21/07/2008

Coração Iluminado (1998)

"Coração Iluminado" é um filme raro. É para ser guardado, visto e revisto. Não ganhou prêmio nenhum, parece que nem foi muito percebido. O filme foi um fracasso de público, e foi vaiado em Cannes, por um público ávido por Schwarzenegger e seus arrasa-quarteirões. Também no Brasil passou incólume por algumas festividades. É pena. Repito, não é um filme qualquer.

"Coração Iluminado" me pareceu um filme que se torna maior que seu criador, que tem dentro de si muito mais do que quem o criou esperava dizer, de início. Uma pessoa que fala de si acaba por dizer muito mais coisas que gostaria ou imaginava, ao falar de si fala de todos, e é isso que acontece no filme. Como já disse um amigo querido, o filme parece sair das tripas do Babenco. Mais do que isso, o filme parece ter adquirido corpo próprio, olhos, cheiros, coração, o filme parece pulsar vida. De quantas obras se pode dizer o mesmo?

A partir da primeira parte, clássica, melancólica, limpa, romantizada, linda, vemos o ritual de passagem à idade adulta de um jovem, através de seus contatos com grupos e idéias e com seu primeiro amor. Em todos os filmes do mundo isso teria se bastado, mas não na vida real, e o passado nos marca, nós o carregamos conosco, ele nos conduz. E por isso uma segunda parte, tosca, violenta, amargurada, uma vida marcada por fantasmas passados, dos quais fugiu e que agora volta a encarar, um primeiro amor marcante e traumático.

Isso, na minha modesta opinião, é parte da vida, dos sentimentos humanos, essa busca do perdido, do não-conquistado. Esse é o cinema dos sentimentos, e por conseqüência das tripas. Não por acaso, surgem as histórias sobre os problemas do realizador durante as filmagens, a somatização de todas essas questões, num filme que se amplia e passa a encarar seu realizador e, por tabela, a nós, espectadores.

É isso. O Babenco sempre fez um cinema que olha para o outro, que tenha o olhar atento para questões emergentes que o cercam (como já fazia, de maneira diversa, Nelson Pereira dos Santos), isso somado a um estilo clássico e intencionalmente comunicativo. Com isso, fez o grande público discutir esquadrões da morte e corrupção policial (“Lúcio Flávio...”), o abandono de menores na nossa sociedade (“Pixote...”), prisões políticas e homossexualismo (“O Beijo da mulher aranha”), a marginália do sistema capitalista (“Ironweed”). Quis discutir também o sufocamento de culturas no "Brincando nos campos do senhor". No "Coração Iluminado", assumidamente influenciado por seus problemas de saúde, esqueceu-se da sua sociedade e virou-se para si. Fez então seu filme mais pessoal e universal. Talvez por ser essencialmente um auto-exilado, como notou Ricardo Piglia, fez um filme que transcende nacionalidades e épocas, e fala de sentimentos engasgados e personagens atormentados.

O final é evidente e ainda assim instigante. Para ele, as duas personagens femininas são uma só, e ele precisa se livrar dela. Babenco usa então a magia do cinema, o fantástico, para evidenciar relações palpáveis da narrativa. Eu não tenho dúvida, aquela mulher realmente brilha para ele, dentro daquela história é assim que as coisas são.



Texto publicado em março de 2000