, que seja difundido de forma ampla (e não somente nos ocasionais eventos midiáticos criados pela Globofilmes). Para isso, é preciso encontrar seu público, ser exibido onde ele está, seja na rede pública de televisão ou em estruturas de difusão alternativas. Como se sabe, as visões mais ricas são as que conseguem abarcar fragmentos em maior número e diversidade possível. E este cinema precisa ser visto.

Texto publicado na edição nº 4 da revista Pensar Brasil, de maio-junho de 2005