15/07/2008

Entrevista com Helena Ignez - para o documentário O Mundo de Um Filme


A gente queria começar falando da sua formação e do seu início de carreira, ainda na Bahia...

Pois é, foi uma época áurea para o teatro baiano, mais ou menos trinta anos atrás... Nós tínhamos uma escola de teatro subvencionada pela Fundação Rockefeller, com toda uma tecnologia de ponta maravilhosa, que até hoje você vê nas fotografias... Um álbum que a Dedé Veloso fez dos espetáculos da escola, você vê, parece uma Broadway extraordinária. Então, eu tenho essa formação, fui formada nessa escola por Martim Gonçalves, que era um aristocrático do teatro, um pernambucano que tinha morada muito tempo em Londres, era amigo de Arthur Miller, convivia com todas as celebridades da época, e não eram celebridades de apenas quinze minutos do mundo pop, era também ligado ao Actor’s Studio. E junto com Gianni Ratto, que também era um dos grandes nomes, com Koellreuter, fundaram essa escola da Universidade da Bahia. Era nível universitário, então eu sou formada em teatro e em dança... Nesse período eu conheci Glauber. Eu tinha me matriculado e Glauber já era aluno de direito, estava lá repetente e, no dia do aniversário dele, que é também o dia do aniversário de Castro Alves, recém-passada no vestibular, entro no auditório da escola e vejo uma figura muito interessante, quem conheceu Glauber ou pessoalmente ou por sua atuação na televisão, que foi popular, imagina o que era a figura, né?... Nessa época ele tinha dezoito pra dezenove anos, como eu, e estava sorrindo e debochando de uma forma hilária, debochada e inteligente de um ator que fazia o Castro Alves... Então eu dei um risinho pra ele, e ele me deu outro. Começou daí um tipo de uma paixão, uma relação profunda, e principalmente de irmão, de irmandade, de companheirismo, porque nós estávamos saindo formados pelas mesmas pessoas. Essas cabeças que estavam formando Glauber também estavam me formando, então existia um companheirismo, e eu também tinha um outro lado, um lado de glamour girl, de menina de crônica social, e Glauber era a grande vedete intelectual da Bahia, assim, jovem. Absolutamente louco, vestido de uma forma muito estranha pra época, as calças aqui embaixo, um saint-tropez exageradíssimo... Era um escândalo, eram roupas escandalosas como a roupa de outros baianos dessa geração, como Paulo Gil Soares, etc... E Glauber era realmente um líder. E a partir daí começou esse namoro, que hoje está muito falado, agora mesmo esse livro que é interessante, que é Lúcia..., que o Arruda fez. Um livro muito interessante, se fala muito nessa figura, esse personagem juvenil, Helena Ignez... Então tem essa coisa que a gente estava lá e está aqui... é muito engraçado inclusive esse livro, porque tem erros realmente adoráveis, não é? Porque não é bem assim as coisas, mas ao mesmo tempo existe alguma coisa de poético que está no livro, que está presente, o livro é muito interessante e eu acho que foi um momento maravilhoso para Lúcia e para esse senador, o Arruda... Então, estou completamente a favor do livro, mas tem essas imperfeições, essas confusões um pouco com datas, pessoas, acontecimentos... E nessa época tem a história do Pátio, daí eu ter me lembrado da história do livro. O Pátio foi muito engraçado, porque eu tinha ganho esse prêmio de Glamour Girl, e foi uma coisa muito interessante, eu tinha sido eleita, enfim, concorri com outras garotas das sociedade baiana, vamos dizer, as patricinhas, e ganhei esse título de Glamour Girl em ’58, e recebi um par de brincos de jade, uma coisa belíssima que o banqueiro, o sr. De Carvalho, que patrocinava esses eventos, me ofereceu. Mas eu teria que receber no escritório dele, no banco, era o Banco da Bahia. E nesse dia, nesse primeiro contato pra receber essa jóia, eu falei de um rapaz que era um verdadeiro encanto, uma vedete literária e que queria fazer cinema, Glauber. E levei também uma revista que ele já produzia, Mapa. E o banqueiro me prometeu que iria patrocinar o filme, que seria mais ou menos dez mil dólares, seria uns vinte mil reais hoje em dia... E se fez O Pátio com a câmera que a Lúcia, a mãe dele, deu a ele de presente, mandou buscar e deu a ele de presente para fazer esse filme.

