15/07/2008

Entrevista com Luiz Carlos Barreto - para o documentário O Mundo de Um Filme



É o seguinte: nós estamos pedindo para as pessoas falarem de onde todo mundo veio para parar lá, e o que fez depois. A proposta é fazer um mini-documentário sobre cada entrevistado. A gente queria fazer um documentário sobre algo que a gente goste. A gente não queria falar apenas do filme. Usar o filme...

Vamos lá. Conheci o Joaquim, primeiro foi pelo Garrincha, Alegria do Povo. Foi uma história até engraçada, porque eu não conhecia o Joaquim, nunca nem tinha ouvido falar no Joaquim, aí eu tava na casa do Zé Luís Magalhães, que era banqueiro, casado com uma prima dele, a Heleninha Nabuco, e o Zé Luís falou pra mim: "Olha, esse filme do Garrincha...", ele estava financiando o filme pelo banco, e falou "eu tenho um primo que é cineasta e acabou de chegar da Europa, fez um curso de cinema verdade, conversa com ele, quem sabe...", e tal. Pensei, "Primo de banqueiro, o que será?"... Mas eu disse: "manda ele me telefonar", e ele me telefonou. Aí eu saquei que o Joaquim era um cara que exatamente chegava na hora daquele filme, o Garrincha. Ele tinha feito um curso de cinema-verdade na França, com François Reicheinbach, ele tava vindo na onda do Cinema Vérité. Então chamei pra gente fazer o Garrincha, alegria do povo juntos, era um projeto meu com o Armando Nogueira e a gente estava ainda pensando quem ia dirigir, é um documentário... Aí o Joaquim chegou com essa apresentação do José Luís Magalhães Lins, e a gente percebeu que ele era o homem que a gente realmente que a gente precisava para fazer o filme. Aí a gente formou a equipe, Mário Carneiro, David Neves e tal... E o cinema verdade exigia som direto. E o som direto não existia no Brasil na época. No Brasil, não tinha equipamento para o som direto, Nagra ou Perfectone, os gravadores leves... Aí, na primeira filmagem, em Pau Grande, nós transportamos praticamente um estúdio de som, máquinas enormes pra fazer a colheita do som direto. E deu tudo certo, foi ótimo, foi o primeiro filme do cinema brasileiro nos anos 60 que foi feito na técnica do cinema-verdade. E aí fizemos o Garrincha... com grande prazer, e tal, o filme tomou um aspecto muito moderno, porque não ficou um documentário com narrativa, as narrações de locutor eram intervenções muito pequenas, fugindo daqueles padrões todos... Inclusive alterou toda a maneira de filmar futebol . Todo mundo fala, mas quem revolucionou a maneira de se filmar futebol foi o Joaquim com Garrincha, Alegria do povo. E depois o Canal 100 adotou as técnicas que o Joaquim adotou, as grandes teleobjetivas, e tal... Tanto que todos os arquivos existentes na época de futebol, que a gente foi procurar, eram filmagens muito convencionais, nós tivemos que filmar para um novo formato, uma nova linguagem .Nos tivemos que filmar muito jogo do Garrincha para poder ter material interessante, instigante. E tinha coisas muito engraçadas, Joaquim bolou uma filmagem num jogo no Maracanã, numa final, Flamengo-Botafogo, final de campeonato ou coisa assim. E pela primeira vez a gente ia usar seis câmeras, aquilo era uma super produção para o Cinema Novo, seis câmeras numa filmagem.... E uma das câmeras tinha que ser operada lá de cima da marquise, que era um ângulo que, eu quando era fotógrafo, sempre fotografei muito, e sugeri ao Joaquim, e ele me disse: "Então você vai lá pra cima". E a gente tinha uma equipe muito reduzida. Então, nessa filmagem era eu com uma câmera e o Glauber como meu assistente de câmera. .. Só que a gente chegou lá em cima e eu não conhecia nada da câmera e nem o Glauber também, nós não sabíamos nem onde era o botão de disparar a câmera... Porque eu era fotógrafo de jornalismo e não tinha nada a ver com cinema. E aí foi um vexame, né? Chegamos lá em cima e não dava mais pra descer pra chamar alguém, então começamos a apertar em tudo que era lado da câmera... Porque não dava, né?!...Aquela altura enorme... Aí começaram os fogos, foram entrando os times, e aí a gente descobriu o botão e fizemos uns planos bonitos que tem no filme. Uns planos que aparecem os refletores em primeiro plano... Mas foi um milagre, porque na hora que os times estavam entrando em campo é que a gente apertou lá num negócio, "Ah, é aqui!", uma coisa fantástica. Esse era o Joaquim...

