Se esse recurso das boas almas não é possível para as almas de ciência, há sempre soluções acessíveis – nada como um bom juízo de valor para solucionar a questão. A diversão então consistirá para alguns em separar o joio do trigo, em encontrar naqueles que participam da produção e difusão do espetáculo de cinema os que contrabandeiam elementos críticos e até subversivos. Ótimo, ótimo, compreende-se a indústria e ao mesmo tempo trata-se de criticá-la e ampliá-la. E merecem um viva, certamente, contrabandistas e subversivos da narrativa espetacular – seus filmes costumam ser, estes sim, muito divertidos.
Mas o problema vai além. Não há como evitar a constatação de que, em casos bizarros – como o de Steven Spielberg – a própria estrutura industrial se põe de joelhos para as opções de um sujeito. Não há contrabando: Spielberg é um autor de cinema com controle sobre o que vai pôr na tela como poucos. Pode querer pôr o que bem entender, pois recursos não lhe faltarão, mesmo para filmes que não têm um chamariz tipicamente comercial – a própria estrutura industrial já pode sustentar estes produtos, mesmo um péssimo filme de Spielberg se paga e ainda rende um trocado (imagine-se de que seria capaz alguém como Francis Coppola, se tivesse se imposto profissionalmente de tal maneira...). Filma só o que quer, conta a história que quiser do jeito que quiser – não é escravo, ao contrário, domina o sistema – e todo mundo irá assistir! Por seu imenso talento e por suas imensas ousadia e ambição – assim como por sua identificação com determinados valores do meio que o sustenta, seja no patriotismo ou humanismo de almanaque de seus temas ou no seu objetivo de fazer da narrativa duas horas de escapismo catártico (nem sempre tão escapista, nem sempre tão catártica)–, Steven Spielberg é hoje quase uma encarnação viva do monstrengo Hollywood. Esse monstrengo que ele soube revitalizar e dominar como ninguém de sua geração (possivelmente como ninguém em toda a história do cinema).
Graças ao seu talento: numa estrutura industrial que depende da comunicabilidade narrativa (e da submersão do espectador na trama), Spielberg demonstra um domínio raro da narrativa invisível, raro e no entanto modelar, filhote da simplicidade de um Ford ou de um Walsh com a ousadia de Lang – inspirações assumidas de um cineasta que nunca se interessou pelas discussões da cultura cinefílica. Graças à sua ousadia: impondo a Hollywood, junto com Lucas, seu modelo de cinema (com temas e espírito das aventuras juvenis), provocou a revolução, bem conhecida de todos nós, que deformou e reestruturou o cinema hegemônico. Sentindo-se vitorioso, renorteou sua rota, passou a perseguir temas pessoais e a buscar filmes que superem sua primeira fase nos pontos que ela esvaziava – sobretudo a importância do tema da narrativa, mas também finais com soluções perfeitas e plenamente reconfortantes. Graças à sua ambição: numa época em que os grandes conglomerados estiveram ao sabor das transações internacionais, o já experiente produtor executivo aliou-se a dois colegas e fundou uma nova empresa produtora de filmes, a Dreamworks, novamente renorteando Hollywood – para irritação de críticos e ensaístas anti-indústria (nossos queridos autoristas), os filmes da ainda jovem Dreamworks guardam evidentes características em comum (assim como acontecia com filmes da Warner, Fox ou MGM nas décadas de ’30, ’40 e ’50).
Mistura azeitada de Irving Thalberg com Fritz Lang, Steven Spielberg faz um cinema que, ao contrário do que aparenta, só nos traz problemas. Mas antes os problemas eram simples, cristalinos – uma evidente (e eficiente) valorização (e até vulgarização, num juízo de valor algo reacionário de alguns críticos) do espetáculo cinematográfico escapista. No entanto, com o afastamento deste cinema escapista de aventuras (ou, no caso de um Minority Report, a tentativa de torná-lo mais complexo e provocador), os problemas que nos traz passam a ser outros, de ordem ética (ou moral, para quem preferir – como provavelmente seria o caso do próprio autor). Seus filmes hoje nos trazem mais do que o mau-gosto constante nos conflitos e/ou soluções dramáticos, da pieguice evidente ou da obsessão do cineasta pelos problemas na construção de uma família feliz. Na ponta mais alta do sistema tem um sujeito – afeito a medos, erros, obsessões, preocupações, interesses centrais – e não um conglomerado de ideologia difusa. Problemas de Spielberg, infelizmente, acabam sendo problemas de todos nós. Os temas referentes a A Lista de Schindler e O Resgate do Soldado Ryan por si só já nos tornam isto evidente – a despeito da possível diferença de valor e qualidade artística que se pode atribuir a um ou outro.
Por tudo isto se torna mais surpreendente e enigmático o caminho seguido por AI – Inteligência Artificial, estranhíssimo exemplar de experimento industrial sobre o qual já escrevi um bocado na Contracampo. Talvez mais decifráveis, mas igualmente bizarros, são os pequenos desafios de Minority Report – em que uma trama rocambolesca de ficção se propõe a brincar com gêneros e lançar dúvidas sobre prevenção ao crime e estado policial (sugerindo sem discutir, ou, por outra, tematizando sem concluir) – e de seu recente Prenda-me Se For Capaz, que consegue ser um filme de ação sem momentos de ação, uma comédia sem tom cômico e um filme sobre rebeldia que concilia através da perda (de liberdade, no caso). Se em AI tivemos um filme cujos maiores interesses se deviam justamente aos problemas que o filme cria e em Minority Report tivemos um filme cujos problemas tematizados passavam ao largo de uma narrativa empolgante de investigação, os problemas que nos cria Prenda-me Se For Capaz não estão na limitação das motivações (mais uma vez o moto narrativo da desagregação familiar?), mas sim no pessimismo da solução (capitulação diante da vida burocrática?). O autor de cinema jovem que redefiniu, dominou e recriou a indústria se identifica com Carl/Hanks, o burocrata cansado, mal-amado e mau amante que persegue seus objetivos e ajuda o jovem que precisa de emprego e apoio? Ou com Frank/DiCaprio, o jovem de família desfeita que, depois de se aventurar de mil maneiras, inventar estórias mirabolantes e amealhar uma bela grana, se vê obrigado a colaborar com o status quo? O final conciliatório, marca constante do cinema de Spielberg, parece tremendamente inadequado diante de tal situação. Não por acaso, como percebeu uma vez o amigo Renato Doho, se faz presente uma forte melancolia na capitulação de Frank.
Steven Spielberg é péssima influência, péssimo exemplo, péssimo parâmetro. A influência que exerceu, de alcance internacional, por um cinema óbvio e comunicativo estragou não poucos filmes e carreiras – e, pior que isso, recriou o círculo vicioso de um cinema para multidões viciadas numa estrutura limitada e limitante de narrativa e discussão – o que, numa situação extrema levada às últimas conseqüências (que o digital rompeu, por ora), poderia representar o fim do filme como suporte de idéias e reflexões dissidentes. Seu exemplo de carreira bem-sucedida fez com que muitos esforços fossem desperdiçados em filmes vazios, desinteressantes e burros que seguiram a estrada do cinema escapista aberta, em grande parte, por seu talento e ousadia. Seu parâmetro provocou, graças à estupidez e cinismo de alguns produtores, uma elevação tremenda nos custos das obras cinematográficas (em todo o mundo!) em nome de uma pretensa profissionalização que, em geral, resultou em filmes óbvios, burros ou mal-sucedidos (com inúmeras exceções a se considerar, decerto).
Texto publicado originalmente em julho de 2003