21/07/2008

A Mulher de Todos (1969)



Por me propor a escrever sobre A Mulher de Todos, decidi rever mais uma vez o filme. E aí cheguei a pensar em algumas coisas esparsas a desenvolver. Mas um grande, sonoro e caudaloso palavrão talvez desse conta de todo o sentimento que as palavrinhas tentariam organizar a partir do filme. Então, fica o registro:

- Puta que pariu!!...

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Será este o filme nacional do século 21? Do 16 ou do 21?

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- Mens sana in corpore sano, o que vai fazer no fim de semana? Já foi à Ilha dos Prazeres? Dos Prazeres Extremos?

O nome dela é Helena. Como a de Tróia, que botou pra quebrar, trocou de homem, provocou um guerra e, depois que o ex-marido ganhou do segundo, voltou para ele e ainda o fez se ajoelhar diante dela, quarentona e inteiraça.

No filme é Ângela Carne e Osso, a ultra-poderosa inimiga número um dos homens (“Nós não gostamos de gente!”), de anja não tem nada, carne na medida certa e o osso nem se percebe, a rainha dos boçais, vampira histérica, cantora bêbada e hipnotizadora fracassada. Como assim fracassada, cara-pálida?

Ela canta Noel, ah, que mulher indigesta, merece um tijolo na testa, parece que é auto-crítica.... Mas se defende: “Dizem que sou louca, histérica. Mas eu sou uma mulher normal!”. De biquíni, se requebrando ao som do rock’n’roll. Mais tarde, irá enfiar uma agulha num de seus inúmeros amantes e em seguida nela mesma, e depois os dois vão lagartear por alguns momentos na areia da praia, à beira d’água.

Helena é como Garbo, como Lilian Gish, como Bardot jovem, como Deneuve, uma das mais magnéticas presenças já descobertas a vinte e quatro quadros por segundo e também uma atriz excepcional, e o filme é o filme de um homem apaixonado.

Apaixonado como o corno boçal Plirtz, o mais boçal de todos, o magnata do cartel dos quadrinhos que desconfia que Ângela está lhe traindo, e até contrata um detetive para seguir a esposa. Com quem ela lhe trai? Ora, compadre, procura uma lista telefônica... Também, um cara que tem tesão em ser chamado de bitolado, quer o quê, mané? Até o detetive cai de quatro e entra na roda!...

Mas a vingança não tarda...

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Nem está tanto calor, mas dentro da sala da Líder fica muito quente, o lance é ir com roupa leve. Será que eles vão gostar? A bossa é outra, mas a turma de São Paulo adorou. Mas lá todo mundo é camarada, a turma sempre toma umas e outras lá na Rua da Consolação ou na Augusta. Mas nem dá para reclamar da turma daqui, eles bancaram boa parte dos laboratórios com essa produtora coletiva, a Di Film.

Quem mandou querer ser artista de ninguém?

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Será essa a análise do século 21? Do 16 ou do 21? Do século 16 ou do artigo 16?

O artista de ninguém acorda cedo sempre, há muito que ele já quase não sai de casa. No Rio de Janeiro faz calor, mas ele sente frio, sente frio como nenhum dos seus personagens sentiu. Senta-se ao computador para tentar escrever algo produzível. Falar de quem? Dos gênios? Ou da mediocridade? Parece que ninguém mais sabe quem é Stroheim. Computador é um lixo, com papel e caneta ele produzia mais, muito mais. Riscar o papel faz bem, escrever garranchos... Acende um fino, começa a imaginar personagens perdidos ao léu, numa praia cheia de vento, ouvindo boleros tocados num piano cafona com orquestra. O problema não é o CD, é o cu doce, pensa ele, e ri. Imagina Glauber e imagina Welles, os dois sabiam que é Stroheim. Quem não sabe quem é Stroheim está por fora, nem existe. São os boçais, são os caras que não dão prêmio pra gente, teve um filho da puta que publicou meu nome na Folha de São Paulo, disse que eu roubei a Embrafilme, que apresentei nota fiscal de compra de fogões e geladeiras pra fazer curta-metragem, filho da puta!, eu nunca me meti naquela mamata, isso é coisa dessa turminha que está sempre aí, todo mundo sabe quem é. Esse negócio de roteiro é coisa de ignorante, o importante é preparar a cena e saber montar, cinema ainda é Eisenstein. Se a gente não pode fazer direito a gente avacalha, avacalha e se esculhamba. É, essa foi boa mesmo, uma tirada certa fecha qualquer filme, uma tirada certa fecha qualquer coisa. Eu procuro cultura, e só me sai dinheiro. Nós não gostamos de gente!