Como foi a experiência de participar do primeiro filme dele?

Foi o primeiro filme de Glauber, o primeiro filme, já escandaloso, escadaloso pela inteligência, pela arrogância de fazer... Um filme que parecia que era filme intelectual, mas na verdade mexeu profundamente com a alma popular, porque quando passou rasgaram as poltronas do cinema Guarani com giletes... Então revoltou... Já era uma coisa que mexia com as pessoas, era um cinema inconformista. Muito requintado, com uma música interessantíssima... Foi bom ter feito O Pátio. No livro também diz que Glauber me convenceu com muita dificuldade a fazer O Pátio. Mas na verdade não, eu quis fazer com ele, participei diretamente da experiência, não fui convencida por ele... Diz que foi mais difícil me convencer a fazer O Pátio do que casar. Talvez casar tenha sido mais difícil de convencer, mas afinal casamos.

Você fez mais cinema na Bahia antes de vir para o Rio...

Fiz, fiz A Grande Feira, eu preferia teatro, a experiência era pra mim mais próxima mesmo, e me interessava mais fazer teatro. Achava que era uma forma de expressão superior ao cinema. A Grande Feira também, eu também fui muito convidada para fazer, porque eu estava fazendo outras peças, Claudel, ensaios de Camille Claudel, não tinha muito tempo, e minha filha tinha acabado de nascer... Mas acabei fazendo, porque o personagem que eu fiz ia ser feito anteriormente por Odete Lara. E ele tinha podido na última hora, um compromisso, e aí eu fui substituí-la. Era também muito interessante esse filme de Roberto Pires, Roberto Pires é um cineasta popular muito interessante. Ele deveria filmar mais, tem grande capacidade.

Depois você se mudou, veio para o Rio...

Eu vim fazer teatro no Rio, ganhei um prêmio de revelação de atriz, e o Roberto... Ganhei com uma peça com Antonio de Cabbo, um diretor espanhol, se chamava Tudo em Família, era um desses sucessos internacionais, nessa época se fazia muito isso. E eu também participava dessas peças, uma comédia de costumes... E também o Roberto Farias, através de Luiz Carlos Barreto, que me conhecia já da Bahia, tinha me fotografado para a capa do Cruzeiro e outras revistas, me indicou para fazer O Assalto ao Trem Pagador. Então eu comecei a trabalhar em cinema num ritmo mais profissional. Vieram vários filmes, inclusive O Padre e a Moça, três anos depois...

Começou aí uma fase de muita produção.

Foi... foi uma época de muito filme, de muito teatro e televisão, também fazia bastante televisão, principalmente ligada aos musicais. Porque eu sempre tive minha queda pelo movimento, então eu era uma dessas apresentadoras preferidas dos músicos da época, bossa nova e etcétera... Trabalhei com Ronaldo Bôscoli... E exatamente eu compunha um tipo mais forte, naquela época o pessoal ainda estava muito preso ao estilo aos cinquenta, e eu já vinha com uma coisa mais solta, já era de vanguarda, há bastante tempo, desde a Bahia (Helena ri)...

Mas a interpretação em O Padre e a Moça não tem nada de vanguarda...

Não, nada...

Como você conheceu Joaquim Pedro?

Joaquim me conheceu desde O Pátio...

Foram apresentados por Barreto?

Não, Joaquim me conheceu desde O Pátio e eu era uma adolescente belíssima, e etcétera... E me chamou, eu fiz até um teste para fazer O Padre e a Moça...

Ele era exigente, pelo visto...

É, várias outras atrizes entraram, e, pra você ver como eu estou no filme, ele era realmente muito exigente, né?... E clássica, uma interpretção completamente clássica, e muito repousada, contida, sem movimento nenhum. Ele me dizia "Eu não quero que você tenha mãos nem braços no filme, e não sorria!". Porque também o sorriso era uma característica minha, que até Nelson Rodrigues tinha falado... E aí fiz esse filme com Joaquim...

Ele era muito rigoroso no set?