Você começou a trabalhar em cinema com Nelson Pereira em "Vidas Secas"...

Eu era correspondente da revista Cruzeiro, eu era repórter-fotógrafo e fui fazer um curso de cinema na Europa e ao mesmo tempo ficar de correspondente do Cruzeiro lá e no IDHEC, o Instituto de Altos Estudos Cinematográficos, na França. Eu fiquei lá um mês, mas vi que aquilo não ia muito longe, e fiquei mais com a parte de correspondente da revista e com isso eu tinha acesso a todos os estúdios, todas as filmagens... E, quando voltei, depois de uns tempos, nos anos ‘60, eu decidi, "agora vou entrar no cinema." E aí foi através do Glauber, que eu conheci na Bahia, numa filmagem do Barravento, fui lá , fiz até uma reportagem para o Cruzeiro... E depois Glauber ficou muito meu amigo, vinha ao Rio e ia lá pra casa, e aí um dia, ele apareceu com um negócio do Roberto Farias. "Tem aí um diretor, o Roberto Farias que vai fazer um filme, o ‘Assalto ao Trem Pagador’, e tal, e você deveria escrever o roteiro com o Roberto Farias...". "Mas eu nunca fiz um roteiro de cinema!", "Não, e tal, e você tem que fazer, não tem segredo!...". Aí eu fui fazer o roteiro com o Roberto Farias. E então depois resolvi me interessar por produção, como é que produz, como faz... E o Zé Luis, parente do Joaquim Pedro, emprestava dinheiro pelo banco para fazer o filme.

Papagaio?

