09/07/2008

Elogio à crítica

Peço licença aos leitores da Contracampo para registrar a surpresa e o prazer que um texto de José Carlos Avellar publicado no caderno Mais, da Folha de São Paulo (clique aqui para ler), sobre o livro “Cinema Brasileiro 1995-2005 – Ensaios sobre uma década” (Contracampo/ Azougue), trouxe para mim e para meus colegas da Revista Contracampo, apesar de suas críticas severas - ou inclusive por causa delas. Não é por acaso que retomo aqui essa discussão – a discussão crítica é necessária no atual panorama, como Avellar bem apontou, sobretudo quando dela participa alguém que este diretamente ligado os principais processos de decisão dos caminhos do cinema produzido no Brasil na última década, como é justamente o caso de José Carlos Avellar. Na verdade, é preciso, portanto, fazer um complemento à maneira que a Folha apresentou o resenhista: além de ser crítico e ensaísta bem conhecido há décadas no cenário, como nos informava o Mais, Avellar também teve papel ativo nos últimos dez anos, estes que foram analisados em nossa coletânea de artigos e entrevistas: foi presidente da Riofilme até 2000 (justamente nos anos em que a empresa teve mais importância no cenário da produção nacional) e nos últimos anos passou a organizar os concursos de apoio ao cinema da Petrobras.

Isto não compromete a sua opinião - ao contrário, é admirável que José Carlos Avellar se disponha a debater o cinema deste período, com o qual ele esteve tão envolvido, e igualmente admirável que mostre por ele as preocupações que seu texto deixa transparecer. O elogio é sincero: sua postura difere muito da maioria dos atores centrais da estrutura majoritária do cinema brasileiro nos últimos anos, não somente por fugir do silêncio mas também por seus interesses - Avellar se mostra preocupado, sobretudo, com as discussões em torno dos filmes e também da postura da crítica especializada. E, de certa forma, posso dizer que o incômodo que mostra sentir é sinal de que nosso livro saiu-se a contento, ao menos para nós, o grupo que faz a Contracampo. Não pela polêmica pequena, mas pela possibilidade de uma discussão interessante sobre o cenário da produção nacional – afinal, boas discussões precisam de discordâncias.

Confesso que achei injusta a crítica de que nosso livro não discute os filmes produzidos. De fato, entre catorze ensaios, dois se dedicam a falar de questões silenciadas pelos filmes e um terceiro tratou de, entre outras coisas, filmes não finalizados ou não-exibidos. Mas, quanto aos outros ensaios, quase todos falam dos próprios filmes feitos e de questões por eles apresentadas. Não há dúvida de que os filmes são a substância do cinema, de que não podem ser pensados como mero adjetivo.Mas imagino que, se os filmes são os substantivos, o cinema é toda a oração – assim, a discussão em torno dos usos de adjetivos e verbos também me parece produtiva. Diante disso, devo dizer que me pareceu cruel apontar que os textos criticam os filmes por simplesmente não se encaixarem em modelos de cinema pré-concebidos pelos redatores. Peço aos leitores que permitam a defesa: se pegarmos apenas um exemplo simples logo no início do livro, vemos que o ensaio “O Cinema da Distopia”, de Cléber Eduardo, em nenhum momento procura defender a existência de um cinema contrário, o “da utopia”. Citei apenas um, mas o mesmo vai se repetir em outros textos, cuja reunião evidencia alguns filmes preferidos e algumas discordâncias entre os próprios ensaístas, o que nos parece natural.

Mas é preciso reconhecer o mérito de uma crítica atenta: Avellar, ao citar os dois textos que falam de ausências (“A angústia de narciso: imagens da classe média no documentarismo brasileiro”, de Arthur Autran, e “Homens sem sombra – uma tendência intelectual em tempos recentes”, de Guilherme Sarmiento), percebeu uma questão que nos preocupou enquanto fazíamos nosso livro: havia sentido em apresentar textos que apontassem silêncios gerais (ou seja, falando sobre aquilo que os filmes não apresentam) neste olhar retrospectivo? Esta questão, de fato, nos tomou nos meses de preparação de “Ensaios sobre uma década”. Mas acho evidente a necessidade de perceber os silêncios, de tentar compreender o que dizem – afinal, a lógica mais tradicional nos diz que a primeira maneira de definir o que uma coisa é será definindo de imediato o que ela não é. Sobretudo porque esses silêncios evidenciam alguns caminhos seguidos, algumas escolhas comuns a várias filmes – partindo aqui do pressuposto de que uma das tarefas da crítica (não a única) é justamente a de apontar transformações na produção artística decorrentes de escolhas históricas. Este era um dos nossos objetivos, certamente.

