15/07/2008

Duas ou três coisas que sei dele (o filme)



Grande notícia, essa da restauração do filme O Padre e a Moça, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, por ocasião do Festival do Rio. Rodado em 1965, lançado em 66, o filme está sendo apresentado em cópia nova, após a restauração de seus originais, graças ao esforço da família do cineasta e ao fundamental apoio do Ministério da Cultura. Eu disse fundamental, mas posso acrescentar também lento, limitado e desestruturado, o que é lamentável, por tornar cada caso de preservação uma via crucis a ser percorrida por abnegados, sem a estrutura de um programa de restauração que faça jus ao nome.

A primeira vez que vi O Padre e a Moça foi numa tarde de sábado, no Cine-Arte UFF, em Niterói, numa daquelas cópias sofríveis que de vez em quando o cinema tem a sorte de exibir. Logo nos primeiros instantes eu já tinha esquecido por completo os tormentos da travessa pela Baía, e tampouco me importava o mau estado da cópia. A cópia era ruim, mas o filme sobrevivia, e muito. Lembro-me de ter encontrado com alguns amigos no fim da sessão, e todos comentávamos a força do filme, aquela beleza impressionante, o choque que aquela exibição nos causou. É uma das grandes alegrias que um filme pode nos dar, o prazer que vem no fim das sessões, quando nos damos conta de como o que vimos se comunicou conosco, e vamos então trocar impressões com nossos comparsas.

Há alguns filmes que podem nos dar mais que isso, filmes que podem nos marcar a memória e passar a ser um parâmetro, uma ruptura, um doce fantasma que passa a nos perseguir. E, na minha listinha pessoal, O Padre e a Moça é um deles. (Não só na minha, depois eu descobri vários outros fãs do filme).

Foi o primeiro longa de ficção de Joaquim Pedro de Andrade, baseando-se num poema de Carlos Drummond de Andrade, depois de já ter feito o curta Couro de Gato (parte de Cinco vezes favela) e os documentários Garrincha, Alegria do Povo, O poeta do castelo, sobre Manuel Bandeira, e O Mestre dos Apipucos, sobre Gilberto Freyre. A fotografia, câmera e cenografia são de Mário Carneiro. A montagem foi feita por Eduardo Escorel, também assistente de direção. A música foi feita por Carlos Lyra, a partir de temas religiosos eruditos, e foi executada pelo Quinteto Villa-Lobos, com orquestração de Guerra-Peixe.

Todos os citados saem-se magnificamente bem em suas funções. Mário Carneiro exercitou como nunca a sua experiência de gravurista e estudante de artes plásticas, discípulo de Iberê Camargo. Assim como Joaquim Pedro, estava chegando à casa dos trinta, e já era então um dos mais respeitados fotógrafos brasileiros, após ter co-dirigido Arraial do Cabo, com Paulo César Saraceni, e ter cuidado das luzes dos filmes deste e de Joaquim Pedro. A relação dos dois sempre foi complicada, produtiva, sem dúvida, mas oscilando entre o carinho e as disputas. No caso do O Padre e a Moça, Carneiro sempre conta que Joaquim Pedro demorou quase vinte anos para reconhecer o valor da fotografia do filme. Ao longo das filmagens, o diretor temia que seus atores seriam obscurecidos pelas sombras do fotógrafo. Afinal, dizia ele, cinema não é gravura.

Foi o último trabalho dos dois juntos. Não, minto. Foi, sim, o último longa de Joaquim Pedro fotografado por Mário Carneiro. Mas o único longa dirigido por este, Gordos e Magros, foi produzido por Joaquim Pedro, uma década depois do Padre e a Moça.

A fotografia do filme, sempre irretocável, realmente incomodou Joaquim Pedro. Somente após rever o filme, quase vinte anos depois, num festival europeu, que o cineasta valorizou a beleza do que fez e reconciliou-se com o filme, estimulado pela ótima acolhida do público na oportunidade. Chegando ao Rio de Janeiro, fez uma visita ao amigo para contar a novidade, acompanhado de um presente importado da Escócia.

