24/07/2008

Discutindo esse tal de “cinema popular” no Cine BH

No início de novembro aconteceu em Belo Horizonte o CineBH, no aprazível bairro de Santa Tereza. Aconteceram alguns encontros bacanas por lá, tanto de filmes quanto em mesas de debate – participei de duas delas, numa mostra em que foram exibidos em sessão dupla o clássico São Paulo S.A., do Person, e o bonito A Via Láctea, da Lina Chamie, e que também exibiu Eu Matei Lúcio Flávio em tempos de Tropa de Elite. O filme do José Padilha acabou sendo discutido em boa parte dos debates, mas é um filme com questões tão específicas que merece um artigo à parte. Mas, de todo modo, o que me motivou a escrever essa crônica foi a participação em duas mesas que, de certa forma, trataram dos espaços tidos pelos filmes brasileiros recentes. Isso, somado à leitura de uma interessante entrevista de Jorge Peregrino, o responsável pelas ações de distribuição da Paramount na América Latina, me levou a querer voltar a alguns pontos aqui na Contra. Para registro.

Não pude, para meu azar, estar presente na abertura nem na primeira mesa de debates, que contava com a presença de vários realizadores mineiros. Na primeira mesa em que participei lá em Belo Horizonte, no segundo dia da Mostra, estive na boa companhia do Hernani Heffner, do José Carlos Avellar e do Inácio Araújo. No final o debate esquentou: que tipo de filme deve ser estimulado no país e que tipos de filme devem ser produzidos? Inicialmente o Hernani fez um histórico naquele nível fabuloso que a gente conhece e me levou a pensar em algo que pode parecer evidente, mas precisa ser compreendido para se entender o panorama atual: por conta de todas as alterações na própria forma de ter acesso aos filmes, o público de cinema mudou inteiramente seus modos de acesso, seus gostos e seu repertório. Não foram poucos os que sonharam com uma indústria de cinema no Brasil e gastaram fortunas e anos nessa quimera – mas hoje um sistema desse porte soa ainda mais irreal justamente porque se trata de um sistema insustentável, que foi parte de uma outra era. Os sistemas com maior nível de produção dependem do apoio governamental ou de redes de televisão. E por aqui, como sabemos, há essencialmente um suporte estatal para a produção, com ainda incipientes esquemas de difusão.

Já que a produção depende das esmolas do suporte estatal, a questão da escolha dos filmes a serem apoiados volta sempre à tona, e esse primeiro debate de que participei não foi exceção. Um jovem curta-metragista mais entusiasmado defendia que era preciso apoiar mais filmes como O Invasor e que filmes como Carandiru nem deveriam ser feitos, na sua opinião. Bem, apesar de achar curioso que os filmes citados não sejam muito recentes, comentei que acho Carandiru um filme bastante interessante, como os leitores da Contra já souberam através de um Cinema Falado, mas o sentido geral do que ele disse (além, é claro, da empolgação, sempre louvável, mesmo que eventualmente cansativa) não me parece de todo errado. Avellar ponderou que, na sua opinião, qualquer filme realizado é algo bom, porque por pior que seja permite uma discussão sobre ele. Não discordo dessa afirmação, cuja tendência aqui no Brasil seria associar ao pensamento do Paulo Emílio, mas acho interessante voltar a essa questão depois de ter lido a entrevista do Jorge Peregrino, porque nela o distribuidor aponta que é preciso diferenciar filmes “autorais” de filmes “comerciais” – que os primeiros podem ser feitos a fundo perdido, mas os segundos precisam apresentar retorno de bilheteria, uma vez que é a isso que se propõem. Creio que qualquer tentativa de conceituar o que seria “autoral” em oposição ao que seria “comercial” seria bastante frágil – no entanto, parece-me mais simples diferenciar orçamentos altos de baixos orçamentos. Seria simples e estimulante para o espaço dos filmes se na nova versão da Lei do Audiovisual tivesse sido inserido um item que exigisse alguma espécie de reinvestimento da renda. Na atual estrutura de apoio filme a filme, no entanto, não existe cinema popular ou comercial, existem apenas ocasionalmente filmes-fenômeno, a uma média aproximada de um por ano, como se sabe.

De todo modo, vale lembrar, sem nenhuma dose de novidade, que nem o incentivo à produção nem a discussão sobre filmes podem ficar pautados pela questão da bilheteria. E, justamente por isso, a lógica do apoio às produções de baixo orçamento fazem muito mais sentido do que o benefício a um cinema dito comercial que no entanto dá prejuízo – digo que “faz mais sentido” porque é mais coerente com um esquema de incentivo que permite fenômenos eventuais, mas não organiza um sistema em que os filmes estão em relação direta com as platéias. (Talvez esse seja um comentário paradoxalmente repetitivo e fora de época, uma vez que a Lei do Audiovisual já foi prorrogada sem alterações nesse sentido).