Compreendo e me solidarizo com a falta que Avellar sentiu de mais textos em nosso livro sobre mais filmes, entre as centenas de longas e milhares de curtas produzidos no período. Com certeza, há filmes que poderiam ter maior espaço de discussão – na verdade, há muitos filmes sobre os quais pode-se escrever livros inteiros. Um livro que tratou da produção de cinema de uma década certamente cometeu omissões – creio que mesmo se tentasse discutir a produção de apenas um ano as cometeria (mas essa escolha também é uma das tarefas a se cumprir, ou não?). Neste aspecto, no entanto, ainda que eu pudesse contrapor à crítica do Mais uma listagem de todos os filmes que estão presentes nos textos que compõem “Ensaios Sobre uma Década”, desde o início sabíamos que este livro faz parte de um trabalho contínuo de anos no site - de certa forma, é a cristalização desse trabalho. Se dessa forma reconheço a insuficiência do livro, devo notar que nosso projeto em nenhum momento se pretendeu totalizante, e Avellar e os todos nossos outros leitores podem encontrar no arquivo das edições da Contracampo (disponíveis na internet em www.contracampo.com.br) críticas específicas para outros filmes produzidos no período, além de outros artigos e entrevistas ligados ao tema do livro. O acúmulo de visões, anunciado no artigo de introdução, é um método crítico que se prolonga pelo site e que apresenta preferências e questões internas, como não poderia deixar de ser, já que a Contracampo é feita por um determinado grupo.

Com relação a isso, para finalizar, gostaria de fazer um novo elogio ao texto de Avellar, uma vez que ele aponta com inteira razão que a leitura destes nossos textos críticos permite perceber, ao mesmo tempo, o cinema analisado e o grupo que o analisa. À parte o fato de que nosso grupo é menos homogêneo e nutre mais discordâncias entre si do que a frase pode sugerir, no resto acho que ela acerta na mosca – como há muito já nos dizem os teóricos da literatura, o texto crítico, por natureza, sempre revela de seu autor muito mais do que ele pretende (o mesmo vale para a resenha de José Carlos Avellar, não?).

Mas peço licença ao leitor e a Avellar para que me permitam fazer uma retomada do tema de um ensaio que assino em “Ensaios sobre uma década”. O título do texto é “Nós”, em que pretendi fazer um jogo de palavras, talvez simples demais, entre o pronome da primeira pessoa do plural e o sinônimo de amarras, laços. Nesse artigo eu pretendia justamente discutir a perspectiva que cada um de nós brasileiros pode ter da produção brasileira de cinema, pondo em questão inclusive os usos destes agrupamentos forçados necessários às teorias nacionalistas, a partir de uma leitura dos textos luminosos do crítico Paulo Emilio Salles Gomes. Em meu texto, comentei que o leitor, qualquer leitor, deve desconfiar dos usos do pronome “nós” e de quando pretendem inseri-lo num grupo.

Estou contando isso tudo para admitir minha surpresa com a fina ironia da resenha, que, quando li, achei que poderia passar despercebida aos demais leitores: pois bem, ele começa seu texto com o termo “imaginemos” e, ao longo dos dois parágrafos seguintes, suas frases seguem utilizando o pronome relativo à primeira pessoa do plural – para depois deixar claro que o livro “Cinema Brasileiro 1995-2005 – Ensaios sobre uma década” é feito por pessoas que não se incluem nesse “nós”, uma vez que ele usa métodos críticos que este “nós” não usa. Cito-o : “Imaginemos, por um instante, que estivéssemos pensando nos filmes não como pensamos, mas com os instrumentos que a produção industrial norte-americana criou (...)”, “Imaginemos ainda que estivéssemos pensando nossos filmes não como pensamos, mas com os termos da pauta proposta pela mídia(...)”, concluindo que “O livro Cinema Brasileiro 1995-2005 – Ensaios sobre uma década não se limita a uma coisa nem à outra, mas se alimenta delas(...)” .

Com este uso majestático do plural, Avellar aponta que seu “nós” não pensa tal como quem escreveu o livro, mas de outra forma. Tão logo notei que não estou entre os “nós” de Avellar, percebi a ironia: quem compõe estes “nós”, no caso, podem ser Avellar e o leitor do Mais, assim como podem ser Avellar e os colegas críticos e ensaístas de cinema, assim como podem ser Avellar e outras figuras de destaque do cinema brasileiro, assim como pode ser nada além do uso irônico do plural majestático.

Quero então contar uma novidade e fazer um convite a Avellar e todos mais, uma vez que, assim como ele, a turma da Contracampo também continua interessada em discutir o cinema brasileiro. Pois bem: a partir do lançamento de “Ensaios sobre uma década”, pretendemos ainda promover uma mostra de filmes destes últimos dez anos, com sessões seguidas de debates – e certamente será um prazer se Avellar nos brindar com sua presença e suas idéias sobre o cinema brasileiro.

Sobretudo porque acho estimulante pensar que o leitor que se interessar por este tema poderá acompanhar esse diálogo e conferir a relação das críticas com o que se produziu (entre os filmes e o que escrevemos e também entre nossos textos e a resenha). Assim, cada um pode escolher sua própria perspectiva, que pode vir a ser diferente tanto da nossa (de nós, da turma que faz a Contracampo) como desta de Avellar. Ao ver, ler e dialogar, cada um pode escolher onde é o seu lugar em meio a todos esses “nós”.

Texto publicado em dezembro de 2005