Papagaio, papagaio do Banco Nacional, o Banco Nacional foi a... A Embrafilme do Cinema Novo era o Banco Nacional, com juros e tudo. E aí depois, quando Nelson foi fazer o Vidas Secas, o Glauber disse: "Você tem que fotografar o Vidas Secas". "Mas Glauber, você não é o diretor do filme...", "Mas eu falo com o Nelson, você tem que fazer, pra mudar essa fotografia do cinema brasileiro", "Mas eu não sei nada de fotografia de cinema...", "Não, mas vamos conversar"... Fomos conversar com o Nelson, também muito maluco, topou. "Não, vamos fazer isso mesmo, uma fotografia nova, despojada, acabar com essa fotografia de Hollywood." Aí pronto, fui fazer o Vidas Secas por sugestão do Glauber. E fomos lá, o projeto era do Nelson, de longa data... E nessa época, logo depois do Vidas Secas, nós fomos filmar o Padre e a Moça, praticamente em seguida. O Padre e a Moça foi filmado em Minas simultaneamente com A hora e a vez de Augusto Matraga, a equipe do Padre e a Moça no Serro, que era uma cidadezinha do Vale do Jequitinhonha. E o Matraga ficava em Diamantina. Então, era muito engraçado, porque as equipes tinham muito ciúmes uma da outra. A câmera do Matraga era uma câmera nova, zero quilômetros, que a gente tinha mandado buscar, e a câmera do Padre e a Moça era uma câmera nova, mas que tava no porão do palácio do Governo de Minas. E que nós descobrimos o material, uma Arriflex, tivemos que recuperar o material, recuperar não, mandar fazer revisão, era novinha a câmera. O governador na época era o Magalhães Pinto, que era o boss do Banco Nacional, ligado à gente, aí mandou emprestar a câmera, e tal... Foi a câmera que serviu pra fazer o Padre e a Moça. Padre e a Moça era um projeto do Joaquim, logo depois do Garrincha ele me falou sobre o projeto, eu achei muito interessante. Mas no Padre e a Moça eu era co-produtor. O produtor mesmo, majoritário, era ele, tinha 68% e eu 32 %.Eu entrei mais com créditos, coisas assim. O filme era financiado por aquela agência do Estado, do tempo do Carlos Lacerda, e depois com muita ajuda do governo Magalhães Pinto. E foi um filme que também marcou uma etapa do cinema brasileiro. Naquela época, o Cinema Novo era um cinema em que todo muito estava voltado para problemas sociais, políticos, e o Joaquim partiu praquele filme romântico. No fundo, tinha lá uma problemática social, mas era um filme quase contra a corrente cinemanovista, nos anos 60, abordando uma coisa romântica, lírica e tal... Foi um filme que marcou mesmo, ali dentro do Cinema Novo. Joaquim era uma personalidade muito instigante, ele era muito...muito.... vamos dizer, polêmico com ele mesmo. Ele tinha as idéias e ele contestava as próprias idéias. Até mesmo nas nossas reuniões políticas, ele ia sempre nas reuniões políticas do cinema novo, do chamado grupo do Cinema Novo, ele tinha sempre o papel de contestar. Até pra testar as idéias. Ele era muito racional, cartesiano, até como método de refrear o delírio dele, ele era um delirante, aquele chamado louco manso. Quer dizer, por dentro dele uma explosão enorme... Isso está nos filmes dele, Guerra Conjugal é aquela... nem tem explicação para o filme, é um filme provocador, ele era um provocador, o Joaquim. Mas um provocador com roupagem de lorde... Uma pessoa bem-educada, Mello Franco e tal. Essa coisa da pessoa bem nascida, de família ilustre, botava muita gente de pé atrás, que Joaquim seria um representante da burguesia... Que nada, Joaquim era o mais revolucionário de todos, entende? Tanto no plano artístico como no plano político... Eu me lembro, muitas vezes, nos tivemos conversas, e Joaquim muito incomodado com a situação, a ditadura. Ele até se antecipou a uma ação que depois foi desenvolvida. Ele dizia que a gente precisava organizar uma ação terrorista extrema, que colocasse em xeque tudo. E foi feito depois o rapto do Embaixador americano, organizado pela turma lá do Gabeira. Porque o Joaquim sempre dizia isso, ele dizia assim: "A gente precisava bolar uma ação que fosse no limite de tudo, uma ação terrorista...". Naquele jeito dele, sempre muito bem vestido, era um... ele não era um dândi mas se vestia como um dândi, sempre muito elegante, com botinhas ultra elegantes, tinha calças muito bem acertadas no corpo, era um exemplo de bem vestir... E aquele turbilhão por dentro, quer dizer, ele tinha um imaginário absolutamente deflagrado. E isso tá nos filmes: Guerra Conjugal, Macunaíma... Eu considero Guerra Conjugal uma obra-prima da cinematografia. Se aquele filme fosse falado em inglês, dirigido pelo Losey, né?... Toda a crítica do mundo inteiro teria... Mas o filme é falado em português, feito no Brasil. Mas, se você for analisar, aquele filme é de uma profundidade sobre o ser humano, uma investigação das bondades e maldades do ser humano... O Joaquim é... É muito doloroso a gente ter perdido ele muito cedo. Eu sempre costumo dizer o seguinte: qual time de futebol que resistiria se morresse quase simultaneamente Pelé, Garrincha e Didi, um atrás do outro? Foi praticamente o que aconteceu com o Cinema Novo: Glauber, Joaquim e Leon. Três pessoas iluminadas, três grandes diretores, grandes intelectuais. E o Joaquim, no nosso meio, tinha esse papel de fazer a provocação, de sempre suscitar a contradição. Até pra depois concordar... Ele não se deixava levar pelas primeiras impressões, pelos primeiros raciocínios, ele queria sempre investigar o que estava por trás de cada coisa, era uma organização de pensamento cartesiano. Pra depois desorganizar! A partir de uma compreensão que é dada de uma idéia, ele partia pra depois desorganizar essa idéia, ele não era...aquele jeito todo arrumado dele, no fundo, era uma coisa puramente exterior.

Como foi o início da produção? O senhor chegou a ir a São Gonçalo para ver o andamento da produção?

No Serro? Você sabe que na cidade do Serro...

Não era São Gonçalo do Rio das Pedras?

