21/07/2008

À Beira da Loucura (1994)

Sobre À Beira da Loucura: primeiro que, ao se rememorar os marcos do cinema fantástico da década de noventa, é um filme a ser considerado – apesar da acolhida algo fria na época do seu lançamento; e é imensamente mais rico (porque é mais criativo e maduro) que toda a série Pânico e semelhantes filmes de terror referenciais. Da mesma maneira, é um filme incrivelmente surpreendente e gozador ao se olhar no espelho, certamente é um dos mais interessantes exemplos de cinema fantástico auto-referencial que eu conheço. Além disso, ainda parece ser a grande jóia esquecida de John Carpenter – principalmente por estas bandas, onde o filme só foi lançado em vídeo, devido à má recepção no exterior. Talvez seja até o seu melhor filme.

Certo, juízos de valor à parte, admito ainda que pensei muito em Simão Bacamarte quando estava vendo o filme – fiquei imaginando o quanto o narrador se divertiria conhecendo a história do nosso admirável alienista, que estava convencido de que todos no mundo haviam enlouquecido, à exceção dele próprio. Não só o narrador como também o personagem principal do filme, John Trent, investigador contratado por uma firma de seguros – também Trent, em vários momentos, tem a certeza de que todos, exceto ele, estão loucos. Ele entenderia Bacamarte, que só queria ajudar os seus. No entanto, surpresa!, a paranóia não é tema da história. É um golpe apostar que o tema é a paranóia de Trent, até porque a trama se revela sempre pior do que ele imaginava. Mas vamos deixar a tentativa de chegar a um possível tema central para mais adiante.

Antes, lembro também de outras referências e recriações presentes, mesmo que só para nós que assistimos – como logo no início da história, quando entendemos que toda a trama será contada num flash-back que tem como prólogo e epílogo a apresentação do próprio protagonista, agora enlouquecido. Aí então já pinta uma referência típica no enredo, já que filmes com histórias contadas por loucos existem desde, pelo menos, O Gabinete do Doutor Caligari. Mas, bem, se há alguma referência (ou homenagem, se preferirem) central e assumida do filme, esta será a obra (e as figuras) dos escritores Stephen King e, principalmente, H. P. Lovecraft. Pois o enredo trata, inicialmente, da busca de Trent (interpretado por Sam Neill) por um desaparecido autor de livros de terror, Sutter Cane. Os livros de Cane são sucessos de massa ("É o autor mais lido do século. Esqueça Stephen King, Cane vende mais", diz uma hora a garota do filme, Linda Styles) mas são também objetos de admiração patológica por seus fãs e de polêmica na sociedade, sendo considerados pela imprensa televisiva como "causadores de distúrbios psíquicos". Chegando, um pouco magicamente, na cidade em que se passavam todas as histórias de Cane, que não existia no mapa, Trent aos poucos vai entendendo que entrou no mundo de um autor e que, mais do que isso, tornou-se um personagem dele – a ponto de Cane lhe dizer "Eu penso, logo você existe"! Logo descobriremos com Trent que o escritor decidiu que seu novo livro, que enlouquece seus leitores, será levado por ele ao mundo, carregando então a praga da loucura causada pela narrativa. O nome desse livro maldito? "À Beira da Loucura", claro! Mas nem todos lerão o livro, certo? "Ainda há o filme!", nos lembra Cane...

Na verdade, no final das contas, o filme se transforma em uma verdadeira narrativa-ensaio, ou filme-tese, para usar a expressão corrente. Um filme-tese bastante divertido, já que lida o tempo todo com a confusão entre os elementos fantásticos – os demônios estão tomando o mundo a partir dos livros de Cane, as pessoas estão se tornando assassinos em série – e os elementos de narrativa do escritor, que no final das contas é o próprio criador de toda a trama (com identificação curiosa com o realizador do filme, mas deixemos isso para mais adiante). Confunde-se intencionalmente realidade e criação, com bom-humor escancarado no final.

No final? É, no final, onde enfim se explicita definitivamente que o filme é uma meditação (mais do que uma simples obra referencial) sobre seu próprio gênero. Depois de tanto sofrer na mão do seu criador (e como sofrem os personagens de filmes de terror...), Trent escapa da sua prisão e tem a oportunidade de ver o filme baseado em sua saga. É então que ele se dá conta de como todos seus temores eram, no fundo, risíveis, e pode, enfim, gargalhar diante de seus sofrimentos. Como é tão comum aos espectadores de filmes de horror.

A identificação de Cane com Lovecraft ou King é bastante evidente, já que se trata de um escritor que lida com temas fantásticos e tem um séquito de fãs com fama de malucos. Mas também se pode fazer a ponte com o próprio diretor do filme, e já no filme temos indicações para essa ligação – por exemplo, Cane diz a Trent, em determinado momento, que naquele mundo ele é Deus, e pergunta: "Já lhe contei que minha cor predileta é azul?". Em seguida, Trent, dentro de um ônibus, acorda, olha em seu redor e todas as coisas estão azuis. O efeito é simplíssimo, mas está dado o recado: se o diretor quiser, o filme inteiro será azul. Podemos agradecer pelo fato de que num filme de John Carpenter isso é só um pesadelo...

Dessa forma, o realizador medita sobre seu ofício. Carpenter chama a atenção para o que constrói, até porque na sua narrativa não há espaço para esteticismo – discute-se a feitura da história na própria história, mais do que em imagens inebriantes a serem mostradas. (mais do que um esteta, então, o realizador se reconhece como um narrador, o que condiz plenamente com o ‘estilo’ de Carpenter, é preciso notar). Dá-se conta do grau alienante, de suspensão do mundo, de criação de uma outra realidade, que é próprio do seu ofício. Percebe-se como um pouco louco como seu protagonista (que é quem nos conta a história), percebe-se manipulador como seu escritor (que é quem decide os rumos da história), percebe-se risível e, sobretudo, crítico de si mesmo e do mundo ingênuo que o rodeia, essa cultura pop mais inteligente do que pode nos parecer a princípio. Como seu personagem irá descobrir, o mundo é mais surpreendente do que imagina o investigador, e seu retrato – pelo menos o que ele se propõe a fazer – será, sobretudo, sedutor e deflagrador.



Texto publicado pela primeira vez em janeiro de 2002