11/07/2008

Steven Spielberg é um problema sério

A predominância do cinema hegemônico norte-americano, aquele produzido pelas grandes empresas de Hollywood (com eventuais falências e substituições por novos conglomerados), existe no cenário internacional desde o início do século XX – há quase cem anos já. A vanguarda tecnológica desde então se tornou parte constante da indústria deste cinema hegemônico – desde avanços sonoros, passando pelo processo de colorização, até chegarmos na revolução dos efeitos especiais, protagonizada em parte por Spielberg nas décadas de ’70 e ’80 – possibilitando, ao mesmo tempo, a ampliação do que se conceitua ser Cinema e a sedimentação da noção de que ninguém faz filmes bons como a indústria entre grande parte do público pagante, através da publicidade destas mesmas inovações. De fato é preciso também lembrar das inovações que possibilitaram a diminuição dos custos de pessoal, movimentação e mesmo aquisição de equipamento, todas elas revolucionárias como hoje é a câmera digital. Mas mesmo estas foram desenvolvidas pela grande indústria (como é o caso dos equipamentos leves para a Segunda Guerra Mundial) ou retomadas por ela – como é o presente caso das exibições de cópias digitais, que podem vir a substituir o transporte físico de cópias por uma forma de transmissão eletrônica superior à da televisão. A indústria domina a tecnologia para manter o domínio sobre o discurso. Mas precisa ter sempre uma nova narrativa adequada à nova tecnologia – mais do que adequada, precisa ser uma narrativa original, condizente com o uso da inovação técnica: não basta a inovação tecnológica anunciar sua existência, é preciso que ela pareça ser uma necessidade do discurso narrativo. Cria-se então o problema para a indústria – o discurso narrativo, ainda que precise manter estruturas clássicas, precisa trazer em si algo de essencialmente inédito para justificar a novidade técnica. (No caso, ainda que êxitos iniciais ocorram, é preciso ter em mente a sedimentação da novidade técnica: O Cantor de Jazz foi um sucesso de público sendo um mau filme, mas os maus filmes seguintes estariam condenando o som ao fracasso, assim como a ausência de bons filmes condenou a projeção em 3-D e é o maior empecilho para os espetáculos de Imax e afins). Precisamos de novos clichês era uma frase de um grande produtor, se não me falha a memória era Louis B. Mayer, o homem da Metro. A narrativa industrial tradicional precisa ser original na sua ponta, cada vez mais – ou saber disfarçar muito bem, o que não é raro.

A própria existência de um cineasta, um produtor de cinema, um autor de cinema, com a força de Steven Spielberg é inequívoca evidência de um problema gigantesco. Mas o nosso verdadeiro problema não é exatamente Spielberg.

Não é má idéia se livrar do cinema americano. Não é todo ele ruim, decerto, aliás algumas das melhores coisas em cinema vêm dos EUA, e não só do cinema independente – disso todos já sabemos há tempos –, mas não é grande perda se livrar do cinema americano. O ocidente só veio a conhecer Ozu nos anos ’50, Cidadão Kane só saiu do continente depois da grande guerra, poucos são os cinéfilos no exterior que conhecem ao menos um filme de Nelson Pereira dos Santos, quase ninguém fora do Brasil sabe quem é Eduardo Coutinho, e mesmo alguns dos maiores cineastas latino-americanos não são bem conhecidos pelos brasileiros. Se uma boa alma resolve passar a vida sem ver filmes americanos, pode ainda assim ver três filmes por dia que viverá tendo grandes obras para assistir, conhecer mundos e refletir. Há pessoas que não têm televisão e vivem muito bem, com muita alegria e muitas idéias. Daqui a poucos anos talvez seja difícil imaginar o acesso à cultura distante do uso da internet – no entanto, no momento essa idéia não parece tão absurda, ainda. Pode-se, portanto, esquecer o cinema americano. Mas isso é fugir do problema, simplesmente ignorá-lo, fingir que não existe. Viver sem ver filmes americanos é fácil, difícil vai ser conviver unicamente com outras boas almas que não dão bola para o cinema de Hollywood. Vai ser difícil viver distante do mundo influenciado pelo cinema industrial. Vai ser ruim viver nele sem entendê-lo, discuti-lo e compreender seus problemas e pontos de crise.

