11/08/2008

Lifting de coração (2006)

Logo de início, vemos a imagem de um rosto feminino computadorizado enquanto ouvimos uma narração em off a nos apontar os sinais de envelhecimento que vão surgindo pouco a pouco, numa reproodução do que ocorre na pele humana com o passar dos anos. Trata-se de uma palestra do seu protagonista Antonio, cirurgião plástico – e esses primeiros momentos de Lifting do Coração deixam claro que o tema do filme é a sensação de envelhecimento e as consequências disso para a vida de Antonio. A trama não esconde sua simplicidade: é a estória de um homem casado de meia-idade que se apaixona por Delia, uma jovem de vinte e poucos anos – a previsibilidade chega a ser anunciada pelos próprios personagens, cientes da confusão que criam para si. Encantadora, prometendo-lhe uma vida inteiramente diferente da que planejava até então, Delia confunde a cabeça de Antonio, sujeito feliz no casamento.

É da paixão entre os dois e da dúvida sincera de Antonio que o filme se constrói. Ele não sabe o que fazer: ter mais um filho com a sua jovem paixão ou voltar à segurança e ao amor da família? Buscar uma nova juventude ou aceitar e curtir a chegada da idade?

Do primeiro ao último plano do filme, a questão da passagem do tempo se coloca através dos sentimentos e ações dos seus personagens principais. Simples como seu enredo, a forma narrativa de Lifting do Coração nos dá a chance de rever o talento do seu realizador, Eliseo Subiela. Se nesse novo filme já não se fazem tão presentes os arroubos poéticos de suas obras anteriores (Homem Olhando Para o Sudeste, As Últimas Imagens do Naufrágio, O Lado Obscuro do Coração), aqui ainda está presente o cuidado em delinear os sentimentos e desejos de viver dos seus personagens, sempre intensos, além do humor para criar tipos coadjuvantes – aqui há um taxista com vocação para psicólogo e um psicanalista metido a Don Juan, ambos impagáveis. Vale lembrar de um momento de cada um deles: o psicanalista ao transformar em instantes seu escritório numa garçonière; o taxista, entre tantos diálogos memoráveis, protagoniza uma cena em que procura reanimar Delia com uma canção divertidíssima (a se guardar o nome: Pizza Conmigo).

Porém, mais do que a beleza da jovem Delia e mais do que esse humor delicioso, é a oposição que Antonio vive, entre a vontade de viver (própria dos personagens de Subiela) e a percepção da passagem do tempo que faz de Lifting do Coração o filme emocionante que é, entre seus tangos dançados desajeita e fogosamente e sua atenção a pequenos detalhes do cotidiano entre casais. Se o jovem cinema cheio de poesia e humor agora encontra a maturidade, vale notar que esta maturidade chega com o sabor dos bons vinhos, da boa vida que se pode viver. Os personagens de Subiela conseguem unir o desejo de ter a liberdade da poesia e o prazer de aproveitar a segurança da prosa cotidiana. Eles partilham conosco suas emoções e sonhos, suas fragilidades e escolhas. Desse modo, através da sua forma narrativa e da sua trama, Lifting do Coração, como seus personagens, mostra-se cheio de desejos, conjugando o sonho e a estabilidade, a paixão poética e o amor da maturidade.



Texto publicado em outubro de 2006

O cinema nosso de cada dia



Assim como Houve uma vez dois verões, duas outras produções anteriores fundamentais na história da Casa de Cinema eram comédias de costumes centradas nas histórias de amor de jovens gaúchos: o longa-metragem em super-8 Deu Pra Ti Anos Setenta, dirigido por Nelson Nadotti e Giba Assis Brasil, e o também longa, mas já em 35mm, Verdes Anos, dirigido por Carlos Gerbase. A influência desses dois filmes em Houve uma vez... foi sinalizada pelo próprio Jorge Furtado em diversas entrevistas (inclusive na presente nesta edição, no caso de Deu Pra Ti) – e já motivou uma série de artigos por aí afora. Todos estes são tomados pela agradável surpresa de que está se firmando no Sul do país – a partir da produção da Casa de Cinema – uma tradição de excelentes comédias de costumes centradas em personagens recém-saídos da adolescência.

