02/07/2008

Na corda bamba, roendo o osso - sobre Tropa de Elite




Imagine o leitor que a já célebre cena de Tropa de Elite em que o aspirante/estudante Matias questiona sua turma na faculdade tivesse um final diferente. Imaginemos que, ao invés de um silêncio sepulcral, a acusação de Matias – de que seus colegas não conhecem a realidade do dia-a-dia da polícia e que contribuem para o tráfico enquanto vivem tranqüilos nos seus apartamentos na Zona Sul – tivesse sido sucedida por uma grande balbúrdia, com o jovem cercado por gritos dos seus colegas, fruto da discordância que aquela afirmação polêmica geraria. Possivelmente assim a cena seria mais verossímil, mais realista acerca das relações e reações dos personagens envolvidos. Não me interessa entrar aqui no mérito da consistência dos personagens – a questão se remete às suas ações físicas, simplesmente. O que quero notar é que o silêncio de uma turma de estudantes, ao ser acusada por um colega de não compreender o papel da polícia e ser cúmplice de criminosos, não é verossímil, é fabular. A cena se desenrola no filme do modo que vemos por um interesse central da sua narrativa: mobilizar o espectador, incomodá-lo, levá-lo a tomar posições. Esta é apenas uma cena entre várias, mas ela deixa bastante claro o quão equivocado é considerar Tropa de Elite um filme “realista” em sua representação dos fatos ou “bem-feito” na perspectiva da tradição do cinema narrativo. Não é nisso que o filme se apóia, nem é essa sua principal ambição.

Quando Cidade de Deus foi lançado, a Contracampo publicou um artigo do nosso editor Ruy Gardnier (posteriormente respondido por Fernando Meirelles, gerando uma interessante discussão) em que ele dizia que Cidade de Deus se caracterizava por diferir inteiramente de uma certa tradição dos filmes brasileiros, apontada originalmente por David Neves: a de uma certa preguiça na encenação. Cidade de Deus encarnou então o modelo de filme brasileiro plenamente inserido nos moldes de “qualidade cinematográfica” do seu tempo, com sua montagem ágil, seus ótimos atores, suas idas-e-vindas narrativas, temporais e locais – e seus personagens extremamente eficientes em termos dramáticos. Cidade de Deus não deixou margem a dúvidas: o filme tinha uma ética muito clara. Se Mané Galinha transformou-se em um bandido assassino ao matar um segurança de supermercado, o filho deste segurança o matará no futuro. Aqui se faz, aqui se paga. O narrador não se envolve com as malfeitorias e Dadinho, a figura central do enredo, é um bandido que, como o diálogo entre Ruy e Meirelles revela, desde o início era pensado como alguém mau de nascença. Nenhum espectador terá dúvidas sobre o caráter de Dadinho ao final do filme. É fácil saber quem merece nosso afeto e quem merece nosso ódio em Cidade de Deus. A despeito da citada originalidade de sua encenação pilhada, trata-se, portanto, de um filme que segue as convenções de um certo tipo de melodrama, com anti-heróis e vilões típicos. Faço esta menção a este outro filme de grande sucesso considerado “realista” ao tratar do cotidiano de violência gerado pelo tráfico de drogas para apontar que Tropa de Elite segue por um caminho diverso, inteiramente oposto. Sua relação com as regras melodramáticas de construção de personagens está mais interessada em confundir o espectador do que em oferecer a ele uma clara distinção entre o que é certo e o que é errado – e, em conseqüência, a narrativa se torna inteiramente ambígua sobre a sua moral. Não é à toa que Tropa de Elite foi logo acusado de fascista – esta ambigüidade é claramente um interesse da própria concepção do filme, ao dar voz ao personagem de um policial que deriva em criminoso pelos métodos que usa e, ao final, não dar qualquer indício de que ele estava errado para além dos seus próprios gestos. O espectador pode enxergar no Capitão Nascimento um sujeito desequilibrado que se enche de remédios, agride prisioneiros, tortura-os, agride a própria esposa e termina só; por outro lado pode considerá-lo um herói na luta contra o crime, que trata criminosos com rigor e paga com seu próprio bem-estar o preço de ajudar na segurança da população. A escolha é moral, mas o filme, até o final, não faz a sua opção: Nascimento não é punido e tampouco qualquer erro seu fica evidente. Justamente ao final o enredo permitiria explicitar esta opção de forma muito clara – como notou Carlos Reichenbach: o último torturado, aquele que confessa após ouvir Nascimento dizer “tira a calça dele e pega a vassoura”, poderia ter morrido sem nada confessar, deixando nas platéias a dúvida sobre sua inocência e evidenciando a falha de caráter de Nascimento. Não é o que ocorre – o filme sabidamente se permite ser lido como um estímulo a métodos de investigação que incluem a tortura; mas, como também se permite ser lido de forma contrária, fica ao espectador a escolha moral.