No debate do dia seguinte, mediado pelo cinético Léo Mecchi, estiveram juntas pessoas que representavam algumas tentativas de difusão dos filmes, à margem do esquema de exibição em circuito comercial: cineclubes, festivais, DocTV, pontos de cultura. A discussão focava o fato de que cada vez há mais esquemas de difusão dos filmes que ficam à margem do circuitão se estabelecendo por aí – se o circuitão está cada vez mais barra-pesada, então a solução para a difusão é arrumar esquemas alternativos. Eu já tinha comentado com o Léo noutra ocasião que tenho tido a chance de ver como isso anda rolando por conta das notícias que recebo sobre as exibições do Conceição – fiquei sabendo de esquemas de difusão em horários alternativos, como faz o Cinecult, e dos esquemas de exibição em cineclubes que andam acontecendo, por exemplo. No final do debate, o foco na difusão pela TV levou a um questionamento sobre as ações recentes do governo, que foi defendido pelo Mauricio Hirata, diretor do programa DocTV. Essa ação do MinC de que o Mauricio participa é muito interessante, mas ele ficou numa saia justa, até injusta, quando foi lembrada a questão da exibição dos filmes incentivados na rede pública de TV. Por quê os filmes não são exibidos assim? Seria injusto cobrar uma resposta do Mauricio Hirata, que estava representando uma outra ação do MinC, muito boa como já foi dito. Mas a TV é a questão inevitável quando se pensa em difusão alternativa em larga escala.

Outra questão bem óbvia seria o uso da web. Não seria interessante se os filmes incentivados se tornassem disponíveis para download após alguns anos de janela comercial?

(Começo a ficar receoso de que esse texto se torne uma coleção de idéias fora de hora... Mas não fora de lugar, ao menos)

O segundo debate de que participei (e último em que pude estar presente), com mediação do Ricardo Calil, tratou de diálogos entre filmes de diferentes períodos – a curadoria do cinético Cléber Eduardo, como já comentei, juntou na programação filmes tematicamente próximos, como São Paulo S.A. e A Via Láctea ou Menino do Rio e Houve Uma Vez Dois Verões (além de relembrar Eu Matei Lúcio Flávio em tempo de Tropa de Elite). Lina Chamie, a diretora de A Via Láctea, falou sobre sua alegria em ver a reunião do seu filme com o do Person em uma sessão dupla – algo que ela já havia comentado com emoção quando apresentou o filme para o público – e também falou sobre outras relações com obras diversas que lhe ajudaram/inspiraram a produzir o seu filme. Como andei tratando dessas relações entre filmes de épocas diferentes em alguns trabalhos recentes (uma proposta de mostra, um texto juntando Rio Zona Norte e Madame Satã, outro juntando O Signo do Caos e Serras da Desordem), tentei tratar não exatamente do que aproxima os filmes, mas o que aproxima a própria origem deles – o que têm em comum na perspectiva de que partem para mostrarem seus mundos. O debate ficou animado pelos questionamentos propostos pelos mineiros da mesa, os professores Ataídes Braga e Paulo Augusto Gomes. No caso do primeiro, Ataídes comentou como as relações históricas imediatas entre filmes são ao mesmo tempo redutoras e irrestritas, já que outros filmes de temas semelhantes poderiam ser usados, levando a outras relações – Paulo Augusto, por sua vez, fez uma defesa do viés autorista, considerando de modo geral que essa perspectiva de diálogos não trata das questões ligadas ao talento dos realizadores. A partir de um comentário do mediador Calil e de outro do Cléber, saí do debate com uma questão na cuca, por conta da reincidência de algumas questões que aparecem nos filmes de uma forma quase cíclica, se esse termo já não estivesse contaminado demais ao se falar de filmes brasileiros. Cheguei a comentar sobre a relação que vejo entre O Signo do Caose Carnaval Atlântida, mas talvez tudo seja uma grande refilmagem de Carnaval Atlântida – e, eis o drama, agora sem Oscarito nem Severiano para ajudar a dar certo.

A impressão final, como ciclo, dá a volta e se assemelha ao início: a gente pode fazer filmes, mas sistema de produção que possibilite um cinema “popular” ou “comercial” só vai acontecer com espaço de difusão na TV e chance de reembolso e reinvestimento em novas produções. Sem isso, os filmes vão ser feitos, mas só vão poder se espalhar pelas margens – e ocasionalmente podem chegar à crista, que afinal é a margem superior das ondas.

Texto publicado em novembro de 2007