17/07/2008

O que significa o termo Preservar, afinal de contas?

Foi numa aula de segundo grau que ouvi de um professor, uma vez: “ninguém atravessa duas vezes o mesmo rio”. Rio? Na hora, quem riu fui eu, mas ouvi a explicação – um rio é feito por águas correntes, e a água que toca nos joelhos num instante não será a mesma de outro instante – e, por extensão, pode-se dizer que a pessoa também se transforma, como o rio. Depois fiquei sabendo que essa frase era de um filósofo grego (um pré-socrático, como me ensinaram a chamar depois), Heráclito, e descobri também que se referiam a ele como ‘o obscuro’. Aprendi mais tarde que ele é visto hoje como o filósofo do fluxo, do mundo em eterna transformação – e é comum vê-lo colocado em oposição a Parmênides, outro pré-socrático, que seria por sua vez lembrado como o filósofo da transcendência, o sujeito que primeiro valoriza a permanência das coisas. Já se notou também que Parmênides foi muito mais influente sobre a maneira ocidental (platônica) de ver o mundo – o interesse pelas idéias de Heráclito ressurgiu mesmo só no século XX. Isso pode não significar nada, mas também pode ser um bom indicador das idéias que circulam em nossos dias, idéias de seres-no-mundo abertos ao devir e interessados na imanência (em oposição à transcendência).

Pois é. Ninguém vê duas vezes o mesmo filme, será que eu preciso lembrar alguém disso? Nós mudamos e os filmes mudam para nós, não?

Nosso problema pode ser definido pelo velho provérbio, ‘casa que não tem pão, todos brigam e ninguém tem razão’. Ou todos têm parcialmente razão, isso não faz diferença. O fato é que não adianta culpar realizadores ou preservadores por suas atitudes subdesenvolvidas (chamemos assim, nostalgicamente). Porque não me parece ser o mais importante no momento tecer julgamentos morais sobre gestos como embarreirar a exibição de cópias de filmes ou fazer um número alto de cópias-tiragem a partir do negativo original. Isso tudo às vezes é apontado como o problema central, mas não é, é só a pontinha do problema. O problema é que não há demonstrações evidentes de interesse da sociedade (ainda que pela via do estado) em se preservar o cinema brasileiro – logo, não há grana.

Não há grana porque o país é pobre? Bem, leite de criancinhas é um argumento já folclórico. Mas o caso é que nosso amado Ministério da Cultura vem, seguidamente, terminando o ano com grande sobra de caixa – parece brincadeira, mas não é, foi inclusive noticiado em um grande jornal carioca que nosso amado ministro Weffort autorizou a contratação de uma empresa de consultoria para elaborar um plano de administração futura dessa verba, isso foi feito há coisa de dois meses, depois de quase sete anos no cargo. Há casos semelhantes em secretarias de cultura estaduais e municipais. O que falta é organização e projetos.

Aí chegamos ao ponto interessante, ao ponto que intitula essa artigo – O que é preservar um filme? Não tive como escapar da lembrança da oposição dos filósofos, de como valorizamos o que se preserva, mas também como aprendemos a valorizar o que surge com o fluxo – e o que se mantém a partir do fluxo. Qual é o projeto, afinal?

Sim, porque é preciso estruturar financeiramente nossas cinematecas, de um jeito que funcione e que dê conta das imensas e constantes necessidades. Mas, ok, e depois? Me desculpem a má imagem : manter um filme escondido numa cinemateca é feito ter um sujeito em coma – isso não é vida, mas pode voltar a ser. Não é orgulho ter cinco mil filmes escondidos, o importante é que estejam facilmente disponíveis.

