22/07/2008

O Sorgo Vermelho (1988)

É um filme que busca uma certa simplicidade. O ambiente é rural, os moradores da região não são muitos. Há uma noiva de um velho moribundo, há a destilaria de vinho, há o trabalhador apaixonado e, principalmente, há o grupo, a turma de companheiros. E há a violência do mundo de fora. Essa aparente simplicidade talvez seja, ao mesmo tempo, a origem da força e dos problemas de O Sorgo Vermelho.

O filme mais recente de Zhang Yimou ganhou em inglês o título de Hero, ou seja, herói, em bom português. Pois bem, é de criar heróis que trata O Sorgo Vermelho, o primeiro filme realizado pelo diretor. Não por acaso, o evidente ponto crítico do filme é o seu viés escancaradamente favorável ao governo comunista. Na história que o narrador nos conta de seus avós e seu pai, estão bem claros o domínio da vida cotidiana por bandidos, a posterior vilania japonesa, o heroísmo desajeitado da população e a esperança representada pelos comunistas. Problemas de um cotidiano invadido pela criminalidade nem sempre são simples, assim como tragédias e chacinas também nunca o são. Talvez possam ser na propaganda governamental (seja de que país for), mas não no dia-a-dia de cada um. O Mundo e a Realidade certamente são gigantes demais para apenas um filme, mas o recorte escolhido em O Sorgo Vermelho é especialmente problemático.

Mas há algo em O Sorgo Vermelho que é profundamente encantador, uma disposição para imagens e sons inebriantes que, se em tantos casos foi mal-sucedida, aqui funciona à perfeição para os dramas que conta a história. Com seus filmes seguintes Yimou viria ser conhecido internacionalmente pelo apuro visual (no caso brasileiro, a partir de Amor e Sedução e Lanternas Vermelhas) – e vale lembrar que fez seus primeiros trabalhos como diretor de fotografia. Mas já aqui em seu primeiro trabalho fica evidente seu talento em construir uma narrativa de grande intensidade visual e dramática – de uma forma menos elaborada e delicada da que teriam seus filmes seguintes, uma forma ainda algo crua, direta e despudorada, o que talvez seja justamente a origem do encanto do filme.

Há um interesse carinhoso em descobrir um cotidiano de camaradagem coletiva – ainda que somente os protagonistas sejam caracterizados com maior atenção na história, as cenas entre os colegas da destilaria parecem denotar as intenções do filme em retratar seus personagens. Esta atenção voltada para uma disposição em resolver problemas coletivos surgidos na busca de um ideal de sociedade voltaria a estar presente em filmes seguintes de Yimou, como A História de Qiu Ju ou Tempo de Viver, comparados diversas vezes a modelos do cinema clássico. Estes filmes, no entanto, já pertencem a uma momento em que Yimou parece tentar livrar seu cinema da crítica de excessiva estilização. Aqui, assim como nos seus filmes imediatamente seguintes, a sedução por uma certa magia cinematográfica é despudorada. Se nos filmes seguintes as conseqüências deste despudor dariam aos filmes uma sensação um pouco pesada, aqui a coisa parece se desenvolver ainda com o encanto de uma narrativa ainda leve, desarmada, que transmite uma sensação de pureza que, mesmo enganadora, é fascinante.

Além disso, os pequenos dramas amorosos destes protagonistas são apresentados com tamanha afetividade, os laços se constróem de maneira tão emotiva, que o filme se torna surpreendente e cativante. Ainda que tenha diversos problemas que podem ser levantados pelo seu prisma ideológico. Os encantamentos da fábula do amor nas folhagens do sorgo, da bebedeira vergonhosa, do tempero da urina, todos estes pequenos truques narrativos são realizados de uma forma tão direta (e dramaticamente pouco trabalhada) que funcionam à risca. Certamente porque os realizadores tiveram um interesse de fato pelos dramas, tiveram um carinho evidente em mostrar seus personagens e contar suas histórias – ou assim souberam fazer parecer através de quaisquer artifícios, o que a nós que assistimos não importa, no final das contas. À platéia não é importante que os risos e lágrimas dos artistas sejam sinceros, importante é que pareçam sinceros. Artifício deriva de arte, não?

Devemos então esquecer os pontos críticos do filme em benefício dos seus acertos? Não, assim como não seria uma boa solução relegar a obra ao esquecimento com a pecha de chapa-branca (ou vermelha, no caso). Não foram poucas as vezes em que os amantes dos filmes se viram diante deste dilema – podemos recuar no tempo até filmes de guerra, os sempre citados filmes de Leni Riefenstahl ou as versões cinematográficas da história soviética contada pelo stalinismo. Mas podemos então lembrar da justificativa do personagem Molina em O Beijo Da Mulher Aranha, quando seu colega de cela Valentin descobre que o filme tão amado, contado e recontado diversas vezes, é na verdade uma peça de propaganda nazista: o que isto importa a ele? O que nos leva a uma outra pergunta: o que traz um filme ao espectador? O cinema nacional de cada país trará questões que nenhum outro poderá trazer, então talvez um espectador chinês (ou, pior, um descendente de refugiados pós-revolução) poderá ter ojeriza a O Sorgo Vermelho, assim como ocasionalmente espectadores russos podem não amar Outubro, alemães podem detestar O Triunfo da Vontade e japoneses podem ter asco a filmes americanos da Segunda Guerra. A simpatia por estes espectadores e por seus sentimentos é muito justa, decerto. Mas talvez nós possamos descobrir personagens e questões maiores por trás de todos estes pressupostos políticos. Havendo uma certa eficiência narrativa (que nunca de ser um mistério, um truque que, para nossa surpresa, funciona), podemos nos preocupar com os problemas destes personagens e nos encantar com suas disposições e resoluções. Se o filme se vê comprometido em sua ligação concreta com os problemas da realidade, tem no entanto total liberdade na sua ligação simbólica – e seus personagens podem estar livres destes problemas concretos, desde que sejam bem-sucedidos neste aspecto simbólico – e logrem trazer algo surpreendentemente evidente, um olhar inesperado do óbvio, a nós que os descobrimos e aprendemos, como logram os personagens deste primeiro filme dirigido por Zhang Yimou. Dizia o poeta que as coisas estão no mundo, e a gente precisa aprender. Pois vamos aprender, então, de olhos e ouvidos bem abertos.

Texto publicado em março de 2003