07/07/2008

Criação (Ficciocrítica a partir de A Bela Intrigante, de 1991)

Texto escrito em fevereiro de 2004 para o folheto da Sessão Cineclube no Cinema Odeon




Criar (e recriar) o novo/belo não é coisa fácil. O que se cria? E como proceder? E o que acontece com a vida? Criar e viver bem são coisas que se conciliam, se confrontam ou ambos?

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O João chegou ao Odeon ainda cedo, bem antes da Sessão Cineclube. Comprou seu ingresso logo, pegou um folheto como este e teve que fazer hora até a sessão – ficou passeando, esperando Maria, sua namorada, pensando no filme que ia ver, nas coisas que queria sentar para escrever quando chegasse em casa e achando tudo muito estranho na Cinelândia.

Vera teve que estacionar o carro correndo, em cima da hora, e Camila, sua filha de dezesseis, veio reclamando o caminho todo por conta disso, era melhor ter pego o metrô, além de estacionar no Centro ser terrível – ou caro. Mas já não via ela há tempos, e nem se incomodou tanto – Vera apostava que o filme ia ser bom. Em filme francês ela confiava, só receava que fosse muito longo, mas era do Rivette, cineasta da Nouvelle Vague que tinha feito recentemente Quem sabe, que ela tinha gostado muito. E era sobre pintura, ela queria dar uma boa educação artística para a filha. Entraram correndo na sala e não houve como negociar: a mãe fez questão de sentar nas cadeiras mais distantes da tela, "para não perder as legendas". Camila teve que aceitar, resignada, já sabia que teria que escutar durante todo o filme os comentários da mãe. Vera começou notando certos aspectos teatrais na relação dos atores. Ela gostava disso, um certo tom de encenação que lhe parecia sutil, começando sem parecer que começava. Mas achou graça e comentou (num tom mais alto do que Camila achava necessário) que o Michel Piccoli estava a cara do Iberê Camargo. Camila não sabia quem era Iberê Camargo, e Vera se prometeu mentalmente que iria mostrar um álbum a ela mais tarde.

Renata, ou Dona Renata, como lhe chamavam já os funcionários do Odeon e os organizadores da sessão, estava feliz por poder ver aquele filme dos anos noventa que ela tinha ouvido falar muito bem mas tinha perdido. Mas também estava chateada por saber que a sessão não teria debate (ela gosta muito de assistir) e o filme teria quatro horas, o que é uma verdadeira prova de resistência física, coisa própria para jovens como os rapazes da Contracampo, mas não era mais algo agradável para ela. Mas com poucos minutos já estava encantada. A atuação do Piccoli, a beleza das pinturas... ela achava graça que mesmo os desenhos que lhe pareciam lindos não agradavam o pintor – Freinhofer, o personagem, chega a dizer que não fez nada de bom. E que menina linda essa garota, a Béart...

João estava um pouco sem graça, já que não imaginava que tinha convidado Maria para ver um filme que teria Emmanuelle Béart nua por horas a fio. E nem podia comentar como ela era bonita! Se quando ele disse "meu deus!" ela já tinha ficado brava, imagine se falasse dos seios ou do bumbum? Ele já conhecia Maria – era motivo para brigar a noite inteira! Mas tudo bem, menos mal que o filme parecia cada vez mais interessante. E ela também parecia estar gostando, apesar do olhar enfurecido na hora do comentário. Era o caso, então, de disfarçar a reação ao ver a nudez da personagem.. era só pensar como o pintor! Mas ele mesmo, Freinhofer, tem um tom de sátiro, de artista sacana, então ficava difícil não dar bandeira. Mas Maria estava quieta. Embora João tenha achado que ela quase chorou num certo ponto, quando a modelo se impõe ao pintor e, ao mesmo tempo, vê sua vida privada ruir.

Dona Renata ficou fascinada com a relação sofrida do pintor com sua arte. Achou muita graça quando viu as manias que Freinhofer tinha para começar a pintar, andando de um lado para o outro, mexendo em tudo para poder se concentrar. Quando viu o pintor forçando a modelo a posições incômodas, lembrou de um outro filme francês e das histórias que tinha lido sobre Rodin e sua relação com seus modelos. Incrível, ela achou, essa coisa de relacionar um certo êxtase do sofrimento com a criação, que afinal era um dos temas do filme. Pensou no seu filho, Cláudio, que ela queria que tivesse sido músico, e no seu neto de seis anos, Pedro. Será que seria uma boa vida ser artista, como ela sempre sonhou para eles?

