23/07/2008

A Moda Buena Vista - a propósito de Buena Vista Socia Club (1999)

Fui ver “Buena Vista Social Club” durante a Mostra, aqui no Rio, num dia em que fui barrado na sessão de “Solaris”, que estava lotada (!). Menos mal que o filme de meia noite fora trocado, e o documentário seria exibido num horário que parecia adequado, sem grande alarde. Lá fui eu. E "Buena Vista Social Club" me fez pensar em muitas coisas... me fez lembrar de quando eu ia ver os filmes alemães do Wenders na sala 2 (em 16mm, coisa que não acontece mais...), "Paris Texas" na 3 e mostra Wenders na sala 1. No caso, lembro-me especificamente de uma vez com os filmes americanos, uma sessão dupla deliciosa, no tempo em que existiam sessões duplas, acho que '89, sessão esta com o "Hammet" e depois o "Amigo Americano", com o grande Dennis Hopper.

Pois é, a década de '90 me parece um pouco a época de crise dos autores, principalmente os europeus e americanos, Wenders, Scorsese, Coppola, até Almodóvar, grande parte dos estilistas está claramente em crise, o que não quer dizer que seus filmes estejam piores, de maneira nenhuma, mas eles não estão mais interessados em refazer os mesmos filmes, voltar constantemente aos mesmos temas.

E num momento de entusiasmo Wenders foi lá para Cuba fazer o documentário. O que eu achei do filme? Bastante desagradável, me senti mal em vários momentos. Mas isso porque eu vi uma verdade que não me agradou, portanto como documentário o filme cumpre o seu papel, por caminhos tortos.

E porque não gostei?

Para explicar, vou me permitir divagar um pouco... Dois dias depois que eu cheguei a Paris, numa viagem feita no primeiro semestre de 1998, eu vi na capa do caderno cultural do Le Monde (um jornal chatíssimo) uma foto de Francisco Repilado, o famoso Compay Segundo. Como comprar músicas caribenhas era um objetivo que eu tinha, logo me interessei pela reportagem, que tinha o título "O que há de novo em Paris" e o subtítulo "O que há de novo é este senhor de noventa anos!". Apesar dos estímulos dados por Malan e Franco, àquela altura eu não podia gastar meus parcos trocados, o disco "Buena Vista" estava sempre caro, mas acabei arrumando umas promoções com dois dos discos solo do nosso amigo, "Yo Vengo Aqui" e "Lo Mejor de la Vida". Não tive dinheiro pra ir ao show do cara, coisa que só fui fazer um ano depois, no Canecão, e o disco "Buena Vista Social Club" eu também demorei um pouco mais para ouvir. Quando enfim ouvi, foi fácil perceber a diferença, eu estava diante de um produto bem mais elaborado.

Elaborado demais. É disco de produtor, não de músicos. Isso não tem problema quando a gente ouve o disco, ele é bonito de todo jeito. E de fato a guitarra está mais destacada na equalização, mas a guitarra é boa, tem um clima cafona. De fato, a atitude do produtor não é muito elegante, mas isso não estraga o produto.

Aliás, isso não é raro. Stan Getz fez a mesma coisa nos discos que gravou com João Gilberto. É um expediente mesquinho, mas a obra pode sobreviver a isso. É claro que pode ser mais confortável admirar artistas íntegros, mas eu acho que a admiração estética pode ir além da ética, eu gosto de ouvir Wilson Simonal, mas isso não espalhem...

Mas isso tudo que eu falei foi sobre o disco, e o assunto que eu quero abordar é o filme, e se eu dei essa volta toda foi pra notar que o filme revela claramente, para quem quer ver, todos os problemas do projeto "Buena Vista", e isso faz dele um documentário paradoxal pra chuchu, porque às vezes parece que o próprio Wenders não nota, às vezes eu achava que ele estava fingindo que não via, o que é óbvio na tela, que não há intimidade entre produtor e músicos contratados, a relação é profissional e pouco íntima, embora se tratem com simpatia. Além dos monólogos egocêntricos de Cooder, podemos perceber isso no curto diálogo que ele mantém com Ibrahim Ferrer. Eu disse diálogo? Como diálogo, se depois de dois anos de convivência Ry Cooder ainda não fala uma palavra de castelhano??!

O diálogo entre ele e Ferrer entra para a antologia dos momentos mais constrangedores das histórias do cinema e das relações entre patrões e empregados. Não apenas porque ainda necessitam de tradutores, mas pelo tema mórbido que desenvolvem. É de ter engulhos, mas expõe claramente as limitações do projeto.

Porque é um projeto de gringo, é um projeto de quem desconhece o tema tratado, é um projeto com olhar deslumbrado, deslumbrado pelo que lhe é exótico.

Eu falei há pouco que a admiração estética pode ir além da ética? Pode até ser, mas nas artes narrativas isso complica ainda mais. Não há muito problema em gostar de um cantor dedo-duro, mas um filme ignorante e caça-níqueis já é mais complicado, mesmo quando nós aprendemos muito durante sua sessão.

O projeto e a moda "Buena Vista" me parecem ter um grande defeito e uma grande vantagem. O problema do projeto é que ele valoriza a música cubana "de raiz", contrapondo aos grandes músicos que foram pros Steites fazer "salsa" ou jazz latino, como Tito Puente a diva Célia Cruz. Além do absurdo inato a essa valoração, esta interpretação esconde a profunda, e enriquecedora, influência americana na música dos bons velhinhos. Isso é evidente numa canção do disco cuja harmonia é idêntica à primeira parte da clássica "Stormy Weather", do Harold Arlen, e no filme isso é reforçado pela bela interpretação de "Begin the Beguine" pelo Ruben Gonzales. Cuba foi a boate americana desde a época da guerra com a Espanha até a revolução, foi quase o 51º estado americano, como querer exigir "raiz", "pureza", num caso desses?

A vantagem é que, de fato, levaram para o mundo ótimos músicos que estavam esquecidos em seus cantos. Talvez por isso eu tenha me lembrado tanto do Dino 7 cordas e do Altamiro Carrilho durante a sessão, e talvez por isso eu agora tenha colocado pra tocar um belíssimo disco do grande Abel Ferreira. É pena que não haja um Ry Cooder disposto a fazer o mesmo pelos nossos músicos de choro. Abel morreu pouco conhecido no Brasil, no exterior quase ninguém sabe quem ele foi, um dos maiores saxofonistas do século. Dino é o símbolo maior de uma linguagem brasileira no violão, cuja tarefa é marcar o baixo e fazer os contrapontos, ele começou no conjunto de Benedito Lacerda, tocou com Pixinguinha, Carmem Miranda, Jacob do Bandolim e quase todos os grandes nomes da chamada MPB. Quem os conhece no exterior, e mesmo aqui no Brasil, esses músicos geniais, esses artistas iluminados? Será que nos falta um Ry Cooder, mundo terrível?

Texto publicado em novembro de 1999