21/07/2008

Entrevista com Otávio Terceiro - sobre seu trabalho com Rogério Sganzerla

A gente veio conversar com você para falar mais da atuação em Signo do Caos, mas nossa primeira pergunta não foge ao óbvio: como você conheceu Rogério?

Eu estava em São Paulo em 1968, quando ele fez o Bandido..., eu estava trabalhando na época numa fábrica de tecidos de grande sucesso da época, que estava financiando os maiores shows do Brasil. Era o início do tropicalismo, então eu fui chamado para lá, morava aqui no Rio, e aproveitei para montar shows, e contratei justamente o Caetano Veloso, foi um dos primeiros contratos que fizeram na vida. Resultado: esse show foi um tremendo sucesso, foi trazido todo o pessoal do tropicalismo, com os arranjos do Rogério Duprat, que fazia parte do show, e foi quando eu me aproximei do sartistas que estava famosos, e um deles era o Rogério Sganzerla, foi o nosso primeiro contato. Foi superficial, aí fui assistir ao filme, adorei, mas eu estava em outro campo, o musical. Mas fiquei atento, não é? Terra em Transe tinha sido feito em ’67, estava rolando todo o movimento do cinema novo, eu era muito amigo do Ruy Guerra e do Hugo Carvana, Carvana era meu melhor amigo, nós éramos amigos, porque nós estudamos juntos, estudantes de teatro, eu fui da escola da Dulcina e ele era do Teatro do Estudante. Aí passei a fazer as duas coisas, no teatro Duse e no do Estudante, e ele então foi meu companheiro dileto durante anos aí pelas madrugadas... E ele me levou para participar das chanchadas, e foi meu primeiro contato com o cinema. Aí o Carvana escreveu o que seria seu primeiro filme, que seria chamado Copacabana Zero Hora, e me convidou, através de uma produção italiana, para fazer o papel principal do filme. Então, foi o primeiro momento no cinema. Aí filmei três dias na Barra da Tijuca e fui ver o copião. Achei tão ruim que pedi, pelo amor de deus!, para não participar do filme, eu não queria, de jeito nenhum (risos)... E o Carvana: "vamos lá, você tá ótimo!", e eu, "não, não quero, de jeito nenhum!"... Um medo danado, rapaz!

Mas é a velha lenda, não se deixa ator ver o copião!

Pois é, mas deixaram, porque gostavam muito de mim, eu era bem garoto e eu pedi para ver, né? Aí devolvi o dinheiro, devolvi o contrato, tudo para não fazer o filme, e olha que era do meu dileto amigo Carvana, que tinha me dado o primeiro papel, logo na primeira oportunidade que eu tive na vida, e aquilo ali me bateu, rapaz!... Mas eu passei sempre sonhando em uma oportunidade em que eu pudesse trabalhar em cinema. Isso demorou dez, vinte anos, me meti em uma coisinha aqui, outra ali, mas nada de especial. Um dia, eu estou aqui no Rio de Janeiro, em frente à Líder Cinematográfica, que era em Botafogo, e eu estava com um pequeno estúdio de gravação, porque eu estava contratado para fazer alguns jingles, comerciais. Aí acontece que eu criei um grupo de músicos que se reunia à noite, para fazer... criar coisas novas. E eu dei a esse grupo o nome de Experiência Brasileira, e a minha idéia era de fazer trilhas sonoras para o cinema. Então eu saía dali, tinha um barzinho ali em frente, ao lado da Líder e do meu estúdio, o tal Bar da Líder, e ali ficava todo mundo. Estava o Saraceni, o Jece Valadão, Roberto Battalin, uma turma muito boa... E o Rogério, isso era 1977, e eu aproveitei para convidá-lo para ouvir o meu som. Aí ele ouviu, e me falou "Olha, amanhã eu vou passar O Abismu, vem ver!". Então ele passou o Abismu, foi a primeira ou segunda vez que passou O Abismu, e eu fui. Mas o meu contato com ele, até então, era uma coisa, assim, apenas superficial. Aí foi todo mundo ver o filme, e depois ele veio e me perguntou: "Você gostou do filme?". E eu respondi, "Magistral!". E ele viu ali um cara que tinha visto alguma coisa naquele filme, enquanto os outros ali não tinham visto nada... então, por isso nossa amizade ficou maior, e depois ele me levaria às moviolas onde estava montado outros filmes, fui tomando amizade por ele. E depois, eu trabalhando com João Gilberto, que ele admirava muito. Ele participou do disco "Brasil", com Caetano, Gilberto Gil, Maria Bethânia, e o João...

Você sabe como nasceu essa idéia, se o Rogério soube antes que o João ia fazer o disco e pediu, ou foi através do seu intermédio...?

