08/07/2008

Carta aberta ao amigo Ricardo Miranda - a propósito de A Etnografia da Amizade (2007)

Texto publicado pela primeira vez em outubro de 2007.

Ricardo,

Escrevo aqui o que não pude te dizer com calma na saída do cinema, após a apresentação de A Etnografia da Amizade no Odeon. Seu filme é lindo, mas não é apenas isso que eu queria dizer aqui. Seria muito fácil simplesmente qualificar A Etnografia da Amizade como um filme lindo e emocionante – e ele é, mas por caminhos e razões muito próprios, que fazem dele um filme único. O que vejo de especial nele é o seguinte: o filme nos faz participar do afeto por Saraceni. Eu poderia dizer de maneira mais simplista que a característica que o difere de muitos outros documentários recentes é que se trata de um filme que provoca a curiosidade do espectador, que não lhe dá todas as informações de mão beijada. Mas acho que isso seria reduzir seu filme a um jogo de reconhecimento para iniciados – e ele é bem mais que isso. É bem mais que isso justamente pelo despudor em entrar nos mundos do Paulo César e se ligar intimamente a ele – no mundo dos amigos, no mundo dos filmes, no mundo dos bares, no mundo das memórias, no mundo do carnaval e tantos mais. Esse inventário dos afetos de Paulo César Saraceni não se faz como mera enumeração, mas como participação de fato (isso é bastante evidente, por exemplo, no momento em que o filme mostra as filmagens de Banda de Ipanema). Porque seu filme não apenas mostra Saraceni, ele o vê, e o vê com o seu olhar, Ricardo. E é assim que, como espectador, me senti convidado a vivenciar um pouco do afeto que Paulo César espalha e gera pelo mundo afora.

E Paulo César Saraceni é um carioca cineasta que já viveu muitos bons momentos, que já fez um bocado de filmes, que de fato tem muitos afetos espalhados e lembranças felizes – de seu envolvimento com o futebol e com o cinema, de suas viagens, de seus amigos, seus cúmplices e seus mestres, Mario Carneiro, Glauber Rocha, Lúcio Cardoso, Otávio de Farias e tantos outros. O retrato que A Etnografia da Amizade faz de Paulo César Saraceni é uma elegia a um herói da afetividade, que naturalmente é também um criador de belezas. É isso - o que esperávamos era um filme sobre um artista historicamente importante, um livre criador, e o que temos é uma exibição de evidências que, ao final, nos mostram que esse livre criador, para existir, precisa ser um catalisador de afetos, imagens e idéias. É daí que surge Porto das Caixas: mais do que por inspirações individuais, o filme surge da liga que Paulo César faz surgir a partir da amizade com Irma Alvarez, Lúcio Cardoso, Mario Carneiro, Tom Jobim... O mesmo pode ser dito de Banda de Ipanema (é a amizade pelo falecido Albino Pinheiro, por Mario Carneiro e, enfim, por todos os que criam aquela grande festa que faz o filme surgir), Bahia de Todos os Sambas (Gianni Amico,Leon Hirzsman, a cultura baiana lá retratada...), O Viajante (novamente Lúcio Cardoso, Mario Carneiro, agora Marília Pêra e, como que mostrando que os afetos unem familiarmente, Paulo Jobim, o filho de Tom) e, desconfio eu, de todos ou quase todos os filmes de Saraceni.

Por isso vi o seu filme como uma elegia a um certo cinema e, sobretudo, a um certo modo de viver a vida como obra de arte (como outros já disseram). É isso que se torna o seu retrato de Paulo César, alguém capaz de se mostrar presente e com personalidade única mesmo num comício festivo do MST. No seu filme, a vida e o modo de ser de Saraceni são a sua mais admirável obra - isso já me parecia claro no livro fascinante que ele escreveu, Por Dentro do Cinema Novo – Minha Viagem, mas no seu filme é algo que toma corpo e sentido. Desse modo, me pareceu que A Etnografia da Amizade conseguiu retratar o que Paulo César tem de mais admirável e irretratável – e, assim, dessa maneira seu filme acaba homenageando não apenas ele, mas toda uma arte de viver e criar.

Foi por isso que eu quis te escrever essa carta, para agradecer publicamente por essa feliz experiência.

Abraço grande,