15/07/2008

Uma investigação - Sobre O Padre e a Moça (1966)

Todas as entrevistas que estão sendo apresentadas nessa edição da Contracampo foram feitas ainda em 2000, para a produção de um vídeo documentário sobre O Padre e a Moça, vídeo este até hoje em processo de finalização, caminhando no ritmo tradicional das produções a custo zero (ou quase). A partir de um curso (ou “atelier”) de cinema documentário que propunha a feitura de um vídeo, eu e mais duas amigas, Clara Linhart e Camila Maroja, resolvemos fazer um documentário sobre um único filme, O Padre e a Moça, e sobre as pessoas envolvidas na sua produção, do diretor já falecido, Joaquim Pedro de Andrade, aos assistentes e figurantes. Além de estarmos estimulados pelo afeto que o filme provocava e pela notícia de sua restauração, na época ainda em curso, e além do interesse e admiração pelos envolvidos na produção, nos intrigava de início uma frase conhecida de Mário Carneiro, que contava que Joaquim Pedro teria levado vinte e cinco anos para reconhecer o valor do filme – é melhor descontar o fato de que Joaquim já não estava vivo vinte e cinco anos depois da produção d’O Padre e a Moça... Mas, enfim, o que nos perguntávamos era o que teria provocado aquela repulsa inicial (ou final, dependendo do critério) ao próprio realizador do filme.

Bem, chegamos a não apenas uma, mas várias respostas, de cunho estético, financeiro, amoroso, social, técnico, político, nenhuma delas no entanto definitiva ou satisfatória. Isso não importa mais, importa sim que nossa pesquisa tinha como objetivo ir em busca dos artistas que o fizeram e investigar este certo instante do encontro entre eles, que havia tido este certo resultado que nos motivava, um filme que nos provocava o afeto. Por conta dele, fomos ao encontro de figuras notáveis na história do cinema brasileiro, que nos deram aqui seu depoimento sobre seu papel neste momento de produção e ainda generosamente nos falaram sobre boa parte de suas experiências anteriores e posteriores. Como o vídeo passará por um processo de seleção e edição que resultará no corte do que nos parecem ser informações preciosas, resolvemos publicar aqui na Contracampo a íntegra dessas entrevistas, possibilitando aos leitores um olhar pleno de informações e opiniões sobre um filme, uma época e algumas pessoas.

Assim, tanto esta pauta da Contracampo quanto a proposta do vídeo que a originou se interessam em documentar não apenas o filme em questão, mas sobretudo os envolvidos em sua feitura. Sendo assim, vale a pena repassar aqui a equipe de O Padre e a Moça integralmente. Ela era composta por: Joaquim Pedro de Andrade, diretor, roteirista e produtor; Mário Carneiro, fotógrafo, cenógrafo e câmera; Eduardo Escorel, assistente de direção e montador; Fernando Duarte, assistente de câmera e fotógrafo still; Raimundo Higino, diretor de produção; Carlos Alberto Prates Correa, continuísta; Flávio Werneck e Geraldo Veloso, estagiários de produção; Carlos Lyra, compositor da trilha; Guerra Peixe, orquestrador; Quinteto Villa-Lobos, execução da trilha; Luiz Carlos Barreto, produtor associado. O elenco era formado por Paulo José, Helena Ignez, Mário Lago, Fauzi Arap e Rosa Sandrini. E o filme se ‘inspirava’ num poema de Carlos Drummond de Andrade, O Padre, A Moça.

Além das entrevistas aqui apresentadas, foram gravados em vídeo depoimentos de Sarah de Andrade, esposa de Joaquim na época, e de habitantes da cidade onde o filme foi feito, São Gonçalo do Rio das Pedras, que foram testemunhas das filmagens, inclusive o senhor – Seu Nestor – que, como conta Mário Carneiro, salvou a vida de Joaquim Pedro e Fernando Duarte. Estas entrevistas, no entanto, não caberiam aqui, numa pauta que se direciona para figuras essenciais de um período do cinema e da cultura brasileiros. Também foram gravadas imagens da demolição da casa em que Joaquim Pedro passou boa parte de sua vida, em Ipanema. Por outro lado, não foram feitas entrevistas com Fernando Duarte (fotógrafo de dezenas de filmes, que antes de O Padre e a Moça já fotografara a versão interrompida de Cabra Marcado Para Morrer), de Raimundo Higino (que trabalhou na produção de inúmeros filmes), de Geraldo Veloso (realizador de Perdidos e Malditos e montador de vários filmes do chamado Cinema Marginal, entre eles Bang-Bang), e também de Fauzi Arap (ator e diretor de teatro e shows) e Carlos Alberto Prates Correa (realizador de, entre outros, Perdida e Cabaret Mineiro) – estes dois últimos, no entanto, foram procurados e alegaram desconforto em dar entrevistas, o que, reconheça-se, é uma postura constante em suas carreiras.

Dos que foram entrevistados, pode-se dizer que a visão de todos juntos parece traçar uma visão peculiar da cultura brasileira. Dos sambas da era do rádio e do teatro de revista feitos por Mário Lago ao envolvimento de Paulo José com as minisséries da Globo, passando pelas inovações estéticas dos trabalhos de Mário Carneiro e de Helena Ignez, em cada um dos personagens parece-se notar um brilho especial em sua área de atuação. É a eles e aos demais envolvidos no filme que todo esse projeto paga tributo, tentando descobrir de onde vem esse silêncio que nos fascina, que faz um filme que foi fracasso financeiro e ganhou fama de enfadonho ser também uma das obras mais lembradas e amadas do cinema brasileiro. Não por acaso, procuramos também Alice de Andrade, uma das responsáveis pela restauração do filme, que nos conta todo o processo que envolveu a empreitada (sobre a exibição da cópia restaurada já escrevi uma crônica, aqui mesmo na Contracampo, em sua edição 14). Ao pensar o documentário, imaginávamos sobretudo este contraponto entre uma casa demolida e um filme restaurado (e, no entanto, ainda quase inacessível). O que sobrava então de uma época? Procuramos então os depoimentos – e aqui estão, integralmente.

Todos eles nos pareceram trazer algo de muito vivo sobre um determinado momento de suas vidas. No entanto, o que parece emergir a partir da comparação entre ‘causos’ e anedotas e o filme em si é que este pouco ou nada tem a ver com aqueles. Não há anedota ou malícia que explique o encanto que uma certa história, uma certa atmosfera ou um certo tema podem causar. É essa própria sedução da narrativa que, como nota Paulo José, permite a cada um que crie para si os sentimentos que pensa ver na tela – isso num filme que parece tocar e revelar um sentimento e um desejo misteriosos e inevitáveis. Dessa forma, parece que todos os depoimentos trazem algo da própria vida – mas que nem de longe podem, com as histórias da vida, determinar e racionalizar a arte que fizeram – esta arte, esta pertence a quem quiser, pertence a cada um de nós.

Texto publicado em setembro de 2002