Não, não foi através do meu intermédio, porque justamente nesse momento eu não estava, eu não estava nesse disco, estava fazendo outra coisa, e só encontrei com ele depois de feito o disco.. Até que ele foi filmar o Nem Tudo É Verdade, e aí me convidou para fazer uma... para aparecer no filme, até como uma maneira de fazer amizade comigo. Aí eu fui, filmei um dia, e ele me perguntou "você pode voltar amanhã para filmar um pouco mais?"... Aí fui e o papelzinho que eu fiz lá... deu, mais ou menos, para entender o fio da meada, entende? E eu me interessei, e pensei "será que é por aí que vai acontecer alguma coisa?"... E foi assim com o Signo do Caos, foi também a mesma coisa, ele me falou "passa amanhã lá no Clube da Aeronáutica, porque eu estou fazendo uns takes e queria você ali para participar de umas cenas" (risos)... Aí, quando filmou, chegou para mim e pediu "Será que você não pode vir amanhã?", e eu fui, sem saber o que estava acontecendo... E eu fui, e ele chegou para mim e me pediu para cortar o cabelo, porque eu estava com um cabelo grande aqui atrás, mas aí eu disse que não, mas se eu soubesse que era isso eu teria raspado a cabeça!... Mas eu disse não, e aí você vê que nesse filme quase nunca me mostram por trás, rarissimamente, se pegar eu estou com a gola levantada. Mas aí fomos fazendo, e eu não tive a menor noção do que se tratava, não sabia nada... e a coisa foi demorando, assim, uns cinco anos...

A filmagem foi em 1997?

Olha, o ano certo eu não sei, eu sei que durante uns cinco anos houve um dia de filmagem aqui, outro mais adiante filmava ali, mais tês meses e filmava mais um pouco... só depois disso teve a preparação, porque foram sete anos ao todo. Aí eu fui viajar, fui fazer essa turnê na Europa e nos EUA com o João. Quando eu voltei, me disse um amigo que o Rogério estava adoentado, eu ainda não sabia... E eu tinha dublado com ele menos de um mês antes de viajar. Aí eu tentei localizá-lo aqui no Rio, mas ele não estava no Rio. Aí eu viajei para o Japão, e de lá eu liguei pra ele. Liguei e ele me falou "Não, está tudo bem... eu estou terminando a montagem, e estou esperando você para terminar o nosso Américo Vespúcio", o filme que nós começamos a fazer sobre o descobrimento da América, e em que eu interpretava o Américo Vespúcio...

Ele já tinha escrito o roteiro?

Nós já tínhamos filmado duas horas, sem roteiro, tudo sem roteiro... Na hora ele me dava textos, e eu improvisava a partir desses textos...

Filmaram isso há pouco tempo?

Filmamos isso, foi... Olha, foi durante as filmagens do Signo do Caos, no intervalo. Lá no Teatro João Caetano, eu era diretor de lá, fui diretor do teatro por três anos, e aí consegui lá em cima uma sala com refletores e todo o pessoal do teatro assessorando. Criou-se um clima de nevoeiro, de navios e tudo. Fizemos umas duas horas, tudo gravado em digital, né? Em princípio foi isso, isso nos uniu bastante, essa filmagem talvez tenha dado a ele também a perspectiva para me usar mais no filme. E na montagem eu não vi nada, só dublei partes do filme, e mesmo assim eu vi mal, a dublagem não estava a meu contento, não estava a meu contento... E ele disse "não, deixa que eu sei como você vai chegar lá".. E foi uma surpresa para mim quando eu fui assistir no Odeon ao filme.

É um dos protagonistas do filme!

Pois é! E, quando chegou na metade do filme, eu estava tão apavorado que eu saio do cinema... saí do cinema, não consegui assistir ao filme. Saí, não consegui ver, juro a vocês... saí, fui lá para aquelas ruazinhas internas da Cinelândia, em frente ao Teatro Rival, fiquei por ali... Um pouco sofrendo com o que vi de mim mesmo ali. Aí repentinamente saem as pessoas do cinema, e veio um amigo meu, me dise "Poxa, que bom!", depois o Saraceni: "Que maravilha, você está ótimo!". Aí eu me acalmei um pouco e perguntei "Mas não está, assim, muito esquisito", "não, está ótimo!". Aí que eu fui começar a me aceitar, porque eu estava pensando da mesma maneira do primeiro filme que eu fiz. É que eu não consigo me ver! Agora já me acostumei, porque eu já vi o filme cinco vezes. Porque, terminado aqui, no Odeon, teve um dia em que teve uma festa para homenagear o Rogério, Rogério foi, de cadeira de rodas... Depois do filme, eu fui levando ele, o pessoal ia para a festa, ele olhou pra mim e disse assim: "Fica comigo esta noite, e não te arrependerás!"...

Citando o repertório do Nelson Gonçalves...