Na frente das câmeras, temos a estréia de Paulo José no cinema, e mais Mário Lago e Fauzi Arap, todos atores vindos do teatro.

(Na verdade, por uma dessas sortes históricas, Paulo José entrou no filme já às vésperas das filmagens. Também em seu caso foi o primeiro filme de que participou, o ator que estava inicialmente escalado, Luiz Jasmin, adoeceu, já em Minas Gerais, após participar de meses de ensaios na casa de Joaquim Pedro, no Rio, com Helena Ignez).

Sim, e há Helena. Mariana é a moça que provoca toda a tragédia, que vira a cabeça de todos no vilarejo. E Helena Ignez incendeia o filme, sai-se inacreditavelmente bela no papel. Helena na época era atriz já reconhecida, tendo participado de filmes como O Assalto ao Trem Pagador e Bahia de Todos os Santos, e tendo sido também capa da revista O Cruzeiro. Sua Mariana é, de fato, encantadora. O padre, o coronel, o boticário, as luzes, a música, tudo parece ser seduzido por Mariana, por sua beleza, seu desejo, sua tristeza.

Joaquim Pedro não tinha tanta razão ao temer pelo destino de seus intérpretes. Não é raro ver, em textos sobre Joaquim Pedro, elogios à sua capacidade de direção de atores. Mas há algo especialmente magnético em O Padre e a Moça, um mistério que eu não consigo resolver atribuindo apenas à qualidade do diretor ou dos atores. O longo tempo de convivência ao longo das filmagens, isoladas do mundo, mais o nervosismo febril do primeiro longa de quase toda a equipe, e considerando-se ainda todo o enxugamento do filme na montagem, tudo isso, somado à beleza da fotografia, das interpretações e da música, tudo isso torna o filme um pouco hipnótico, mesmo com o ritmo lento, marcial, da história. Ou até também por causa dele.

O interesse do filme em contar uma tragédia amorosa rendeu críticas da parte dos amigos cepecistas e cinemanovistas a que o grupo estava ligado. De quebra, o papel dos habitantes do vilarejo é triste. São incapazes de reagir à sua exploração, vivem de procurar diamante em minas já esgotadas e só se manifestam para mostrar seu desagrado diante da situação criada pelos protagonistas. Além das desagradáveis beatas, ainda há também o caso das pessoas com bócio. Por falta de vitaminas, habitantes da região de São Gonçalo das Pedras, onde o filme foi feito, tinham essa doença, que incha a região do pescoço. A exibição dessa triste visão, ainda que sem grande destaque, desagradou tremendamente a alguns, e entre os debates dos cepecistas houve quem defendesse que Joaquim Pedro deveria ter seus filmes combatidos, que ele era burguês, aquela coisa toda. Há um caso célebre de uma discussão em que um conhecido dramaturgo do CPC dizia que os padrões éticos de Joaquim Pedro eram reacionários, e portanto ele não deveria mais fazer filmes, e o filme e o diretor foram defendidos, com bastante disposição, por Mário Carneiro.

O que pode nos trazer hoje uma história de amor considerada tradicionalista já quando foi feita?

O Padre e a Moça não volta à praça por suas inovações formais. Volta por seu interesse por sentimentos, pela beleza, pela sedução e pelo medo de se deixar seduzir. Volta porque manifesta sua opção última pela entrega sem populismos ou falsos arroubos. Conta sua história com a intensidade de um Murnau, de um Dreyer, dos grandes, enfim, daqueles que influenciavam os primeiros filmes de Joaquim Pedro, sua fase mais poética, antes da ruptura satírica de Macunaíma.

Vamos torcer para esta cópia de O Padre e a Moça voltar a ser exibida de forma devida, após a folia do festival. Mas, quanto à restauração de seus negativos, só me resta repetir o que disse no início: esta é uma grande notícia.

Texto publicado em outubro de 2000