Era muito detalhista, conhecia também muito de interpretação... Joaquim era um ótimo diretor de ator, extraordinário, muito detalhista... Então era tudo ensaiado, muito ensaiado. Lá na casa da Nascimento Silva, nós ensaiamos quatro meses com o Luiz Jasmin, que ia fazer o padre. E Luiz realmente era o homem mais bonito da época. E era, aliás, é um pintor extraordinário... E então, quatro meses de ensaios diários... mas ensaio como se fosse teatro, seis, sete horas de ensaio por dia, improvisações, etc... Com Fauzi, Fauzi também orientava, o Fauzi nesse período mais experiente, como sempre... Ele trazia a experiência do Oficina com Zé Celso, e então nós trabalhávamos exaustivamente... E fomos de trem para Minas, porque não havia outro jeito de chegar naquela região que foi filmada, Mariana... Não existia cidade, era um povoado que foi escolhido por ter teias de aranha na estrada, quer dizer, ninguém passava por ali. Era um lugar meio estranho, meio sagrado, meio amaldiçoado... Eu sei que, chegando lá, Luiz Jasmin adoece de hepatite e fica sem ator. Nessa região, sem ator e tal... E quem vai fazer? E o nome de Paulo José surgiu e ele veio fazer o papel... Mas foi uma experiência muito diferente, muito estranha aquela experiência de O Padre e a Moça. Apesar da beleza do lugar, um lugar muito especial mesmo, e eu tenho a impressão que sofri alguma coisa por ter passado de uma forma excessivamente inocente por ali... Eu peguei alguma coisa estranha, está entendendo?, em mexer com essa mitologia da mulher de padre...

É uma mitologia muito forte no Brasil, não é?

É, essa coisa da mulher do padre virar mula-sem-cabeça... Então tem uma coisa forte que eu passei. E, como dizem os chineses, uma das desgraças da humanidade é ter sucesso na juventude, e foi exatamente o que me aconteceu, eu tive um sucesso muito grande nessa época e mexi de uma forma que até hoje é a minha fonte de reflexão, como foi tratado esse momento meu na juventude... E é uma coisa muito interessante, e também como eu estou preparando um trabalho, um ensaio, uma reflexão sobre esse período que eu vivi e sobre eu mesma como personagem desse período... Então, isso vai ser falado num certo momento...

E como foi sua relação com o pessoal da cidade?

Bem, como você vê, tem o pessoal...

As velhas senhoras...

As bruxas!...

As... beatas?...

São as beatas que são as verdadeiras bruxas, que quando elas me atacaram, é muito estranho, quando elas atacaram o personagem, na Gruta de Maquiné, realmente tiraram sangue... Então, havia ali qualquer... Eu não sabia mexer com essas coisas...

E houve o problema da filmagem do fogo, não é?

É, quase ficamos por lá, quase ficamos por lá... Foi uma coisa realmente incrível, é um lugar maravilhoso, foi uma aventura, uma grande aventura. Aqueles velhos, os bêbados... Era uma cidade de uma total decadência, uma cidade fantasma, não existia jovens lá... Muito estranho, pessoas muito, muito velhas... Uma figuração muito especial... Só tinha uma atriz, que era a Rosa Sandrini, a chefe das beatas, que era atriz de televisão, rádio e circo popular que o Joaquim levou com a gente... E o Mário Lago. Essa mulher chefiava as beatas... E elas tinham por mim uma atitude dúbia, ao mesmo tempo que elas achavam que eu era Nossa Senhora, pela aparência você vê que eu tenho no filme, achavam que eu tinha uma coisa de Nossa Senhora, de santa, ao mesmo tempo elas confundiam com aquela mulher que seduzia o padre... Nunca tinham visto cinema, era um lugar meio esquisito aquele que Joaquim colocou a gente... E também tinha uma história de paixões, de amores, porque eu comecei o filme namorada de Joaquim, a gente tinha tido um caso, estava tendo um leve caso... Que acabou acontecendo... nem eu queria muito nem ele queria muito, depois aconteceu, acabou tendo conseqüências maiores. E Joaquim, eu vim a saber que ele realmente se apaixonou, ele me amava... E eu, irresponsavelmente, troquei de namorado no meio da própria filmagem, fiquei com Mário Carneiro (ri)... Isso criava uns climas também, uns climas estranhos... Era impossível não sair chamuscada brincando com tanto fogo, né?... Na Bahia eu já tinha recebido uma, com essa história de me separar de Glauber. E agora, de novo, o Cinema Novo... Então tem uma história, que eu não sei se é a hora de contar ou se deve ser contada através de livro, etcétera (ri)...