Será esse o brasileiro do século 21? Do 16 ou do 21?


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A história? Perua trai compulsivamente o marido rico, até que este descobre e resolve se vingar. Putz, originalíssimo. Agora, vai lá fazer...

Que Helena Ignez, depois de O Padre e a Moça, com esse filme acabou por escrever definitivamente seu nome entre os maiores do cinema, isso se comprova vendo. Que Villaça, Pitanga ou Stênio Garcia arrebentam, isso já seria imaginável. Que a narrativa visual, sonora e musical é antológica, isso salta aos olhos, e só não é revolucionária porque é inimitável. Mas o nome de um criador precisa ser lembrado nessa seqüência de loucuras arriscadas, o do doutor em cinema Peter Overbeck, o moço que cuidava de imprimir o fotograma.


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O filme na Bahia não vai sair, a grana não vai rolar, fazer o quê? Artista maldito é uma roubada, marginal é a mãe. Mas, olha, avisa aí pra essa turma que veio fazer um filme com grana da Embra que a gente pode conseguir maconha pra eles. Grandes quantidades.


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Como diz Plirtz, “eu sei que eu sou um bitolado, mas o quê que eu posso fazer?”. Afinal, como ele disse antes, “eu procuro cultura, e só me sai dinheiro!”. Não é a cara do Jô Soares? A voz em off : “será esse o brasileiro do século 21? Do 16 ou do 21?”.

Plirtz suspeita do que tem ou não valor, afinal ele é um bitolado. Beethoven tem valor, Lupiscínio Rodrigues não sei não...

Cinematografias subdesenvolvidas não são adequadas para figuras geniais, cinema é uma arte cara, e quem se arrisca paga caro. Acho que o Brasil teve a sorte de ter mais de uma dezena de grandes cineastas, mestres e honrados que conseguiram estabelecer suas carreiras, mas teve só três criadores cinematográficos definitivos, e nenhum deles conseguiu acertar sua carreira de uma forma produtiva que os satisfizesse de fato por um longo período. Mário Peixoto conseguiu fazer seu único filme ainda muito jovem, e depois todos os seus projetos cinematográficos ficaram pelo caminho. E Glauber Rocha teve condições de produção razoáveis apenas durante seus primeiros filmes e no seu último. Como disse uma vez Babenco, que pode não ser inventor mas decerto faz parte da dezena citada no início do parágrafo, esses três criadores certamente notaram o quão subaproveitadas pela sociedade foram suas capacidades criativas e produtivas. Não tiveram vidas fáceis. Bastaria dizer que são cartas marcadas pelo destino? Ou teria graça dizer o contrário, dizer que eram tábulas rasas, nasceram bons e foram maltratados pela sociedade? E de onde é que vem tudo aquilo de novo, então, caramba? “Eu não calculo nunca, mas quando eu faço uma besteira vou até o fim!”.

Cabe o clichê? Como cita a canção de Jobim, longa é a arte, tão breve a vida. E não é a vida que faz essa “arte”? Ficam os filmes. Os filmes de todos dos artistas de ninguém.



Texto publicado originalmente em agosto de 2001