17/07/2008

O Império do Desejo (1980)

A narrativa de Império do Desejo (inicialmente intitulado “Anarquia Sensual”) trabalha com uma certa unidade de espaço constante nos filmes de Reichenbach, é posssivelmente aquilo que ele chamou de “busca de uma geografia própria” na coluna que publicou recentemente no portal Cineclick – parte-se de uma situação básica em que personagens se isolam em uma casa e a relação que se estabelece provoca entre eles um ritual de transformação, de amadurecimento. Dois anos mais tarde, Extremos do Prazer chegaria ao limite (extremo?) dessa unidade, de certa forma retomada em Dois Córregos. No caso de Império..., o espaço central é uma casa na praia, para a qual vai a recém-viúva Sandra, interpretada por Meiry Vieira, no início do filme, depois de contar para nós e para seu amante boçal que só descobriu a existência do lugar depois da morte de seu marido – graças a um rábula da região, o doutor Carvalho, interpretado por Benjamin Cattan, que a procurou para expulsar os grileiros que tomavam a propriedade. No caminho, conhece um casal de “hippies extemporâneos”, Lucinha e Nicolau (ou apenas Nick), interpretados por Márcia Fraga e Roberto Miranda, ela ainda menor, ele já na faixa dos 35 anos. Sandra dá uma carona aos dois e, mais tarde, contrata-os como caseiros pelo período de uma semana, para desespero do dr. Carvalho. Na casa de dois cômodos não há mais que uma cama, mesa, panelas, uma vitrola e dezenas de discos com a música americana dos anos trinta e quarenta que tempera um certo tom satírico no filme.

Sandra parte e lá deixa o casal, depois de descobrir o apetite físico dos dois e descobrir também, um pouco assustada, que na região mora um louco, um “anjo vingador”, “um ex-tudo que liquida a porretadas: proselitistas renitentes, turistas predatórios e boçais de toda a espécie”, segundo o diretor, no mesmo artigo já citado. Este personagem, o profeta Di Branco – interpretado pelo poeta Orlando Parolini, amigo do realizador e inspirador do personagem –, é chave central para se entender as idéias e o espírito de Império do Desejo, uma vez que ele empresta uma fúria à narrativa que traz um tremendo estranhamento a uma comédia erótica que versa sobre liberdade e amor.

O filme inteiro parece se basear nos conflitos e conciliações desses dois conceitos, amor e liberdade, sugerindo uma alternativa à autoritária união de ordem e progresso e repensando e pondo em crise essa alternativa, sem pudor e com pouco tato. A história norteia isso através de três conflitos centrais: um, a liberação dos travadões, primeiro Sandra e em seguida o dr. Carvalho; segundo, o amadurecimento da relação do casal ‘hippie’, passando por experiências sexuais diversas e pelo conflito do ciúme; e, terceiro, a eliminação impaciente e despudorada dos ‘boçais de toda a espécie’ pelo anjo vingador, que não ataca nenhuma vez personagens que estejam se transformando, demonstrando clara preferência por aqueles que parecem ter idéias congeladas na cabeça – quando as têm.

A partir da saída de Sandra, estes ‘boçais’ vão se apresentando – com exceção do namorado dela, Odilon, que já aparecera no prólogo –, às vezes invadindo o cotidiano do casal, como no caso das duas garotas reprimidas interpretadas por Aldine Müller e Martha Anderson ou dos dois bandidos que surgem fazendo referência ao clássico Bang-bang, às vezes fugindo completamente à trama central, como acontece com o casal porcalhão que toma sol demais e suja tudo à sua volta – lembrando A Mulher de Todos – ou com a chinesa que invade a praia para entrevistar Di Branco para um jornal subversivo e transa loucamente com ele, citando toda sorte de chavões comunistas (“O movimento deve vir das bases, de baixo para cima”, diz ela enquanto transa com o poeta), até ir parar no caldeirão em que ele cozinha algumas das suas vítimas.



Tentado pela beleza de Lucinha, o dr. Carvalho leva duas prostitutas para entreter Nick enquanto tenta seduzir ela, que se entrega por gratidão e sem tesão – levando Nick a se perguntar, enciumado, “onde acaba o libertário e começa o promíscuo”. Afinal de contas, o amor livre do casal hippie não pode ser a versão jovem da suruba burguesa, como já comentou uma amiga comigo. O drama de Nick é descobrir onde se realiza na prática essa diferença.