É impressionante como o clima do lugar parece influenciar os personagens...

Eles se transformam através dessa visão após ter acontecido, o clima, é um outro clima, tem mais clima do que a gente percebia... Esse trabalho atual para mim é muito bom, porque eu trabalho com a memória agora, nesse personagem da Marguerite Duras que é a Madeleine, escrita por uma grande que foi casada com Jean Louis Barraut. Foi escrita pra ela, e é uma peça sobre a memória, Savannah Bay. Então, tudo isso me ajuda. Mas é uma coisa... Mas às vezes a gente pensa: "Meu deus, que carma, que história a minha!", e tal... Porque é difícil às vezes também, mas tem suas compensações, pelo menos a visão que a gente tem da vida e das pessoas...

Você viu o filme recentemente?

Vi, eu acho belíssimo. Houve uma retrospectiva agora na Holanda, fora do Brasil... E O Padre e a Moça sempre causa encanto, é algo, assim, especial... Isso foi dito por outras pessoas, que trabalham em outros filmes do Joaquim, como a Ítala (Nandi)... E O Padre e a Moça sempre é recebido de uma forma muito especial. E foi um filme, aqui no Brasil, quase massacrado quando passou... E ele tinha uma relação difícil com o filme, não é? Foi forçada também, essa relação, né?... Porque na época existia uma cobrança muito grande da participação política, um ativismo político mais panfletário, mais imediato e mais grosseiro, coisa que não existe no filme... Então...

O filme, de todo modo, mesmo não sendo explícito no seu texto político, mostra miséria e obscurantismo...

É, essa Idade Média que a gente vivia e vive... As condições de abandono, que acabam se refletindo mesmo nos próprios personagens...Isso se reflete nos personagens, a condição do lugar em que foi filmado... Então existia essa cobrança muito grande... E eu também nessa época tinha me separado do Glauber, que não é uma coisa muito simpática...Glauber, um tipo mais efusivo, populista... Eu era acusada naquela época mais de aristocrata, apesar de ter uma ação política bem clara, porque eu fui do CPC, nesse período todo em que eu estava fazendo esses filmes eu trabalhava junto com o CPC... Mas tinha uma cobrança muito pequena, que na verdade é a cobrança da inveja, é a cobrança da incapacidade... então aparece uma obra de arte, uma maravilha como aquela que é O Padre e a Moça, claro que vai ter os eternos desgostosos, que levantam bandeiras para esconder sua própria mediocridade, sua própria falta de coragem em fazer arte... E eu fui também com esse filme para Berlim... Em Berlim eu ganhei uma menção honrosa como uma atriz que estava surgindo, e fui mesmo cotada para o papel...

Quando foi isso?

Fui pra Berlim em ’66. Fui cotada, tive votos para melhor atriz. Ganhou uma atriz americana, uma extraordinária atriz americana, já bem mais velha... E eu achei justíssimo. Mas sempre tem essas coisas, eu era sempre mais moça... Nessa época os atores, e eu era bem representante disso, eu sempre era mais moça, então as atrizes mais velhas... e depois, quando eu fiquei mais velha, agora é a época das mais moças, acho que eu estou sempre na contramão... Eu sou um pouco o personagem do Drummond, "vai ser gauche na vida"...

Quantos anos você tinha?

Vinte e três, vinte e quatro anos, era bem jovem... Mas já desquitada, com uma filha, já com muita história, e já me sentindo velha... Com 24 anos eu já me sentia completamente velha...

O clima entre os atores, como era?

No O Padre e a Moça? Era bom...

Você nunca tinha trabalhado com Paulo José?

Ele era ator principiante, ninguém sabia quem era Paulo José no cinema, mas ele era um ótimo ator de teatro, já tinha feito teatro em São paulo, com Boal, no Arena, e era um ótimo ator. Mas era um doce, como é até hoje... E o Fauzi, um ator extraordinário, eu era fã absoluta dele, adorava ele e ele me retribuía essa adoração, esse amor por mim, eu babava com o Fauzi... E é a pessoa mais neurótica do mundo e ao mesmo tempo a mais encantadora, era extremamente neurótico, Joaquim ficava louco com ele (ri)... Mas com essa neurose ele se defendia das qualidades de artista que ele mantém até hoje, então é uma neurose muito positiva...

Vocês ficaram quanto tempo na cidade?