Mas pode-se dizer que é perceptível o interesse pelo assunto da parte da sociedade e de seus representantes públicos que cuidam especificamente do assunto? Há interesse por projetos de preservação realmente consistentes? Não é difícil elaborar a criação de um fundo financeiro para preservação de filmes – nem é difícil justificar o uso de verbas a partir das sobras do dinheiro destinado em orçamentos prévios à área cultural – dinheiro que deveria ser gasto em produção e difusão cultural e por quaisquer motivos não tenha sido. Justificar não é difícil, mas conseguir é sim, a gente sabe disso. Só que é aí que a coruja dorme. Tem alguém que realmente batalhe por esse tipo de projeto? Batalhe na prática, quer dizer, no front da pequena política, procurando empresas e poderes públicos com propostas definidas?

Porque, se houver, aí vem a curiosidade: como é o projeto de preservação de filmes, no Brasil?

Mesmo tendo o carinho pelo MAM que a assiduidade me trouxe, devo lembrar que o país não termina na Via Dutra, é maior que Rio de Janeiro e São Paulo. E depois de preservar? Passar nas telas de cinema de todo país?

Dos mais de cinco mil municípios brasileiros, nem dez por cento tem sala (ou tela) de cinema. Já tiveram, não têm mais. Têm televisão, serve? Deveria servir, já que o Estado Brasileiro controla uma rede nacional de televisão (além de regulamentar as outras, mas vamos pular essa parte, que seria chatíssima, diria o que todo mundo sabe e tornaria essa artigo longo demais). Tá certo que essa rede nacional de televisão é muito mal difundida e, não raro, tem péssima qualidade técnica de transmissão – e será que seria muito complicado resolver isso?

E a mais produtiva maneira de difundir é selecionar a difusão, me parece. Sem selecionar nada, o que fica não é tudo, na verdade não fica nada. Não adianta pretender restaurar filmes tendo em vista exibições comerciais. Todo tipo de filme deve ser restaurado e colocado à disposição do público, mas é preciso também projetos de difusão específicos para os cânones, sem pudor de canonizar. Certo, precisaria ter critérios (que são sempre discutíveis) na escolha desses filmes , mas, ora, não é assim quando escolhem Machado de Assis? Os critérios são sempre discutíveis, mas precisam ser usados para poderem ser ampliados. Ou será que isso custaria caro e tiraria leite de crianças?

Nosso Ministério da Educação distribui vídeos e computadores pelo país para ajudar as professoras a educar as crianças. Distribui Machado de Assis a várias bibliotecas país afora –e ainda bem que o faz, nunca é demais louvar as boas iniciativas. Pois precisa distribuir filmes para o acervo dessas cidades também – os filmes mais renomados da cinematografia brasileira, assim como faz com livros. E até poderia programar filmes na sua Rede Escola para auxiliar o aprendizado em diversas matérias.

Pois é, as crianças assistem muito os programas disponíveis na tevê. Não é muito fácil para elas encontrar filmes brasileiros na programação. Confesso que imagino aqui a resposta que eu ouviria dos detratores em geral, “mas que crueldade, querer impor ‘Terra em Transe’ para as crianças, elas vão acabar assistindo às pornochanchadas, nossas pobres crianças, sem leite e com ‘Terra em transe’...”. Até acho alguma graça na idéia que me passa pela cabeça, mas o humor azeda quando a gente pensa na programação disponível nas tardes e noites televisivas. Nenhum problema, cada um assiste ao que quiser. Mas será que pode assistir a tudo que quer mesmo?

Canonizar é sempre um problema. Muitas crianças podem achar chatíssimo ter que estudar Machado de Assis ou Manuel Bandeira, mas é sempre possível que uma, duas ou mais se interessem e façam valer a pena todo esse esforço de produção, de manutenção, de difusão, de exibição. É isso que justifica, não é? Crianças todos somos. Talvez não seja leite, mas isso também nos alimenta, não?