É, citou o Nelson! (risos). Porque ele estava muito lúcido, lúcido à beça... E nesses intervalos a gente se encontrava, como amigos de bate-bola na praça... E ele sempre com aquela gentileza dele, aquele conhecimento do assunto de cinema, muito profundo, muita coisa, muito bem informado também... E que eu só depois, mais tarde, eu fui me acostumando, percebendo a profundidade...

Isso tudo ele te dando o roteiro aos poucos...

Olha, muitas cenas nós gravamos com som direto... Mas depois a fita se perdeu.

Do áudio?

Do áudio... Então, nós tivemos que descobrir alguma outra coisa que coubesse dentro daquilo que estava gravado. Outras coisas ele mandava desenvolver, e outras eu decorava na hora, era sempre na hora, eu não levava nada para casa. Então, antes, é claro, assim que ele pôde, ele conversou comigo num cantinho e me deu a dica do que ele queria... Depois de um mês de filmagem, mais ou menos (risos)...

Como ele te explicou? Disse "olha, o personagem é esse" ou coisa parecida?

Não falou nada. Só me dizia "põe essa roupa, esse chapéu", "diz isso aqui"...

Só falava da ação mesmo?

Só.

Nada sobre motivações ou coisa do gênero, então?

Nada, nada nada. Era a cena. Fulano, fulano e fulano. O texto era esse, "agora fala". Aí filmava, depois pegava de lá, de cá, aí já fazia com um texto completamente diferente, que ele dava na hora, e enquanto armava a cena eu lia... Como ele selecionou, isso foi um trabalho de montagem espetacular. Foi o melhor trabalho de montagem que eu já vi, porque era muito espaço mesmo, dois anos sem fazer, monta aqui, monta ali... Eu fiquei satisfeitíssimo, fiquei surpreso quando fui ver. Só pude ver o filme em Tiradentes, porque mesmo em Brasília eu não consegui ver. Eu assisti ao filme todo, mas não consegui ver.

Não digeriu?...

Não, eu realmente não consegui ver. Eu não estava presente, era uma coisa... incrível. E sempre foi assim, eu fiz um outro filme com outro diretor há algum tempo, O Guru das Sete Cidades, do Carlos Binen, diretor, e eu fiz o papel do guru. Quando terminou o filme, eu me escondi debaixo da cadeira, eu um moça, uma menina do meu lado, ela segurou na minha mão e eu falei "Olha, eu vou ficar por aqui, quando o pessoal for embora você me avisa!". Mas nesse eu tinha mais razão, porque dublaram minha voz para o papel do Guru, que eu estudei, fiz até retiro espiritual para fazer. Botaram um cara que tem uma voz maravilhosa, mas é um ator de São Paulo, o Domício Costa... e aí não era nada daquilo que eu esperava, e eu fiquei envergonhado de aparecer para o público... Tem sido uma constante!

E sobre as sessões de dublagem, foi só necessidade de repor o som das fitas ou algo já tinha sido pensado para ser feito assim?

Olha, alguma parte do som direto ficou, não foi tudo que se perdeu...

Mas tinha cenas eu já seriam dubladas originalmente?

Algumas sim. Ficou bem feita, a montagem eu achei formidável. A dublagem não bate certinha, o sincronismo em algumas cenas não existe. E eu perguntei ao Rogério se era assim mesmo, e ele "É sim, assim mesmo". Foi uma das últimas vezes que vi antes de viajar para a Europa, quando eu voltei ele já estava no hospital, lá em São Paulo. Eu fui visitá-lo, ele estava consciente, com uma inteligência fantástica, mas não queria abrir os olhos, não queria falar. A Djin chegava, falava alguma coisa no ouvido dele, "Otávio está aí, veio do Rio para falar com você". E ele falava comigo apertando as mãos, me tocando assim. Foi a última coisa, aquela lembrança do fica comigo esta noite e depois esse aperto de mão. E depois eu perdi meu grande amigo, talvez o melhor amigo que eu tive, me deu coisas maravilhosas na vida, me trouxe para um caminho que eu queria estar, que estava perdido, eu estava perdido em outros caminhos e trabalhos. Me deu tanto prazer, tanta alegria, entende?... E, com isso, eu cheguei a falar isso em Tiradentes, para que todos estivessem ali naquele momento e para que aquele filme pudesse passar, o diretor, Rogério Sganzerla, teve que falecer, teve que se dar inteiramente, dar a própria vida para que esse filme passasse ali. E foi isso, ele sofreu tanto a perseguição... a falta de compreensão da grandeza, da sinceridade, da honestidade, da profundidade e da dignidade, que isso abalou a saúde dele. E nunca se queixou de nada para mim, nunca fiquei sabendo de nada, nunca me falou, sempre na maior alegria, na maior boa vontade, passava lá em casa de carro e me chamava para sair com ele, depois me trazia em casa, numa gentileza...