Se esse recurso das boas almas não é possível para as almas de ciência, há sempre soluções acessíveis – nada como um bom juízo de valor para solucionar a questão. A diversão então consistirá para alguns em separar o joio do trigo, em encontrar naqueles que participam da produção e difusão do espetáculo de cinema os que contrabandeiam elementos críticos e até subversivos. Ótimo, ótimo, compreende-se a indústria e ao mesmo tempo trata-se de criticá-la e ampliá-la. E merecem um viva, certamente, contrabandistas e subversivos da narrativa espetacular – seus filmes costumam ser, estes sim, muito divertidos.

Mas o problema vai além. Não há como evitar a constatação de que, em casos bizarros – como o de Steven Spielberg – a própria estrutura industrial se põe de joelhos para as opções de um sujeito. Não há contrabando: Spielberg é um autor de cinema com controle sobre o que vai pôr na tela como poucos. Pode querer pôr o que bem entender, pois recursos não lhe faltarão, mesmo para filmes que não têm um chamariz tipicamente comercial – a própria estrutura industrial já pode sustentar estes produtos, mesmo um péssimo filme de Spielberg se paga e ainda rende um trocado (imagine-se de que seria capaz alguém como Francis Coppola, se tivesse se imposto profissionalmente de tal maneira...). Filma só o que quer, conta a história que quiser do jeito que quiser – não é escravo, ao contrário, domina o sistema – e todo mundo irá assistir! Por seu imenso talento e por suas imensas ousadia e ambição – assim como por sua identificação com determinados valores do meio que o sustenta, seja no patriotismo ou humanismo de almanaque de seus temas ou no seu objetivo de fazer da narrativa duas horas de escapismo catártico (nem sempre tão escapista, nem sempre tão catártica)–, Steven Spielberg é hoje quase uma encarnação viva do monstrengo Hollywood. Esse monstrengo que ele soube revitalizar e dominar como ninguém de sua geração (possivelmente como ninguém em toda a história do cinema).

Graças ao seu talento: numa estrutura industrial que depende da comunicabilidade narrativa (e da submersão do espectador na trama), Spielberg demonstra um domínio raro da narrativa invisível, raro e no entanto modelar, filhote da simplicidade de um Ford ou de um Walsh com a ousadia de Lang – inspirações assumidas de um cineasta que nunca se interessou pelas discussões da cultura cinefílica. Graças à sua ousadia: impondo a Hollywood, junto com Lucas, seu modelo de cinema (com temas e espírito das aventuras juvenis), provocou a revolução, bem conhecida de todos nós, que deformou e reestruturou o cinema hegemônico. Sentindo-se vitorioso, renorteou sua rota, passou a perseguir temas pessoais e a buscar filmes que superem sua primeira fase nos pontos que ela esvaziava – sobretudo a importância do tema da narrativa, mas também finais com soluções perfeitas e plenamente reconfortantes. Graças à sua ambição: numa época em que os grandes conglomerados estiveram ao sabor das transações internacionais, o já experiente produtor executivo aliou-se a dois colegas e fundou uma nova empresa produtora de filmes, a Dreamworks, novamente renorteando Hollywood – para irritação de críticos e ensaístas anti-indústria (nossos queridos autoristas), os filmes da ainda jovem Dreamworks guardam evidentes características em comum (assim como acontecia com filmes da Warner, Fox ou MGM nas décadas de ’30, ’40 e ’50).

Mistura azeitada de Irving Thalberg com Fritz Lang, Steven Spielberg faz um cinema que, ao contrário do que aparenta, só nos traz problemas. Mas antes os problemas eram simples, cristalinos – uma evidente (e eficiente) valorização (e até vulgarização, num juízo de valor algo reacionário de alguns críticos) do espetáculo cinematográfico escapista. No entanto, com o afastamento deste cinema escapista de aventuras (ou, no caso de um Minority Report, a tentativa de torná-lo mais complexo e provocador), os problemas que nos traz passam a ser outros, de ordem ética (ou moral, para quem preferir – como provavelmente seria o caso do próprio autor). Seus filmes hoje nos trazem mais do que o mau-gosto constante nos conflitos e/ou soluções dramáticos, da pieguice evidente ou da obsessão do cineasta pelos problemas na construção de uma família feliz. Na ponta mais alta do sistema tem um sujeito – afeito a medos, erros, obsessões, preocupações, interesses centrais – e não um conglomerado de ideologia difusa. Problemas de Spielberg, infelizmente, acabam sendo problemas de todos nós. Os temas referentes a A Lista de Schindler e O Resgate do Soldado Ryan por si só já nos tornam isto evidente – a despeito da possível diferença de valor e qualidade artística que se pode atribuir a um ou outro.