Sim, mas era no Serro... Era um povoado junto do Serro, São Gonçalo de Rio das Pedras, ali no vale do Jequitinhonha, um vale muito pobre, aquilo ali era uma espécie de Nordeste de Minas, né?...Pobreza, miséria... tinha pessoas muito deformadas, porque, como as pessoas casavam entre si, primos consanguíneos, era uma cidade difícil. Lá tinha uma farta população com traços deformados. Acho até que tem umas coisas no filme... Mas essa pré-produção no Rio...(Toca o telefone) Eu posso atender ali? (Barreto atende. Às vésperas do GP Brasil de Cinema, ele combina com familiares a ida ao Palácio Quitandinha)

A gente queria saber também de pós-produção e lançamento do filme, como foi, quanto custou... Nós soubemos que o filme foi um problema comercial, deixou Joaquim Pedro com dívidas...

Como é que é?

Consta que o filme deu um grande prejuízo ao Joaquim... Ele chegou a dizer que fez o "Macunaíma" para pagar as dívidas do filme anterior...

Qual, O Padre e a Moça? Prejuízo para os artistas como?...

Para o Joaquim Pedro, produtor...

Ah, para o Joaquim...

E para o senhor, possivelmente... Em valores atuais, é possível estimar quanto teria custado, arredondado?

É... sei... Então vamos!...

Quais foram os gastos, foram muitos?

Bom, o filme teve uma parte do financiamento da comissão de ajuda do Governo da Guanabara, que se chamava CAIC, que era ligado ao Banco do Estado da Guanabara. Fizeram uma carteira, o presidente era o Almeida Braga, que também era casado com outra prima do Joaquim, com a Vivi... E o Carlos Lacerda na época mandou abrir uma carteira no Banco do Estado da Guanabara, com o Braguinha. E nós fomos até o Braguinha, ele era uma pessoa muito informal, até hoje... estava sempre com sapato sem meia, pés em cima da mesa, era um banqueiro que fugia aos padrões. E foi muito engraçado, no dia nós fomos à reunião, tinha eu, Joaquim, Glauber, tinha várias pessoas... acho que o Nelson, Cacá... enfim, pra conversar sobre financiamento de diferentes projetos, inclusive O Padre e a Moça. E o Braga chamou o gerente de operação do banco, um sujeito chamado Aluísio. E aí o Braga, com os pés em cima da mesa, falou: "Aluísio, o governador é maluco, esse governador...", era o Carlos Lacerda, " mandou abrir uma carteira aqui para financiar esse pessoal, é tudo comunista e vamos ter que financiar esses comunas. Mas o governador quer, vamos fazer. E não pode ter muita burocracia porque esse pessoal não tem organização... E é pra fazer, senão o Lacerda vai ficar uma fúria comigo, então vamos fazer". E aí nos fizemos os empréstimos que tinha que fazer, papagaio, todo mundo assinava, um avalizava o outro. E a gente não tinha nem onde cair morto, não adiantava ser avalista, mas era pro-forma. E fomos fazer O Padre e a Moça com parte desse financiamento do Banco, e outra parte do Banco Nacional. A parte do Banco Nacional eu peguei como empréstimo, a parte do Banco da Guanabara o Joaquim pegou, um era avalista do outro. E aí ele ficou como produtor majoritário do filme, porque eu tava produzindo o Matraga simultaneamente, e eu não tinha fôlego pra arcar com as duas produções ao mesmo tempo. E o filme evidentemente não foi um grande sucesso de público, era um filme com uma certa limitação para o público daquela época. Hoje seria um grande sucesso, eu não tenho dúvida... Refilmado, e tal... Mas não vale a pena porque ninguém vai fazer melhor, aquele filme ali não adianta refilmar em cor nem nada, já tá feito ali, e daquela maneira, que é um belíssimo filme... Joaquim ficou realmente com dívidas, eu fiquei com dívidas, a gente atolado. Mas tinha uma premiação, na época havia a premiação do governo da Guanabara, eram prêmios anuais, e com o prêmio que a gente ganhou a gente liquidou as dívidas com os bancos. Mas não se ganhou nada, né? Quer dizer, depois o filme ficou rodando, tivemos algumas negociações com o mercado externo, muito poucas... O filme não foi uma operação financeira. Não se faz um filme pela operação financeira, se faz mais para fazer o filme, mesmo porque a gente não tinha mercado, até hoje não tem, os mercados são muito... um filme tem, outro não tem... É mais ou menos um fenômeno mundial, a não ser a indústria americana, que tem um mercado garantido porque eles têm um sistema próprio de comercialização e distribuição. Mas, depois do Padre e a Moça, essas dívidas atormentavam muito Joaquim, ele não gostava de... ele não tinha esse espírito de... ele encarava com seriedade. A gente era meio... esse negócio de dívida, a gente não dava muita bola, não... Depois a gente foi vendo que não se podia continuar a pegar dinheiro em banco, se encalacrar na vida. Então a gente pagou tudo. Tanto que o Banco Nacional, na época em que existia Banco Nacional, sempre a família Magalhães Pinto declarou que do cinema nunca deixou de receber nada. E sempre foram muito boas operações, porque os cineastas demoravam muito a pagar e por isso pagavam muitos juros. Sempre foram operações saudáveis do Banco Nacional, as operações de cinema. Porque nós liquidamos todas, e todas sempre com muitos juros. E foi isso aí, uma... O Joaquim participou muito da fundação da Difilme, que era uma empresa que nós resolvemos fundar, uma associação entre todos os membros do Cinema Novo, nós éramos onze. Para distribuir, exatamente, porque o ponto fraco do nosso sistema era a distribuição. E a Difilme foi a mola que serviu pra botar todos os filme do Cinema Novo no mercado e até melhorando muito a performance comercial dos filmes, porque...