Quatro meses. Num lugar isolado desses, sem fazer nada. Todas as fofocas do mundo em torno de nós, todas as fofocas possíveis e imagináveis... Recebíamos visitas ilustres, como Luiz Carlos e Lucy... Foram ver por que aquele filme nunca mais que acabava, né?...

Demorou muito?

Foram visitar e nós almoçávamos numa imensa mesa, onde pela primeira vez os técnicos comiam juntos dos atores e da direção, foi a primeira vez que eu vi isso no cinema. Joaquim, aquele democrata, espírito mesmo aristocrático-democrata, e era impossível que não fosse assim. Então todos comiam juntos, mas Joaquim, ao mesmo tempo, com seu lado fresco e aristocrata, ele botava uma musiquinha nas refeições para não se ouvir os barulhos do mastigar dos alimentos...

Comentam muito que ele era meticuloso com cada plano...

Extremamente meticuloso. Um plano poderia durar três, quatro horas tranqüilamente, até ter condições de luz e os atores estivessem precisamente como ele queria...

E, no fim das contas, ele implicou com a luz que o Mário fez, eles tiveram problemas...

Olha, os problemas eram só por causa da namoradinha em comum. Porque ele respeitava demais o Mário... Enfim, eu não sei a versão do Mário dessa história...

A gente deve entrevistar ele nos próximos dias...

Porque Joaquim realmente entendia e amava profundamente aquela fotografia... Impossível ser mais bonita!... Uma direção de arte, cenografia... que cenografia do Mário, que classe! É impossível que Joaquim não gostasse. Eles podiam entre si fazer uma ondinha, alguma coisa assim. Mas no fundo o respeito era total. Mas ele também era muito meticuloso, o Mário, com aquele fotômetro dele, é muito meticuloso, uma pessoa adorável...

Há uma foto do filme muito bonita de Joaquim indicando a interpretação a você e a Paulo José, com os braços contraídos...

Que bonito!... Acho que não conheço essa foto, gostaria de ver...

É um romance em que não tem beijo, né?

Não há sexo... Mas tem uma nudez.

Tem a cena de amor...

Aquela nudez linda, uma câmera que passeia maravilhosamente... Muito elegante, Joaquim era uma pessoa muito elegante. Uma das últimas coisas que vi de Joaquim, no aniversário de Ítala Nandi, poucos anos antes dele morrer, um ano ou dois, ele me falou uma coisa muito bonita, que eu caminhava entre a santidade e a sensualidade de uma maneira especial e invejável. Achei tão interessante essa coisa da santidade e da sensualidade, são coisas que Joaquim diria. Pessoas muito especiais que dizem essas coisas...

Como foi a repercussão do filme? Você acompanhou em festivais?

Festivais... Sempre o prêmio de melhor atriz. O que também não era nada simpático com minhas companheiras, que eram maravilhosas, como Leila Diniz, Anecy Rocha, Adriana Prieto... Mas quem ganhava o prêmio de melhor atriz sempre era O Padre e a Moça. Então ficava aquela coisa meio... eu já estava enjoada, eu não recebia os prêmios. Em Manaus, estava todo mundo lá, minhas amigas, nessa ocasião eu nem recebi esse prêmio, aí eu já era a mulher de todos... Eu já nem fui ganhar o prêmio, porque essa história de ganhar prêmio, também...

Você se aproximou de Sganzerla, foi trabalhar em São Paulo...

Eu fui a São Paulo fazer o Bandido da Luz Vermelha e logo depois fiz o Hair. Eu morava no Rio, eu vivia em cima de uma ponte aérea. Isso explica por que eu vivi tão pouco essa época com emoções, como mãe, como mulher, como namorada... Eu também fazia televisão direto em São Paulo, fiz com Régis Cardoso, tevê Record, aquela coisa toda. E fazia teatro no Rio, e fazia cinema no Rio e em São Paulo. E também fazia alguma coisa em Minas, com Carlos Alberto... Vivia nessa história de todos os lugares. E nessa ocasião, depois de O Padre e a Moça, foi que eu conheci o Rogério, e fui fazer com ele O Bandido da Luz Vermelha em São Paulo. Mas a minha cidade de opção é o Rio mesmo, pra morar.

E houve uma cisão então, não é? Porque Sganzerla tinha uma ligação afetiva com o Cinema Novo...

