Clique aqui para ver um filme proibido pela justiça brasileira. Desta maneira, você entrará num site onde poderá fazer um download para armazenar em seu computador e ver quando quiser o curta-metragem Di, de Glauber Rocha. Como se sabe, o filme está proibido de ser exibido em público devido a uma ação judicial da família do pintor homenageado. Por sentimento familiar, porque a família de Di Cavalcanti sente-se agredida com o filme sobre o funeral do pintor, o filme só pode ser visto às escondidas.
Basta clicar. Com um equipamento razoável, qualquer conexão discada permite que o filme seja assistido em condições medianas, além de poder fazer cópias em VHS e afins. Com um pequeno gasto de tempo, paciência e conexão à web, o filme se faz presente. Com a aura mítica da proibição, aparece em 2004 em plena internet – pode estar em qualquer lugar do mundo, menos nas sessões de cinema abertas ao público. Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe, O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, todos eles são filmes premiados que puderam ser vistos e canonizados – Di virou então o santo maldito, mal visto – e bem amado. Sobre vida e morte, sobre silêncio e barulho,o filme aparece e se mantém em nosso cotidiano dentro da esfera da arte ‘maldita’ e ‘transgressora’. Cinema proibido é a maior diversão – e a mulata é a tal. É o retorno do reprimido.
Já é possível que o filme surja onde cinema não há. Um pequeno notebook, uma conexão telefônica à internet, uma tela e caixas de som boas, o filme a um clique pode aparecer nos apartamentos metropolitanos, em casa escondidas no meio do matagal, em fazendas interioranas, em casarões suburbanos – com a aura da proibição que o mantém misterioso. A internet – troca de informações fria, distante, onde tudo se difere e se iguala em bits e mais bits (a internet é sem vida) – armazena e evoca um filme sobre vida e morte, uma reunião barulhenta de algumas idéias e afetos em torno de um retrato vivo do artista morto e enterrado (trata-se, talvez mais do que qualquer outro, de um filme comemorativo). Os deuses da morte e do tesão se misturam no meio e no arquivo, no download/funeral do caixão do defunto artista – um filme de Thanatos e Eros, para usar os deuses gregos bem conhecidos. Mas onde Eros se faz presente como parente de Dionísio, e não de Apolo. Ao invés do rigor e da harmonia apolíneos, esse rigor e essa harmonia dos respeitosos enterros, o que dá tesão ao funeral do artista são a bagunça, o Jacob do Bandolim tocando Pixinguinha, o barulho, a zorra e o Jorge Ben dionisíacos – a vontade de vida que a memória faz presente na hora da morte. O encadeamento de imagens do filme esclarece: há quem vá a museus para ver, e há quem vá ao museu para enterrar os artistas. Longa é a arte, mas tesuda é a vida.
Um funeral respeitoso seria a morte definitiva da última quimera. Desrespeitado, tem vida.
Di Cavalcanti e Glauber Rocha estão mortos e enterrados. Reprimidos, retornam. Para nos livrarmos deles, não adianta recalcar – eles retornam. A arte preserva os mortos? Pois a internet – essa entidade fantasmática – dissemina. Algo surge, algo acontece com o download – instala-se. Em quadros nos museus, em filmes nos DVDs e cinematecas – por ondas, idéias, espectros. Por aí semeia-se. O que fazemos semear, então? Imagem ou espectro? O Di vivo ou o Di dos mortos?
Vivos estamos nós, recebendo essa explosão de afetos e momentos através de fitas de vídeo, filmes arranhados ou restaurados por uma baba, com coquetel e tudo mais – ou então através um site, arquivo morto de filmes vivos internet afora. Di, o filme, enterrado vivo, espalha-se e, mais do que permanece, ainda acontece.
O tal “mundo das idéias” talvez seja a internet – e a arte expulsa do mundo real está retornando no mundo virtual. Mais viva – a partir da morte.
Então, talvez, numa certa hora, quando menos se esperar, todo esse cinema brasileiro perdido poderá então ressurgir através desses arquivos digitais. Mortos-vivos, filmes-zumbis virtuais. Serão bem-vindos – como forças de espíritos passados. Ainda está muito batida a comparação entre cinefilia e religião?
Os cabos da web devem suingar ao som do Jorge Ben cantando “Umbabarauma”. O som das informações digitais transmitidas pelas linhas telefônicas deve ser sincopado como o choro tocado pelo Jacob. Em meio ao respeito e ao desrespeito, o defunto provavelmente devia estar suingando também. Di morreu, Di está por aí. Vivos, muito vivos – suinguemos nós.
texto publicado pela primeira vez em junho de 2004