Nesse sentido, vale ressaltar a escolha do personagem narrador. É sabido publicamente que no roteiro original o narrador seria o aspirante Matias. (Peço licença para uma observação: é sempre bastante questionável discutir os filmes com base em informações que não fazem parte dele. No entanto, o próprio Tropa de Elite se mostra como um filme que foi mudado ao longo de sua preparação, uma vez que inclui nos créditos finais os nomes dos atores que representavam Matias e Neto na infância dos anos 70, quando isto simplesmente não aparece na tela, decerto porque foi eliminado na montagem.) Mas, como eu dizia, a princípio Matias seria o narrador. Teríamos então a história de um sujeito que entrou na polícia sem muita vocação, indo na onda de um colega de infância, e que ao final do filme se tornou uma máquina de matar – e Nascimento então exerceria um papel bastante semelhante ao do sargento de Nascido Para Matar, de Kubrick, como alguns já compararam. Deste modo seria mais simples dissociar o filme dos atos de Nascimento. Mas é então que devemos nos lembrar da cartela inicial, que atribui a uma tese sociológica norte-americana dos anos 70 a idéia que Rousseau já defendia séculos atrás e que o compositor Wilson Batista sintetizou em verso no final do seu samba Chico Brito: “Se o homem nasceu bom / e bom não se conservou / a culpa é da sociedade que o transformou”. Não interessa se o espectador considera que a tese iluminista é correta ou se acredita na lógica oposta, defendida pelo Dadinho de Cidade de Deus, de que a vilania pode ser uma característica de nascença: o que diferencia os dois filmes, mais do que a crença filosófica sobre as características do ser humano, é o que pretendem com suas narrativas. Cidade de Deus se assume como um espetáculo catártico, extremamente bem-construído dramaticamente, em que ao final o vilão é punido, enquanto Tropa de Elite se organiza como um filme-problema. O filme se coloca com uma questão imposta ao espectador, ao invés de ser uma fábula apaziguante. É por isso, mais do que para organizar o drama do seu personagem, que aparece a cartela explicativa neste início de filme: para indicar à platéia que o filme pede para ser lido como uma análise social, e não como um filme de ficção clássico e bem-acabado. Se acaso o caráter de Nascimento fosse inato, nada haveria de incômodo em sua figura – seria um ser excepcional, fosse ele considerado herói ou doente. No entanto, foi a sociedade que o moldou, diz o letreiro. Logo, discuti-lo é discutir a sociedade. É este o objetivo central de Tropa de Elite, ao invés de ser antes de tudo um filme de gênero como foi Cidade de Deus.

Neste sentido, é bastante enriquecedora a leitura do texto de Eduardo Valente na Cinética, quando ele nos lembra da origem do filme como documentário. É curioso que, tendo feito antes o filme Ônibus 174, um documentário com fortes características de thriller melodramático, catártico ao extremo, José Padilha faça agora um filme de ficção que se equilibra de modo ambíguo sobre o discurso de seu personagem, como é comum aos documentários. Ambos os filmes se guiam pela lógica de Rousseau para concluir que tanto o seqüestrador Sandro do Nascimento quanto o policial Capitão Nascimento são frutos de uma sociedade que precisa discutir as questões da exclusão social e do tráfico de drogas. Um espectador pode permanecer convicto de que Sandro era mau de nascença como Dadinho – mas o filme o conduz para uma discussão sobre a sociedade brasileira, uma vez que procura compreender seus atos dentro de um contexto de exclusão social. Do mesmo modo, qualquer espectador pode sair convicto de que Nascimento deveria ser preso – no entanto, o filme logo no início o avisa que o problema não reside em Nascimento, mas no sistema que o criou e o mantém. É por isso que aos propósitos do filme é mais interessante a narração de Nascimento do que a de Matias. Matias poderia ser um personagem muito mais complexo do que de fato acaba sendo, como alguns indícios da trama sugerem, seja pelo sentimento ambíguo sugerido pela firme amizade com Neto (que, ao morrer, parece deixar o colega viúvo) e pelo completo desinteresse pela jovem colega da PUC após uma noite de amor – isso insinua uma sexualidade ambígua, algo que o filme sugere porém boicota, ao mostrar sua noite de amor com a garota. No entanto, mais evidente fica na construção de Matias um outro aspecto cujo desenvolvimento parece ter sido abortado: sua falta de vocação para a vida de policial. Isto é somente insinuado pela sua tentativa de vida estudantil e pelos comentários em off de Nascimento, quando diz que Neto tinha coração e Matias tinha cérebro – ou seja, o coração de Matias não pertencia originalmente à vida como policial.