Mais ou menos, não era muito do Cinema Novo, porque ele vinha de outra origem, vinha do Sul, ele era paulista, morava em São Paulo. O Cinema Novo era mineiro, carioca e baiano, era mais essa área... E praticamente, se fosse feito alguma coisa em São Paulo, por exemplo, poderia ter o São Paulo S.A., do Person, mas não é considerado Cinema Novo... Eram personalidades muito fortes que o Cinema Novo tinha, como Luiz Carlos Barreto, uma grande figura ligada à mídia do Cinema Novo, a divulgação do nome do Cinema Novo, essa coisa toda... Então ficou fechado, afinal o Cinema Novo ficou sendo o grupo que fundou o Cinema Novo. Então a renovação ali seria difícil, principalmente se fossem pessoas tão brilhantes quanto eles...É aquela velha história de uma geração sucedendo a outra...

Como foi a apresentação do ‘Bandido...’ em São Paulo e no Rio?

Claro, o Bandido..., um sucesso popular muito grande... Eu assisti a primeira vez O Bandido da Luz Vermelha numa tela no centro de São Paulo, num cinema gigantesco lotado e com o público participando. Como participa até hoje, impressionante como o Bandido... Eu já assisti o Bandido na Bahia, de fora do Brasil, traduzido, ele é muito bem recebido...

Sustentou a Belair com a renda que fez, não?

É, na verdade A Mulher de Todos deu mais renda...Hoje o Bandido dá mais do que A Mulher de Todos.. Mas o Mulher de Todos é que... vai ter o seu momento... Tem críticos, como o Jean-Claude Bernardet, que acham o A Mulher de Todos o melhor filme brasileiro.

Em São Paulo o ‘Bandido’ foi muito bem recepcionado. E aqui no Rio, como foi a confusão? Há um certo mito sobre a sessão de apresentação do filme aqui no Rio...

É, foi muito chato, isso foi chato... Isso também foi o lado de Glauber que pegou, um lado pessoal, não precisava do... é tão pequeno... Eu lastimo que eu possa ter sido, de alguma maneira, motivo de controvérsia, motivo de fazer que despertasse nele esse lado mais escuro, né? Porque realmente houve um tipo de... Um sabotagem, uma coisa de querer cobrir o brilho do Bandido... Afinal, está aí, com muita clareza e força. Você vê, ao ponto de um filme chamado O Auto da Compadecida, eu não me lembro mais do nome do diretor, um filme com a Regina Duarte, mas eu nem lembro o nome do diretor, porque era totalmente descartável, foi escolhido para representar o Brasil em Cannes em vez do Bandido.... Sabotaram realmente a carreira internacional do filme, houve um sentimento de vingança feio, vingança, despeito.

Pesando muito nisso a relação pessoal...

Pesava muito, é horrível...

Não te parece que pode ter pesado contra o ‘Bandido’ o mesmo que pesou contra ‘O Padre e a Moça’, o fato de não ser um filme denuncista, panfletário?

Não, porque o Bandido é explicitamente um filme revolucionário, em qualquer sentido... O Padre e a Moça também tem essa aparência que o cobre de classicismo, que também irritou muitos. Mas O Bandido foi pior. O Joaquim, de qualquer maneira, tinha o apoio do grupo, né?... (ri) Já falei tanto...

Sobre a célebre entrevista ao Pasquim, foi algo pensado para afirmar aquele cinema que vocês estavam fazendo?...

Eu acho que ali tem bastante de impulso, de rompante da minha parte. Não pensei em ferir ninguém ali, simplesmente fui sincera, o que é péssimo (ri)... Não tem sentido também você ser sincera se é pra ferir as pessoas. Hoje talvez não fosse tão clara...

Pesando os prós e os contras, pelo menos deu uma rejuvenescida naquele ambiente, não?

Talvez, talvez... É isso, as coisas se transformaram, e também, ao mesmo tempo, as pessoas continuam com a mesma essência, não é?... O Orfeu é um grande filme do Cinema Novo, eu acho um grande filme do Cinema Novo.

Sobre a fase da Belair?