Por tudo isto se torna mais surpreendente e enigmático o caminho seguido por AI – Inteligência Artificial, estranhíssimo exemplar de experimento industrial sobre o qual já escrevi um bocado na Contracampo. Talvez mais decifráveis, mas igualmente bizarros, são os pequenos desafios de Minority Report – em que uma trama rocambolesca de ficção se propõe a brincar com gêneros e lançar dúvidas sobre prevenção ao crime e estado policial (sugerindo sem discutir, ou, por outra, tematizando sem concluir) – e de seu recente Prenda-me Se For Capaz, que consegue ser um filme de ação sem momentos de ação, uma comédia sem tom cômico e um filme sobre rebeldia que concilia através da perda (de liberdade, no caso). Se em AI tivemos um filme cujos maiores interesses se deviam justamente aos problemas que o filme cria e em Minority Report tivemos um filme cujos problemas tematizados passavam ao largo de uma narrativa empolgante de investigação, os problemas que nos cria Prenda-me Se For Capaz não estão na limitação das motivações (mais uma vez o moto narrativo da desagregação familiar?), mas sim no pessimismo da solução (capitulação diante da vida burocrática?). O autor de cinema jovem que redefiniu, dominou e recriou a indústria se identifica com Carl/Hanks, o burocrata cansado, mal-amado e mau amante que persegue seus objetivos e ajuda o jovem que precisa de emprego e apoio? Ou com Frank/DiCaprio, o jovem de família desfeita que, depois de se aventurar de mil maneiras, inventar estórias mirabolantes e amealhar uma bela grana, se vê obrigado a colaborar com o status quo? O final conciliatório, marca constante do cinema de Spielberg, parece tremendamente inadequado diante de tal situação. Não por acaso, como percebeu uma vez o amigo Renato Doho, se faz presente uma forte melancolia na capitulação de Frank.

Steven Spielberg é péssima influência, péssimo exemplo, péssimo parâmetro. A influência que exerceu, de alcance internacional, por um cinema óbvio e comunicativo estragou não poucos filmes e carreiras – e, pior que isso, recriou o círculo vicioso de um cinema para multidões viciadas numa estrutura limitada e limitante de narrativa e discussão – o que, numa situação extrema levada às últimas conseqüências (que o digital rompeu, por ora), poderia representar o fim do filme como suporte de idéias e reflexões dissidentes. Seu exemplo de carreira bem-sucedida fez com que muitos esforços fossem desperdiçados em filmes vazios, desinteressantes e burros que seguiram a estrada do cinema escapista aberta, em grande parte, por seu talento e ousadia. Seu parâmetro provocou, graças à estupidez e cinismo de alguns produtores, uma elevação tremenda nos custos das obras cinematográficas (em todo o mundo!) em nome de uma pretensa profissionalização que, em geral, resultou em filmes óbvios, burros ou mal-sucedidos (com inúmeras exceções a se considerar, decerto).

Mesmo representando esta péssima figura, faz no entanto filmes fascinantes e, cada vez mais, tremendamente problemáticos. Ao contrário do que imaginam detratores, cada vez é mais difícil imaginar o que se seguirá, como serão os próximos filmes, quais problemas eles trarão – bem, a supremacia dos mercados ainda se mantém como um deles, assim como há uma constância já irritante da narrativa em torno dos problemas familiares. Estes dois problemas apontados como prováveis, no entanto, já denotam o que seu cinema tem de único. São ao mesmo tempo produtos industriais e exibidos maciçamente e criações únicas, cada vez mais pessoais, ambíguas e problemáticas. Não há nos dias de hoje outras criações pessoais que alcancem tamanho grau de sofisticação técnica, nem tampouco se encontra, entre os produtos audiovisuais de grande porte da indústria, outros exemplares que tenham tamanho envolvimento pessoal do criador/narrador nos medos que exibe e nas questões que levanta – há algo de realmente belo, incômodo e forte na confusão mental do personagem de AI – Inteligência Artificial, na incerteza, no desespero do personagem de Minority Report e até mesmo na fuga mentirosa e na capitulação melancólica do personagem de Prenda-me Se For Capaz. Para se ver o cinema de hoje, e até para se viver a vida de hoje e não se refugiar na ausência de diálogo e questionamento constantes, é preciso encarar e (tentar) compreender estes problemas.

Texto publicado originalmente em julho de 2003