22/10/2017

El Justicero

Ao observarmos a trajetória que Nelson Pereira dos Santos tinha como cineasta ao fazer El Justicero, parece evidente a relação que este filme de 1967 tinha com o projeto não-realizado Rio Zona Sul: assim como pretendia fazer este projeto, El Justicero retratou a juventude de classe média-alta da Zona Sul carioca. Mas as diferenças que El Justicero estabelece com seu projeto abandonado e com seus demais filmes anteriores podem nos dizer mais sobre o filme do que esta analogia direta. A chave da diferença é o humor - se ele aparece em certos momentos nos primeiros filmes de Nelson Pereira, no entanto permanece em segundo plano. El Justicero depende do humor: o filme faz uso do deboche para construir seu retrato crítico da referida juventude carioca dos anos 60.

 É também bastante sugestiva a relação que ele tem com outros filmes que foram realizados naquele momento – a começar pela chamada “fase urbana” do Cinema Novo, nos filmes de Paulo César Saraceni (O desafio), Carlos Diegues (A grande cidade), Leon Hirszman (Garota de Ipanema) e os documentários de Joaquim Pedro de Andrade (Cinema Novo) e Arnaldo Jabor (A opinião pública); e também é possível lembrar de filmes de realizadores como Luís Sérgio Person (São Paulo S.A.) e Domingos Oliveira (Todas as mulheres do mundo, Edu Coração de Ouro), com diferenças marcantes em relação aos cinemanovistas, e mesmo alguns inteiramente opostos a eles, como Walter Hugo Khouri (no seu As Amorosas). Com as muitas diferenças que os separam, estes filmes de certa maneira retratavam dilemas da juventude do seu tempo (e talvez Terra em Transe devesse ser acrescentado a essa lista). Novamente, deles El Justicero se diferencia pelo tipo de humor que usa. Não que todos os demais fossem filmes sem humor, de modo algum (a inclusão dos filmes de Domingos Oliveira já serviria para refutar isso) – mas me parece evidente que o tom satírico e cruel de El Justicero sobre as ambições e perspectivas das pessoas da época torna o filme inteiramente diferentes destes outros “retratos da juventude”.

 O tom de deboche é presente na dramaturgia brasileira desde sempre (ou pelo menos desde Arthur Azevedo) e até hoje temos exemplos característicos, como se pode conferir em alguns programas humorísticos televisivos. El Justicero, no entanto, satiriza justamente um público que seria considerado “formador de opinião” – não são os “caipiras” e ricaços (como em Arthur Azevedo) ou políticos e personalidades, como nos programas de televisão, e sim a própria juventude ipanemense daquele momento que vista de forma debochada. Jorginho, “El Justicero”, é filho de um militar corrupto, vive no bem-bom, só quer saber de namorar com várias garotas, ter roupas bonitas e “meter uma praia”, só anda de carrão, tem ciúmes do próprio smoking e não suporta saber que a namoradinha não é mais virgem. O filme de Nelson Pereira avacalha antes disso virar moda...

 Talvez por conta disso, foi um dos filmes mais mal-recebidos de Nelson, tanto por crítica quanto por público na época - a bilheteria não foi boa e, com exceção do mineiro Maurício Gomes Leite, os textos escritos sobre o filme no período de lançamento são bastante negativos. Vale lembrar, de todo modo, que o conflito com a censura da época atrapalhou um bocado a carreira comercial do filme: num caso juridicamente bizarro, ele foi interditado pela censura após ter sido liberado, quando já havia inclusive estreado em circuito. Isto levou inclusive à perda dos negativos originais - o filme chegou a ser dado como perdido por alguns anos, até David Neves encontrar uma cópia 16mm em Pesaro.

 Hoje, no entanto, é justamente esse humor satírico corrosivo de El Justicero que o torna tão surpreendente e interessante. De certo modo, o filme parece apresentar uma superação do ceticismo - afinal de contas, sempre sobra a graça de curtir a vida; porém, para superar o ceticismo é preciso sobreviver a ele. Se este retrato avacalhado da nossa elite jovem pareceu a muitas pessoas da época ser uma obra que apelava para o ridículo, para nós de hoje, com a distância histórica, o que antes parecia ridículo atualmente parece até realista... Podemos rir e nos divertir com a egolatria de Jorginho, El Justicero, e com a despreocupação com que levavam a vida os jovens riquinhos da Zona Sul carioca de meados dos anos 60. Afinal de contas, hoje nós sabemos que, com meia-dúzia de exceções, o figurino d’El Justicero cabe com perfeição nos heróis ipanemenses do período - pessoas cujos maiores feitos se resumem a “saber viver”. Talvez isso parecesse um insulto, mas hoje sabemos que não é: diante da perspectiva dos El Justiceros, o melhor a fazer é encarar a realidade com humor.


Texto escrito para o catálogo do Festival Brasileiro de Cinema Universitário de 2008.