É, foi uma fase experimental, com inovações de linguagem... Um nível artístico muito bom... Eu acho que dali surgiram alguns dos melhores filmes brasileiros, veio o Sem essa, Aranha, belíssimo... São filmes difíceis de serem vistos, mas foram apresentados agora em Taormina, no ano passado, representando o Brasil, anos ’70... Passou o Sem essa, Aranha e, representando os anos ‘80, um filme dele quase desconhecido no Brasil, um média-metragem, Perigo Negro, baseado em Oswald de Andrade. Era pra passar uma vez cada, mas acabou passando duas sessões.

Os outros filmes com Sganzerla, como ‘Copacabana Mon Amour’ ou ‘O Abismo’?

É, são filmes muito agressivos, com uma interpretação muito boa do Otoniel Serra, do Paulo Villaça... Uma época muito louca, né?... A gente continua igual, só que transforma...(ri)

E sua experiência com diretores no set? Com tantos filmes, a experiência é muito variada, né?

É... recentemente trabalhei de novo com Julio, no São Jerônimo...Julio é um diretor adorável com os atores, São Jerônimo foi uma experiência divina, um papel mínimo, mas é de uma categoria... Eu gosto demais, devo ter, assim, um minuto e meio na tela, mas foi um minuto e meio especial pra mi, um personagem muito legal, que acabou me influenciando muito... Ele também me pediu o zero. Foram os dois diretores que me pediram o nada, foram o Joaquim, que me pedia muito o nada, e o Bressane. Eu só não podia ser totalmente seca porque choro o tempo todo no filme, é muito estranho, é bem Julio... Ele me dizia :"Ao mesmo tempo que eu quero seus olhos marejados o tempo todo, eu quero que você seja uma voz, uma voz que fala..."... Então ficou legal, é um diretor ótimo, fiz vários filmes com ele também, trabalhei com Grande Otelo, olha que delícia... eu acho que são bons... Tive sorte até o presente. Estou com um filme inédito, o filme mais recente de Rogério, ainda está em finalização, se chama O Signo do caos... Então, ao mesmo tempo estou preparando os meus, vou passar agora um pouco para trás das câmeras, vou botar minha metalinguagem na frente...

Está pensando em dirigir um filme agora?

É, eu tenho já alguma coisa, agora vamos começar...

Já está com roteiro?

Já, vamos começar a filmar... São sugestões de conversas com a Conceição Senna, uma atriz baiana muito interessante, morou em Cuba, tem uma experiência maravilhosa em Cuba como apresentadora de tevê... E também tem uma experiência parecida com a minha, então são conversas eróticas, tem uma tônica erótica muito forte, sobre a vida, a partir de nós mesmas...

Você falou em escrever para rememorar tudo isso...

É, mas esse escrever, pra mim, ainda vai ser através da linguagem fílmica, antes da linguagem escrita, eu quero antes partir pro cinema, antes de escrever. Eu não gosto de escrever, eu teria que gravar alguma coisa. Então, já que vai gravar, vamos também filmar...

Dando preferência ao cinema ou ao teatro?

Os dois. Eu estou com essa peça belíssima da Marguerite Duras, apresentamos num festival do SESC. E a gente recebeu cotação máxima do crítico da Folha, que muito nos honrou, o Nelson de Sá... Excelente... Sou eu e minha filha Djin... fazemos dois personagens da Marguerite Duras, no Savannah Bay. Além disso, estou também com um ciclo de viagens com uma peça que eu dirigi, que recebeu um prêmio do Ministério de Cultura, que é o Cabaret Rimbaud – Uma temporada no inferno. Estou fazendo bastante teatro, teatro é mais barato, está entendendo? Teatro você pode lidar mais com os personagens, de uma forma mais econômica que no cinema, é mais viável... Teatro é matriarcal, os personagens de teatro vão através da idade, o cinema ainda está limitado a um padrão, humano e social, principalmente, então os personagens para mulheres mais velhas são mais difíceis de aparecer, né?... E sempre se cobra alguma coisa a mais, que a idade não pode dar, a idade dá outras coisas... Então, um personagem completo com sessenta anos, que é a idade que eu tenho, é difícil de aparecer no cinema. Ou a gente cria, ou a gente vai fazer outras coisas, também criando... Não pode ficar esperando convites... E viva Fernanda Montenegro, com grande sucesso aos setenta anos!... Eu gostaria de fazer uma bandida, de muletas... De muletas é ótimo, né?(ri) ...



Entrevista concedida a Clara Linhart, Camila Maroja e Daniel Caetano em janeiro de 2000
Publicada pela primeira vez em setembro de 2002