É, sim, preciso mostrar e tornar disponíveis muitos filmes país afora, seja pela Rede Nacional, seja pelas cópias de filmes da Funarte – uma coleção que precisa crescer e se difundir numa escala imensa – que, por acaso, almeja? É preciso sobretudo tornar fácil o acesso a filmes preservados, a quem quer que pretenda vê-los. Isso requer grana e organização, com certeza – mas não dá para escapar de pensar nos inúmeros e deliciosos coquetéis que nos proporcionam nossas carinhosas leis de incentivo à cultura. Todo mundo tem direito a, uma vez na vida, usar o argumento do leite das crianças, não é mesmo?

O fato é o seguinte: enquanto não conseguirmos preservar vivos os nossos filmes, temos mesmo que ter vergonha em nos olharmos no espelho. Nem que seja por uma homenagem da hipocrisia à virtude, uma vez que, como sempre nos é lembrado, é isso que a perda desses filmes significa. Perdoem outra má imagem, mas, retomando a metáfora do filósofo, o que temos é um rio que vê sua fonte secar e erodir. Ele não terá suas águas transformadas quando por lá passarmos – simplesmente porque a água está minguante, o rio está secando. Para permanecer, é preciso se adaptar ao fluxo. Mas, meramente entregues ao fluxo, viveremos no reino do imediatismo de Cronos. Quem o venceu foi seu filho Zeus, o deus dos raios – e dos pensamentos. Se disfarçou em pedra para sobreviver ao imediato cronológico. Atiradas em rios, as pedras correm, mas não se desfazem.

Não, não, a sugestão central desse artigo não é que se lancem latas de filmes antigos em alto-mar.

Enquanto escrevi esse artigo, pensei bastante em lembrar de Ademar Gonzaga – nosso maior gerador de cinema até metade do século XX – e do seu mítico filme perdido, Barro Humano, falar também de Favela dos Meu Amores, o filme de Humberto Mauro que falou das favelas antes de aparecerem Nelson Pereira e o Cinema Novo, pensei também em lembrar do caso do nosso querido Carlão Reichenbach, que tem sua posição renhida de desconfiança com relação à Cinemateca Brasileira – desde que descobriu que os negativos de Filme Demência, lá depositados, estavam danificados (“Meu melhor filme, porra!”), de forma definitiva, mas nada comprometedora, por muita sorte, pouco mais de dez anos depois do filme ter sido lançado – e que, recentemente, descobriu que a mesma Cinemateca Brasileira tinha recuperado em seu acervo o negativo original de Corrida em Busca do Amor, que o próprio cineasta já considerava perdido. Lembrei-me de todos eles, mas é na família De Andrade que penso agora, e é a ela que dedico essas linhas contracampistas. Vou terminar esse texto lembrando um pouco o dr. Rodrigo Mello Franco de Andrade, que foi o primeiro diretor e o organizador do Patrimônio Histórico Nacional, nomeado por Gustavo Capanema a partir de indicação de Mário de Andrade – e, segundo a opinião da época, fez um trabalho esplêndido. Lembro também da neta dele, Alice de Andrade, que, além de tocar adiante sua carreira de realizadora, ainda cuida como pode da restauração e preservação dos filmes do pai dela, junto com Ana Maria Galano. E me parece que toda essa defesa de preservar vivos os filmes se justifica lembrando justamente de filmes como os de Joaquim Pedro, que são uns filmes do cacete e precisam ser muito bem preservados e muito bem vistos. Não há como escapar da lembrança dessa família ao falar em preservação histórica no Brasil, e é por isso que a ela dedico esse texto.

Esse texto, como toda essa pauta, é para não esquecer desse monte de coisas que a gente tem que ter como lembrar. Que nós consigamos preservar a valer os filmes dessa família imensa e brigona que é o cinema brasileiro, esse me parece ser um bom desejo para o fim de ano – já que nem todos os filmes têm seus realizadores ou suas mães ou filhas para lhes proteger. Como já se disse, se nós não amarmos nossos filmes, ninguém o fará por nós.

Texto publicado pela primeira vez em dezembro de 2001