24/07/2008

O Olhar de Mario Carneiro


Quando observamos em retrospecto, torna-se evidente como o trajeto estético percorrido por Mario Carneiro ao longo dos filmes em que trabalhou é fundamental na construção de visualidade própria do cinema feito no Brasil nas últimas décadas. Mais do que um simples modelo, o que o olhar de Mario Carneiro estabeleceu (junto com seus parceiros) foi a concepção de uma luz ao mesmo tempo complexa, com alto grau de elaboração, e simples, a partir de poucas fontes de luz. É comum e natural que o seu trabalho como artista plástico seja relacionado aos filmes que fez, como forma de compreender, através de sua trajetória, como se impôs o grau de sofisticação presente nos trabalhos de Mario – estes trabalhos que logo se tornaram referências no imaginário dos cinemas brasileiros. No entanto, ao vermos em conjunto as imagens que fez para dezenas de filmes desde o final dos anos 50, o que se torna notável não é apenas a sofisticação de um olhar acostumado a trabalhar imagens, mas sobretudo o modo como esta sofisticação se constrói: é um modo de poucos e bem-utilizados recursos, trazendo aos filmes um estilo visual simples, que se adequou tanto aos instantes em que as narrativas se voltavam à apreensão do cotidiano quanto aos momentos de construções visuais mais dramáticas e recortadas.

Esta simplicidade comum aos trabalhos de Mario Carneiro precisa ser relembrada ao se discutir o grau de influência deste olhar “pictórico” para registrar que o seu cinema não se trata de uma arte “armada”, como se fosse mera importação da construção pictórica para o registro fotográfico contínuo. Ao contrário – antes de apresentar uma “armação visual de mundo”, em que cada elemento parece ser exibido tão-somente para dar estrutura ao quadro (algo comum a muitos cineastas que elevam a estilização ao extremo), a visualidade dos filmes feitos por Mario Carneiro apresenta-se como uma construção a partir dos elementos do mundo. Estes “murais em movimento” organizam as imagens a cada instante a partir de uma conjugação de rigor, clareza e sensibilidade. Isto é evidente em diversos trabalhos seus, tanto no início da sua carreira em cinema, em Arraial do Cabo, de Paulo César Saraceni, quanto em anos recentes – em 500 Almas (que só tem o sol como fonte de luz), de Joel Pizzini, por exemplo.

Mário Carneiro, sempre um grande prosador, formou diversas parcerias ao longo dos anos – com Joaquim Pedro de Andrade, com Domingos de Oliveira, com Fernando Coni Campos, sobretudo com os citados Pizzini e, mais ainda, Saraceni. De Arraial do Cabo a 500 Almas, passando por Couro de Gato, Porto das Caixas, O Mágico e o Delegado e Harmada, entre tantos outros, sobressaem ao mesmo tempo uma coerência estética rara e uma beleza comum a todos os filmes – talvez sejam causa e conseqüência, talvez não. Cada filme tem suas características, seu tom próprio. Arraial do Cabo até hoje impressiona com suas imagens dos pescadores registradas num preto-e-branco cheio de sol, enquanto Porto das Caixas parece ser feito na palheta inversa, em meio à escuridão. Se Couro de Gato voltou à favela seguindo as lições de Rio 40 Graus, O Padre e a Moça apresenta uma fotografia recortada e estetizada até onde a beleza visual permite. Se Harmada usa luzes teatrais em ambientes interiores, 500 Almas utiliza-se do ambiente externo e das cores do dia. Além disso, Mario foi um diretor de cinema que manteve seu elo com a pintura, realizando documentários sobre alguns dos principais nomes das artes plásticas no Brasil, como o seu mestre Iberê Camargo, e ainda Milton Dacosta, Lygia Clark, Anna Bella Geiger, Cícero Dias, entre outros.

A memória do cinema brasileiro quase sempre esquece dos seus principais artistas – e sobretudo seus técnicos-artistas, aqueles que participaram da criação sem deixar a assinatura de realizadores. Há uns poucos que se tornam lendas entre iniciados, mas a verdade é que é bastante difícil imaginar um festejo para um técnico do cinema brasileiro - seja ele um diretor de fotografia, um montador ou um editor de som – que permita reunir diversos trabalhos seus numa mostra de filmes. É esta oportunidade que o Centro Cultural Banco do Brasil está oferecendo aos seus freqüentadores – e assim, de certa maneira, podemos imaginar quantos técnicos e artistas são necessários para gerar uma cinematografia.

Entre muitos, que se homenageie agora o talento de uma figura especial. A grandeza dos trabalhos do artista e técnico Mario Carneiro nos permite celebrá-lo nesta mostra. Portanto, vamos aos filmes.

Texto escrito para o catálogo da mostra Homenagem a Mario Carneiro, realizada entre abril e maio de 2007 no CCBB do Rio e SP.