O cinema brasileiro ainda está devendo um bom documentário sobre a Difilme...

Ah, bom, não tem dúvida. Foi uma empresa que era com onze sócios, todos eram realizadores e produtores, não tinha um cara que era dono, eram cotas iguais. E que operava com um sistema, todo mundo criando idéias, gerando idéias... A gente foi competir no mercado brabo, com os estrangeiros e tudo, e no espaço de dois anos ela já era a segunda ou terceira empresa no mercado da distribuição, com grande participação no mercado. Nós tivemos vários grandes sucessos, Todas as mulheres do mundo, Roberto Carlos em ritmo de aventura, Garota de Ipanema, Menino de Engenho, o próprio Terra em transe foi um sucesso.

"Terra em Transe" deu dinheiro, não?

Deu dinheiro, nós colocávamos o filme no mercado... Na época, o cinema de maior renda do Rio se chamava Ópera, na praia de Botafogo. E o filme que entrava no Ópera era James Bond, essas coisas. Os filmes da Difilme a gente botava lá, a gente pegou Terra em transe e botou lá, a gente pegava Matraga e botava lá. A gente não ficava botando filme em cineminha de arte, experimental, a gente botava para o público. E o público conferia, ia lá e gostava, Terra em Transe foi um sucesso. A gente tinha essa audácia, talvez fosse até a irresponsabilidade da idade, mas a gente tinha essa audácia. Ia lá, "vamos lá botar o filme no Ópera, e tal...", batalhava com o exibidor... Os filmes estreavam ali, num circuito grande. Agora, o fenômeno está se reproduzindo, esse filme Hans Staden, que seria considerado um filme não comercial, está sendo exibido no New York City Center, na Barra, que é um complexo de oito salas que só passa filme de Hollywood. E as pessoas estão indo ver, porque é um filme bonito, agradável... e ao mesmo tempo estão ali aprendendo alguma coisa, o filme é todo falado em tupi guarani. Já viu Hans Staden? Tá lá no Estação Botafogo, Unibanco, mas tá lá na Barra, ali no publicão mesmo... Então, naquela época do Cinema Novo, a Difilmes fazia essa coisa...

Conseguiu distribuir nacionalmente?

Distribuía no Brasil inteiro. As experiências foram muito boas e nos deu a todos uma base muito concreta, aos realizadores. Era um modelo novo no cinema, a Nouvelle Vague não teve, vamos dizer, a audácia de formar uma distribuidora dos filmes da Nouvelle Vague. Nenhum movimento teve, nem o Neo-Realismo Italiano, todos sempre caíam nas mãos dos distribuidores tradicionais.