Vera também lembrou de Rodin, e falou com Camila. Sim, ela sabia quem era, mas não, nunca tinha visto as estátuas dele (e Vera novamente se prometeu que iria corrigir isso). Mas Camila parecia realmente entretida no filme, que bom. Vera sentia que a filha se interessava mais pelos comentários sobre cinema, e falou rapidamente sobre os planos longos. Eram todos muito simples, deixavam a imagem fluir, fosse dos atores ou de um desenho.

João sentiu que Maria ficou bem perturbada pelo final do filme. Ele se sentiu muito incomodado por não ter visto o quadro, mas achou ao mesmo tempo que era uma boa solução. Mas ela realmente ficou incomodada com a história. Ele não entendia direito o que se passava na cabeça dela, e nisso até se sentiu próximo ao personagem casado com Marianne no filme, Nicolas. Talvez fosse isso, Maria talvez estivesse se identificando com Marianne, mas... em quê? Ele, no entanto, não podia negar: sentiu-se provocado por não ver o quadro. Achou que Freinhofer era um tremendo covarde, no final das contas. Chegou a comentar isso com Maria. Pra quê, meu Deus?! Foi só ele falar isso que ela mostrou o quanto estava transtornada com o filme: então era para expôr a garota?, era para mostrar que ele, Freinhofer, era o grande gênio, o machão insuperável? Para mostrar que ele criava arte destruindo a vida? A vida é mais importante que a arte!, foi o que ela vociferou. Só restou a João pedir desculpas (ela também pediu) e concordar, que ele não é tão bobo assim. Na verdade, estava louco para chegar em casa e sentar no computador para escrever. Queria se arriscar como Freinhofer sugeriu, fazer tudo certo e depois ir além. Não ia mais escrever o ensaio em que estava pensando – ia arriscar uma ficção misturada com crônica da sua vida. Sem medo, pelo menos na disposição. Mas sem ser cruel – foi aí que se deu conta de que, no fundo, ele dava razão a Maria.

Renata emocionou-se com a coragem de Freinhofer em perder sua criação. Ficou novamente triste porque não haveria debate naquela noite. Na saída, tomou coragem e chegou a sugerir ao Ruy que o debate da semana seguinte também falasse de A Bela Intrigante. Ficou conversando um pouco, aprendendo sobre a carreira do Rivette, que, agora ela sabia, foi um dos críticos da Cahier du Cinéma que fizeram a Nouvelle Vague. Agora ela quer ver A Religiosa, que o Ruy disse que é o filme antigo mais conhecido dele, e também esse recente, o Quem Sabe. Ela ainda perguntou ao Ruy "por que é que vocês do Estação não organizam uma mostra com os filmes do Rivette?", mas o Ruy explicou que ele não era do Estação. Mesmo assim, disse ele, um dia isso há de acontecer aqui no Rio. Dona Renata lembrou de novo de Cláudio e de Pedro. Resolveu que no dia seguinte iria comprar para o neto muitas tintas guache e cadernos para ele começar a pintar.

Vera estava bem feliz pelo filme e por ter saído com a filha. Só não esperava ter que ouvir o que ouviu dentro do carro. Camila começou falando que tinha que escolher logo o que fazer no vestibular. Oras, grande novidade... E a garota logo emendou que sabia que agora era moda, que não era fácil passar nem que seria fácil viver disso, mas que ela estava resolvida: queria fazer cinema. Vera ficou sem saber o que dizer – ela não gostou nem um pouco da idéia, mas como agir numa hora dessas? Chegando em casa, lembrou do Rilke (e mostrou o livro à filha). Se lhe parecesse que seria impossível viver sem fazer aquilo, que fosse em frente, foi o que falou a Camila. E disse que, como o filme mostrava, isso não era trabalho que se faz sem envolver toda a vida. Sim, a filha sabia disso. Mas como fugir do que a gente quer criar?