No dia seguinte, Carvalho se dá conta do quão errada foi sua atitude e pede que considerem que não era esta sua intenção. Perdoado pela menina, ele ganha, atônito, um beijo na boca de Nick, para diversão das duas prostitutas e extremo desagrado seu – “Eu sou pai de família, porra, ninguém pode fazer isso comigo!...”.

Sandra volta à casa junto com Odilon, seu desagradável namorado, levando o questionamento do casal ao limite do insuportável, uma vez que Lucinha cai de amores pelo galãzinho arrogante, diante do ciúme impassível de Nick, que prefere que os dois “transem logo, para resolver a questão”. Quando Sandra o acusa de estar sendo comodista, ele corrige: comodista não, racional. E desde quando é possível racionalizar sentimentos, cara? Não, não dá, mas é preciso tentar, é o caminho mais maduro. E Nick encara essa, deixando sua mulher transar com Odilon – o que termina sendo uma experiência tremendamente desagradável para ela. Em seguida, num passeio pela praia, o galã boçal cai na besteira de insultar Di Branco e pronto: leva uma paulada na testa e é mais um que desaparece da história.

Depois de romper seus pudores num clímax antológico com o casal, Sandra parte – “Vida a três é uma barra muito pesada, não tenho estrutura para isso”, diz ela, numa postura semelhante à adotada pela protagonista no filme já citado Extremos do Prazer – e é interceptada pelo chefe dos bandidos. Que, anteriormente, num curto diálogo, possivelmente revelam ter uma outra profissão – é quando um diz ao outro (com a voz do mesmo dublador do Fred Flintstone): “Seu idiota, não se trata mal quem cuida de plantas, eu fui lavrador antes de ser policial”.

Interceptada, Sandra tem o mesmo destino da protagonista de A Ilha dos Prazeres Proibidos. O final violento – causado por tramas subliminares e absolutamente ocultas – tem algo a ver com o Brasil, virada dos anos setenta para os oitenta? É, né?... O fato é que seria necessário um sem-número de Di Brancos para exterminar a boçalidade predominante e ditatorial.

Escapa o casal da violência por pura sorte, uma vez que Carvalho os tira de lá, depois de cumprir todo seu ciclo de desrepressão e se assumir bissexual e livre. Empolgado, resolve se libertar de roupas e empecilhos e mergulhar na natureza – no entanto, quem entra n’água tem que saber nadar. Os livres ficam sozinhos para se amar e sobrevivem – para eles a vida é bela – enquanto os quase-destravados morrem. Cada um descobre seus limites aprendendo a não ter medo de viver – mas talvez nem todos estejam preparados para isso.

E Di Branco não vai conseguir acabar com todos os boçais, mas não é por isso que ele não vai tentar.

Curioso em saber o que dizia Di Branco quando gritava (meu conhecimento de latim clássico não é grande coisa), entrei em contato com o realizador para descobrir o significado das falas de Parolini. Esclareceu-me Don Carlone: “As falas de Orlando Parolini são extratos de "pessoinhas" como Fernando Pessoa, Henry Miller, Verlaine, Oswald Spengler e outros loucos santos. (...) Na parede do barraco de Di Branco, uma citação de "A Decadência do Ocidente", de Oswald Spengler”.

Mesmo com suas porretadas e sua fúria incendiária e assassina, Di Branco parece poder ser definido como gentil, amoroso e ao mesmo tempo um fugitivo cansado de brigar com o mundo – note-se que é a mesma definição adequada a Nick. Na verdade, os personagens são tremendamente aparentados, como descobrimos quando a chinesa revela a Carvalho e a nós que Nick já foi alguém “muito importante”, como também fora Di Branco – não por acaso, Nick é o primeiro a reconhecer Di Branco no filme. Mas, ao contrário do ‘hippie extemporâneo’, Di Branco é um guerreiro teimoso e impaciente – um anjo que veio para nos vingar. Ao contrário do tranqüilo Nick, Di Branco não quer nem saber: mete o porrete!

Império do Desejo é um desses filmes tão grandes que poderiam justificar toda uma época, todos os desvarios, erros e desacertos – se por acaso precisássemos disso (não precisamos). É desses filmes que terminamos de ver pensando “Que bom que alguém filmou isso!”, é uma irônica, irada e apaixonada redenção do tesão. É um filme tesudo? É sim, muito, mas é mais ainda um filme raivoso e ao mesmo tempo amoroso, livre e libertário.

Texto publicado em março de 2002