Quais eram os onze sócios da DiFilme?

Os onze eram Leon, Nelson, Glauber, Cacá, eu, Walter Lima... Não, Walter Lima no início não...tinha o inglês, o Rex Schindler, que tinha um filme pronto. Tinha o Roberto Santos que era um realizador de São Paulo, do Matraga. (Toca o telefone, é Fábio Barreto, LC Barreto vai atender). Bem, quer dizer, foi um modelo único, quer dizer, teve uma experiência semelhante (Toca novamente o telefone) Pô, mas não é possível! Diz pra ligar daqui a pouco...Era uma coisa muito boa, todo mundo trabalhando ao mesmo tempo em cada filme a ser lançado. Essa coisa de bolar cartaz, da campanha de publicidade, todo mundo se envolvia naquilo... Então foi uma experiência muito rica. E depois terminou a Difilme desaguando na Embrafilme, a Embrafilme na verdade foi uma continuidade da Difilme...

Com a diferença do Estado bancar a empresa...

É, na política nacionalista do governo militar, sobretudo no governo Geisel, o Cinema Novo tinha conquistado uma posição muito forte, tanto do ponto de vista internacional quanto do nacional. E ao regime militar não sobrou alternativa senão aceitar aquele... E não pôde, de maneira nenhuma... Ao contrário, o governo Geisel deu pleno apoio, porque o Geisel era chefe de um governo autoritário, ditatorial, mas ele tinha uma compreensão democrática, o Geisel era essencialmente uma pessoa democrática. Ele combateu a tortura, puniu os militares que ficavam matando as pessoas nas prisões, ele tinha uma meta de voltar à democracia... E ele apoiou muito o cinema, ele botou o Reis Velloso, na época, de ministro do Planejamento, e o Reis Velloso esteve muito próximo, o tempo todo, do projeto da Embrafilme... Até que foi a época que o cinema brasileiro conseguiu ocupar 40% do mercado brasileiro, com o Roberto Farias presidente da Embrafilme e o Reis Velloso. Ele dizia pra gente, "Olha, nós entregamos a política de cinema a vocês, vocês é que são os responsáveis...". Quer dizer, havia, inclusive na hora dos problemas com a censura, o Geisel muitas vezes resolveu o problema de filmes interditados ou que queriam cortar... o Geisel intervinha diretamente através do Ministro da Justiça. Quer dizer, uma fase muito rica para o cinema brasileiro...

Alguma outra vez na sua carreira o senhor viu o Ministro do Planejamento se interessar tanto pela produção de audiovisual?

Olha, depois do Velloso, nós não tivemos mais ninguém na área econômica que tivesse a compreensão que o Velloso tinha do problema do audiovisual. O Resi Velloso, oelas suas origens mesmo, ele era ex-crítico, e um grande economista, ele entendia que o audiovisual era estratégico para aquele futuro próximo que estava vindo. E ele tinha essa visão como homem público, ele sabia da necessidade de ter uma política para esse setor. Talvez naquela época nós tenhamos ficado aquém do pensamento dele. O que hoje não acontece, hoje, nós estamos além do pensamento do governo. Quer dizer, com o governo Itamar, em que houve uma retomada, porque o Itamar também foi um presidente que teve uma atenção muito grande para o setor, foi a época em que mais nos aproximamos... Porque a equipe econômica foi obrigada a ter mais atenção. Não só obrigada como também, no fim do governo Itamar, tivemos Fernando Henrique como ministro da Fazenda. E o Fernando Henrique complementava a vontade política do Itamar, com a coisa do Fernando Henrique ter uma visão do setor, é um homem de cultura, que entende da importância desse setor. No governo do Fernando Henrique houve um momento em que teve uma grande atenção para o setor, uma tentativa de planejamento para o setor, de aproximação com o setor econômico... Mas, de uma certa maneira, esse momento se esgarçou. Não sei por que, talvez por falta de ação conseqüente, as coisas se esgarçaram. E hoje, a gente se encontra numa coisa meio recessiva de novo. Mas vai retomar. Mas então essa trajetória toda do cinema, ela tá muito ligada a uma idéia de projeto nacional, o cinema sempre esteve ligado ao projeto nacional. Talvez aí haja algum erro, porque o Cinema Novo tinha essa coisa de estar sempre coadjuvante do processo do projeto nacional, o cinema como objeto de desenvolvimento social e político, e nunca esteve em primeiro plano um lado negócio do cinema... O momento em que se pensou essas duas coisas juntas foi o momento da DiFilme. E, não sei por que, depois se voltou a pensar unicamente num projeto nacional de cinema, sem se pensar que este projeto nacional só se viabilizará se você tiver paralelamente um processo de estrutura comercial, de estrutura industrial.