Seria um desenvolvimento dramático bastante mais aprofundado do que o filme acaba por trazer: o narrador seria um rapaz que não queria ser policial, foi tragado pela amizade e pelo destino, virou um policial criminoso e terminou o filme dando um tiro na cara do espectador. No entanto, a narração de Nascimento põe o filme na corda-bamba, sem definir o seu lado. Isto fica a cargo do espectador, que deste modo se vê instado a discutir a origem do tráfico de drogas, o papel da polícia e, enfim, as características da organização da sociedade brasileira.

Tropa de Elite, assim, torna-se um caso bastante interessante, estruturando-se como cinema contemporâneo essencialmente político ao abrir mão de certos bons-modos da gramática cinematográfica em nome de maior capacidade de despertar reações no seu espectador, seja a favor ou contra o que assiste. Não são poucos os momentos cuja fragilidade dramática só se justifica pela intenção narrativa do filme: são bastante precárias as encenações de todos os momentos na ONG, assim como o desenvolvimento da trama que irá levar à morte de Neto. Na ONG o teatralismo é explícito; já na decisão de Matias de entregar em mãos os óculos do guri, seguida pela sua troca por Neto, que mostra-se distraído ao chegar num lugar de evidente perigo, o que se torna evidente é a necessidade de fazer a história andar, fazer a trama chegar ao ponto intencionado, sem qualquer apuro para justificar as movimentações necessárias para isso. Do mesmo modo, tanto a cena já citada em que Matias, solitário, lança acusações à sua turma, silenciando a todos, quanto a também já célebre cena da agressão à passeata não se sustentam dentro de uma lógica dramática com base no realismo. Vistas sob essa ótica, soariam constrangedoras, como às vezes soam constrangedoras certas cenas excessivas de melodramas: por exemplo, basta pensar no caso do filme Olga, em que do mesmo modo uma frase bastante dramática é dita de modo “impactante” pela protagonista. Mas Matias, ao acusar sua turma por serem “burguesinhos”, não se parece com Olga Benário gritando “Eu estou grávida de Luiz Carlos Prestes” – simplesmente porque o impacto é natural por conta daquilo que ele afirma, uma acusação bastante polêmica, enquanto o drama de Olga é narrativo, sem ressonância social para fora do filme. Assim, a acusação de Matias sai do filme e será discutida pela platéia, enquanto a de Olga permanece como uma tentativa de provocar chorumelas. Como eu já disse no início deste texto, caso as acusações de Matias na sala de aula e na passeata fossem seguidas por contestações a ele, a cena seria mais verossímil, mas certamente teria um potencial de gerar polêmica muito menor.

Assim, o que me parece notável é justamente este aspecto: entre o apuro dramático que pode emocionar e a narrativa grosseira que irá incomodar, Tropa de Elite escolhe em todos os momentos que sua narrativa siga o segundo caminho. É daí que tira sua força. E não se pode dizer que o filme foi mal-sucedido em gerar uma discussão intensa – ao contrário, obteve imenso sucesso na disposição de incomodar, gerar discussões e se tornar um fenômeno (algo que, obviamente, poderá ajudá-lo em uma carreira internacional, justificando suas evidentes precariedades narrativas e sua relação fundamental com o contexto social brasileiro). Este acontecimento não apenas torna evidente que um filme pode mexer profundamente com o imaginário de uma população imensa, mas também que este imaginário tem disposições nem sempre fiéis à cartilha da narrativa melodramática de tons realistas. Equilibrando-se num discurso ambíguo para se tornar mais inquietante, Tropa de Elite nos faz lembrar de um velho dito: se uma obra quebra as regras de uma boa narrativa e, no entanto, é desta forma que consegue atingir seus objetivos, então a estratégia foi correta e as pretensas regras precisam ser refeitas. Os bons modos do cinema pretensamente “bem-feito” que se virem – em cima da corda bamba de sua ambigüidade narrativa, Tropa de Elite, como diz a canção, é osso duro de roer.



artigo originalmente publicado em janeiro de 2008