23/07/2008

Ódiquê (2000)



Para o bem ou para o mal, Ódiquê é um filme-problema. Ódiquê retrata personagens asquerosos numa trama de violência e engodo, com eficiência narrativa, bom desempenho dos atores e bastante humor em diálogos cheios de gírias. Mas o que justifica um filme mostrar com crueldade personagens desprezíveis? É uma questão problemática e bastante interessante. Enquanto se pode crer que o filme de Felipe Joffily e sua equipe pretende denunciar e atacar a falta de limites éticos de uma certa juventude, esta questão se impõe: até que ponto a certeza de superioridade moral que o filme tem sobre seus personagens não o torna arrogante e o esvazia?

Por mais desagradável que ela seja, esta questão problemática é a única redenção possível para Ódiquê. Um antigo poeta francês escreveu que "é nos objetos repugnantes que encontramos as jóias". Ao retratar o que lhe causa repugnância, o brilho de Ódiquê residiria em nos fazer sentir o mesmo asco que sente. Mas deveras sente?

Porque não se pode deixar de notar que este filme tem a discutível honra de exibir a cena mais asquerosa filmada no Brasil em décadas: é quando o personagem de Cauã Raimond, armado, agride e apavora um guardador de carros - uma criança negra, deficiente mental. Esta cena de boçalidade marca de forma definitiva o filme. A única justificativa para ela - justificativa ainda assim problemática - seria a de estabelecer definitivamente para a platéia a vileza dos personagens. Poderíamos considerar que ela faz parte do filme devido ao discutível pressuposto de que "cinema bom precisa agredir o espectador", já que é uma cena ilustrativa, sem relação com a trama central. Mas, visto dessa forma, o filme não difere muito de seu personagem, buscando constranger a platéia como o playboy faz com o pivete. Portanto, para o bem de Ódiquê, é melhor crer que a tal cena tem esta função narrativa: o filme pretende mostrar com clareza a boçalidade dos seus personagens, de forma agressiva e incômoda à platéia.

No entanto, de certa forma o próprio filme tratará de boicotar mais à frente este viés positivo possível. Seria a opção mais ousada e agressiva retratar estes personagens realizando seus desejos ao final, num desfecho em que “os babacas se dão bem”, o que reforçaria o aspecto de "denúncia social" do filme - talvez questionável, mas certamente defensável e interessante. No entanto, o tom bem-humorado e amenizante do final funciona de forma inversa: descobre-se enfim que os jovens deram apenas um golpe, que ninguém foi morto e que tudo não passou de um engodo de malandros que “sabem se dar bem”. Se o humor na fase inicial faz a platéia se divertir com os papos e as atitudes dos playboys malucos, esse bom-humor externado no final compromete qualquer defesa de um olhar moralizante presente no filme.

Torna-se inevitável então lembrar dos momentos em que seus personagens se mostraram tão asquerosos, e a dúvida vem à mente: será que o filme mantém integralmente a noção de que esta juventude deve ser retratada na sua forma mais ignóbil para que a platéia seja levada a refletir? Ou aquelas cenas lamentáveis indicam apenas que filme pretende chocar a qualquer preço? Tendo em vista as situações repulsivas que vimos antes ao longo do filme, essa alternativa contradiz o dito do poeta francês e evidencia o problema de Ódiquê: se o filme se diverte com seus personagens e usa da estratégia de constranger o espectador, então ele deixa de ser uma denúncia e passa a ser um sintoma bem próximo daquilo que pretendia atacar. E o que ali encontramos, ao invés de jóia, pode ter se tornado, na verdade, uma coisa bem menos interessante e mais doentia do que pretendia vir a ser.

Texto publicado pela primeira vez em outubro de 2004