Uma coisa muito maior do que o Ministério da Cultura pode propor...

É, o que está faltando nesse momento é isso, só retomar um pensamento... Replanejar, reestruturar isso que, de certa maneira, a gente deixou se desestruturar no tempo.

Seus projetos atuais quais são?

No momento, eu estou dando continuidade à linha de produção de cinema, dos projetos que a gente tem mais ou menos encaminhados, como a Videira de cristal, que vai se chamar Jacobina. Temo filme de estréia do Vicente Amorim, O Caminho das Nuvens, que é a história de uma família que emigra do Nordeste pro Sul... tem vários outros projetos na agulha, a história da Elizabeth Bishop no Brasil, aquela grande poeta americana... (Toca o telefone, ele atende para acertar o horário e local do encontro)

Estávamos falando dos projetos atuais...

Tem o projeto do menino, que eu quero fazer, uma comédia no Nordeste chamada História de Joara, o homem que virou bicho, que é um belíssimo romance sobre aventuras de um cavalheiro andante no Nordeste... Tem mais projetos com o Zuenir, que nós queremos esse livro, A inveja, o mal secreto. Enfim, tem uma carteira de projetos, mas no momento nós estamos começando também a dar uma nova ênfase à produção para a TV, produzir para a TV. Já estamos com um programa o ar, o De conversa em conversa com a Fernanda Montenegro, Xexéo e Cony, estamos com uma série de documentários sobre esporte, pretendemos fazer muitos documentários sobre regiões brasileiras... Enfim, estamos aí, com um projeto a desenvolver com o Gabeira... Dar ênfase à questão da TV e das novas mídias, não é só a TV, novas mídias... Sobretudo com a revolução tecnológica da imagem digital, da alta definição, e não ficar mais só preso nesse gueto do cinema, só. Continuar no cinema, mas...

O senhor acha que há condições e espaço no cinema brasileiro para grupos de jovens fazer cinema, como se fez na época do cinema novo?

Eu acho que está precisando, se não tiver o espaço, forçar e fazer. Sobretudo porque hoje se pode trabalhar com pequenas câmeras digitais, tá ai pessoal do Dogma, aquele filme Festa em Família, que é um filme maravilhoso feito todo com uma camerazinha digital. Agora teve esse Bruxa de não sei o quê, que os meninos fizeram com uma câmera digital, é? E eu acho que aqui no Brasil está precisando exatamente de uma turma aí, nova, que coloque em prática novas idéias, se libertando um pouco da parafernália do cinema, utilizado essa tecnologia.... Porque é possível fazer em digital vídeo e passar para cinema. Porque pelo menos em digital, você tem possibilidade de fazer o filme, editar e mostrar para alguém que possa financiar e passar pra filme. Antes você tinha que fazer o troço todo em filme, já encarecia. Hoje não, você pode pegar bolar uma idéia, um roteiro, reunir a turma e fazer um filme em digital, editar em digital, aí dizer: "o filme é esse aqui e só falta passar pra película". E alguém vai financiar, um distribuidor, uma empresa qualquer que esteja interessada vai perceber que aquele filme ali é uma ótima novidade... Eu acho que é preciso que se comece a pensar nisso, vários grupos de jovens chegar e... e partir, né?...Porque não precisa ter... vai buscar atores jovens nas escolas de teatro, na CAL, no Tablado... bolar as estórias e fazer...

E o caso "Chatô"?

Mas isso é uma caso atípico, não é o caso de um estreante, é uma aventura, não é? Porque em geral... é uma pessoa que não tinha nenhum pensamento maior sobre cinema. O estreante de cinema, o curta-metragista, é um cara com respeito pelo cinema, ele não quer fazer do cinema um balcão de negócios, não vai ali pra dar um tapa numa nota, ele quer fazer o filme dele do melhor jeito possível, é um cara que ama o cinema... e qualquer grana que ele arranjar ele vai botar no filme, o que ele está querendo ali não é fazer um arranjo...