Teve muitas diferenças no relacionamento do Nem Tudo É Verdade para o Signo do Caos? Porque você falou que em ambos não teve roteiro...

É... quando eu ia para o set, eu não sabia o que iria acontecer... mas sabia que ia me sentir mito bem, porque era muito, muito bom o astral da equipe. Era como se fosse uma alegria, eu não ia trabalhar, não ia sofrer, não tinha problema algum! Eu ia me divertir, eu ia ser bem tratado, ser acarinhado por ele e por toda a equipe, todo o pessoal magistralmente amigo, não é? Então eu não sabia o que era, um pouquinho antes de rodar ele me dava textos, que ele escrevia, assim, em separado... Aí eu lia e ele dizia "esse não serve não, vamos com outro, e agora vamos filmar!". E era aí que eu ia... entende? Ótimo! Quem maneira fantástica de descobrir um tipo de interpretação que eu não esperava de mim mesmo, eu não sabia o que estava acontecendo! Ele não deixava eu entrar numa linha, entendeu... Na hora que eu ia dizer, ele me passava ,"Agora diz isso aqui!".

Uma coisa entrecortada mesmo...

E sem que eu tivesse decorado totalmente o texto. Eu tinha que viver o texto, senão não vinha uma palavra e a outra... não vinha, não é fácil não é? (risos) Mas eu sempre me sentia bem, sempre saía de lá feliz, nunca saí com algum problema... Coisa maravilhosa... Perder esse amigo é uma coisa terrível.. Mas é como eu te disse... Agora, você sabe que eu perdi aparentemente, mas eu ganhei!... Ganhei, eu tenho agora mais consciência, é como eu disse, parece que não existe a morte. Porque agora ele está muito mais presente.. Ontem à noite, eu estava chegando em casa, e vi um vasinho de flores roxas, lindas!, e, não sei por que, comprei esse vasinho e levei para casa, isso era três horas da manhã... Isso aqui na esquina, hoje, numa lojinha ali na esquina, todas as flores estavam bem nítidas. Hoje é que eu vim a sacar, hoje que vim falar com vocês, que falei com a Helena, e revi as reportagens sobre o filme, reli seu artigo... Então eu, lendo você, reaprendi o que estava lá, porque é como eu... Eu tenho essa qualidade ou defeito, eu não sei se o que estou fazendo é arte ou não, não tenho visão crítica nenhuma... Então, quando a Djin me deu seu texto, eu falei "que profundidade", e como eu estava mais raso na minha consciência do que representava aquela obra, então serviu muito, foi uma crítica construtiva, cheia de amor, de pontos positivos... E acho que Rogério gostou muito. E ele está vivo, assim como está o Vinícius, como está o Tom, o Milton Banana, está o Rogério. Os meus amigos agora me ajudam muito, o que eu preciso eles fazem por mim. E não era assim, às vezes eu brigava com eles. Mas com Rogério nunca briguei. Rogério brigava com muita gente, não levava pra casa, mas comigo, não sei por que, talvez eu já estivesse prevendo que ele ia me dar um presente, ia deixar uma herança só porque eu era amigo. Eu passei a conviver muito mais com Rogério depois que ele passou para a vida do absoluto... porque ele está em toda parte, basta eu precisar dele, conversando com vocês, ou quando fui falar com Helena, eu via grandeza por que ela está tomada. Ela tinha isso dentro dela, mas não demostrava, nem botava isso no mundo objetivo. E ele engrandeceu Helena, deu a ela tanta inspiração, tanta vontade, tanto trabalho realizado e realizante, que então eu acredito muito nesse filme Luz nas Trevas, que ela quer fazer com o roteiro dele em continuação ao Bandido.... Agora o Signo vai para Torino, e vai haver uma retrospectiva de toda ao obra do Rogério na Itália. E o Bandido... está passando todos os fins de semana em São Paulo, num parque. Passou num dia, foi um sucesso, passou noutro dia... E toda essa retrospectiva da obra do Rogério foi bom também para afirmar Helena, ela se vendo nesses filmes todos.. Tem razão, é ícone do novo cinema brasileiro. E isso é obra do Rogério, mesmo depois de deixar esse mundo. Não estou falando de uma coisa de reencarnação, espírito.. não é solução de continuidade, é uma mudança de status. Mas não precisa nascer noutro corpo, um clone de Rogério, para provar que a vida é eterna. E estou ainda aqui, espero que quando eu passar desta tenha algum amigo para falar de mim, como eu estou aqui lhes falando de Rogério... E, enfim, acho que é tudo verdade!...

Ou Nem Tudo!... (risos)

Entrevista feita em 03/03/2004 por Daniel Caetano e Ruy Gardnier

Publicada originalmente em março de 2004