08/07/2008

Di Seminação - a propósito da difusão pela web de Di Cavalcanti (1977)

Clique aqui para ver um filme proibido pela justiça brasileira. Desta maneira, você entrará num site onde poderá fazer um download para armazenar em seu computador e ver quando quiser o curta-metragem Di, de Glauber Rocha. Como se sabe, o filme está proibido de ser exibido em público devido a uma ação judicial da família do pintor homenageado. Por sentimento familiar, porque a família de Di Cavalcanti sente-se agredida com o filme sobre o funeral do pintor, o filme só pode ser visto às escondidas.

Basta clicar. Com um equipamento razoável, qualquer conexão discada permite que o filme seja assistido em condições medianas, além de poder fazer cópias em VHS e afins. Com um pequeno gasto de tempo, paciência e conexão à web, o filme se faz presente. Com a aura mítica da proibição, aparece em 2004 em plena internet – pode estar em qualquer lugar do mundo, menos nas sessões de cinema abertas ao público. Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe, O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, todos eles são filmes premiados que puderam ser vistos e canonizados – Di virou então o santo maldito, mal visto – e bem amado. Sobre vida e morte, sobre silêncio e barulho,o filme aparece e se mantém em nosso cotidiano dentro da esfera da arte ‘maldita’ e ‘transgressora’. Cinema proibido é a maior diversão – e a mulata é a tal. É o retorno do reprimido.

Já é possível que o filme surja onde cinema não há. Um pequeno notebook, uma conexão telefônica à internet, uma tela e caixas de som boas, o filme a um clique pode aparecer nos apartamentos metropolitanos, em casa escondidas no meio do matagal, em fazendas interioranas, em casarões suburbanos – com a aura da proibição que o mantém misterioso. A internet – troca de informações fria, distante, onde tudo se difere e se iguala em bits e mais bits (a internet é sem vida) – armazena e evoca um filme sobre vida e morte, uma reunião barulhenta de algumas idéias e afetos em torno de um retrato vivo do artista morto e enterrado (trata-se, talvez mais do que qualquer outro, de um filme comemorativo). Os deuses da morte e do tesão se misturam no meio e no arquivo, no download/funeral do caixão do defunto artista – um filme de Thanatos e Eros, para usar os deuses gregos bem conhecidos. Mas onde Eros se faz presente como parente de Dionísio, e não de Apolo. Ao invés do rigor e da harmonia apolíneos, esse rigor e essa harmonia dos respeitosos enterros, o que dá tesão ao funeral do artista são a bagunça, o Jacob do Bandolim tocando Pixinguinha, o barulho, a zorra e o Jorge Ben dionisíacos – a vontade de vida que a memória faz presente na hora da morte. O encadeamento de imagens do filme esclarece: há quem vá a museus para ver, e há quem vá ao museu para enterrar os artistas. Longa é a arte, mas tesuda é a vida.

Um funeral respeitoso seria a morte definitiva da última quimera. Desrespeitado, tem vida.

Di Cavalcanti e Glauber Rocha estão mortos e enterrados. Reprimidos, retornam. Para nos livrarmos deles, não adianta recalcar – eles retornam. A arte preserva os mortos? Pois a internet – essa entidade fantasmática – dissemina. Algo surge, algo acontece com o download – instala-se. Em quadros nos museus, em filmes nos DVDs e cinematecas – por ondas, idéias, espectros. Por aí semeia-se. O que fazemos semear, então? Imagem ou espectro? O Di vivo ou o Di dos mortos?

Vivos estamos nós, recebendo essa explosão de afetos e momentos através de fitas de vídeo, filmes arranhados ou restaurados por uma baba, com coquetel e tudo mais – ou então através um site, arquivo morto de filmes vivos internet afora. Di, o filme, enterrado vivo, espalha-se e, mais do que permanece, ainda acontece.

O tal “mundo das idéias” talvez seja a internet – e a arte expulsa do mundo real está retornando no mundo virtual. Mais viva – a partir da morte.

Então, talvez, numa certa hora, quando menos se esperar, todo esse cinema brasileiro perdido poderá então ressurgir através desses arquivos digitais. Mortos-vivos, filmes-zumbis virtuais. Serão bem-vindos – como forças de espíritos passados. Ainda está muito batida a comparação entre cinefilia e religião?

Os cabos da web devem suingar ao som do Jorge Ben cantando “Umbabarauma”. O som das informações digitais transmitidas pelas linhas telefônicas deve ser sincopado como o choro tocado pelo Jacob. Em meio ao respeito e ao desrespeito, o defunto provavelmente devia estar suingando também. Di morreu, Di está por aí. Vivos, muito vivos – suinguemos nós.



texto publicado pela primeira vez em junho de 2004