Já é uma reclamação constante dos curta-metragistas e estreantes da dificuldade de viabilizar os projetos...

Tem, tem... mas agora já está em estudo uma série de coisas nesse sentido, de criar fundos para curta-metragem, ter disponível sempre cinqüenta, sessenta mil reais para o cara começar o curta-metragem com os confortos que precisa ter... Porque a questão cinematográfica, há uma coisa que não se pode... você depende de um determinado nível de técnica das coisa, não é? Você depende de um bom nível de técnica de fotografia, de som, de tudo, para ter qualidade. Os conteúdos são importantes, mas hoje em dia não adiante você dizer que o conteúdo é mais importante, é claro que é mais importante, mas eu tenho que ter uma qualidade técnica suficiente para esse conteúdo ser entendido... o som seja claro, audível, a fotografia seja... Para o conteúdo vir mais à tona... então vai vir aí um fundo de curta-metragens, para ter aí cinqüenta, sessenta mil reais para curta-metragens, está sendo estudado isso entre a Associação dos documentaristas com o ministério. E isso é uma função do Estado, o Estado tem que manter isso a fundo perdido mesmo, o curta-metragem é uma coisa de formação de público, de formação de profissionais... eu acho que vai se conseguir fazer.

Queria fazer uma última pergunta, sobre a fotografia do "Vidas Secas". Me despertou a curiosidade quando você disse que aqui no Rio, antes de ir pra lá, já tinha a idéia de se fazer uma fotografia diferente...

Bem... Quando o Glauber veio e chamou o Nelson e disse "não, Barreto vai fazer fotografia...", eu conversando com Nelson e Glauber eu falei: "Olha, o que eu estranho muito é que, sempre que se fotografou o Nordeste, o Nordeste ficou parecendo um jardim, uma coisa muito bonita...". Esses filmes de propaganda, que o Jean Manzon e uns outros faziam, o Íris Rosemberg, o Nordeste era sempre um castelo de nuvem... E, no caso, se eu vou fazer essa fotografia, eu quero fazer uma fotografia que não tenha esse aspecto de castelo de nuvem... Uma fotografia onde vai aparecer o sol queimando a terra, o sol queimando a gente, uma fotografia sem artifícios de filtros, de iluminação artificial, equilibrando a luz com sombra. Não, onde for sombra é sombra, onde for luz é luz. E o Nelson topou. "Vamos fazer, e tal...". E eu fui fazer aquilo, assim, sem muita certeza que estava fazendo certo. Porque às vezes eu botava o fotômetro no fundo da paisagem e dava 45 de diafragma, e aí eu botava no rosto e dava 4,5, 5,6. E aí, como vai fazer, vai equilibrar, vai compensar? Aí não, eu resolvi expor na sombra mesmo, vamos expor pra sombra e deixa a luz estourar. E foi assim. Nos primeiros dias, a gente foi fazendo com os dois sistemas, o tradicional e o outro, para poder avaliar. Aí quando veio o copião a gente viu, "é isso mesmo, tá maravilha, é estourado mesmo, vamos fazer"... E aí tivemos depois muitos problemas no laboratório para copiar porque o negativo era muito denso, então o laboratório teve que supervoltar o computador, o negativo era denso, né?... Porque era todo exposto com a luz estourada. E depois a fotografia do filme foi uma coisa muito comentada, e depois eu repeti essa experiência no Terra em Transe, porque o Glauber queria fazer um filme em que não se identificasse onde era, quando se filmasse no exterior não havia muita identificação. Pra não haver perigo de se dizer: "Ah, isso aqui se passa no Brasil" e a censura ia encher o saco. Então a gente adotou quase uma técnica igual a do Vidas Secas. São os dois filmes que fotografei, e depois eu parei, não fiz mais fotografia de filme nenhum.



Entrevista concedida a Clara Linhart, Camila Maroja e Daniel Caetano em janeiro de 2000
Publicada pela primeira vez em setembro de 2002