Curiosamente, grande parte das opiniões veiculadas parece pressupor que comédias de costumes encantam o público por serem comunicativas, simpáticas e descompromissadas. Bem, comunicativas com certeza podem ser, se o pretenderem e forem bem-sucedidas – mas daí a descompromissadas vai longa estrada, dependendo do conceito que se depreende do termo. Nossos problemas diários podem definir quem somos, podem definir nossos rumos, e não é difícil notar que os retratos cotidianos destas comédias por vezes sintetizam idéias e objetivos comuns de diversas pessoas da mesma geração. Uma comédia de costumes tem um compromisso, do qual não pode escapar, com um certo olhar do dia-a-dia – poucos gêneros têm tamanho comprometimento com a vida cotidiana. Por trás do lugar-comum imediatista do "amor que tudo vence", temos escolhas éticas vitais na opção pelo amor teimoso e monogâmico de Houve Uma Vez Dois Verões – fazendo uma analogia com a tradição carioca de crônicas de costumes, tivemos escolhas assim na identificação plena de Todas as Mulheres do Mundo, na ironia de El Justicero, na opção de viver a vida dos filmes do Carvana dos anos ‘70 ou mesmo nas decisões inseguras de Amores Possíveis. Esse retrato é parte da regra do jogo do gênero. Desinteresse pela realidade, idealização de ambientes e nostalgia de uma época que nunca existiu são armadilhas mortais para o gênero – Bossa Nova que o diga. O amor teimoso de Chico por Roza em Houve Uma Vez Dois Verões ou as idas e vindas de Nando e Soninha em Verdes Anos remetem a uma realidade e apresentam personagens que interessam de fato aos seus realizadores, tendo decerto uma forte influência do cinema de gênero (tendo o exemplo evidente de American Graffiti) mas tendo também uma ligação afetiva direta pelo mundo que querem retratar, mesmo que já não façam mais parte dele.

Sendo assim, vale ressaltar a pepita originária desta nova tradição gaúcha, a que os outros filmes parecem sempre se remeter – porque compreendendo o que ela tem de especial podemos talvez perceber até que ponto o retrato do cotidiano no cinema, mesmo que imperfeito, pode ser deflagrador. O que há de especial em Deu Pra Ti Anos 70? Talvez seja esse momento inexplicável em que caímos no truque do mágico, em que a suspensão da descrença se dá de forma mais aguda, esse ponto em que acreditamos na verdade da mentira e nos parece que a ficção encontrou a realidade – ou melhor, faz parte dela integralmente. Como umas poucas crônicas de costumes, algumas já citadas, Deu Pra Ti não parece ser apenas um retrato de vidas – mais do que a história do amor de Ceres e Marcelo ao longo de dez anos, Deu Pra Ti pretender olhar para toda a década que os personagens viveram. Dessa forma, o filme nos transmite a sensação de ser parte integrante do momento que retrata e consegue manter deste momento uma atmosfera e um calor únicos. Se há algo que o filme nos deixa, é essa convicção de que o cinema precisa se arriscar a ver e fazer parte da vida cotidiana, essa convicção de que os frutos valerão a pena, de que a colheita sempre vem.

Depois de semear, a colheita acaba vindo. Veio no próprio Deu Pra Ti e veio de novo nos olhares – já nostálgicos, mas ainda curiosos – dos filmes que se seguiram. Na visão dos muitos personagens de uma geração que amadurecia em Verdes Anos, feito pouco tempo depois (três anos), na revisão do cotidiano adolescente gaúcho dos personagens Chico, Roza, Juca, Carmem e Violeta de Houve Uma vez.

É melhor então manter um olhar desconfiado para os elogios caretas a Houve Uma Vez Dois Verões. Decerto é muito bacana que tenhamos um filme tão agradável, com uma estrutura tão eficiente e uma delicadeza tão grande com seus personagens – mas o mais importante nisso não é o fato de que o filme se comunica bem com sua platéia, é o fato de que ele tem o que comunicar, ao contrário do que pensam alguns. Se a narrativa usa esquemas de estrutura de roteiro com naturalidade e inteligência, sem parecer engessada ou programada, não é isso que torna o filme rico, é seu interesse pelos dramas dos seus personagens – e a origem disto não está nos manuais de roteiro.



Texto publicado em fevereiro de 2003

03/08/2008

Brewster McCloud - Voar é com os pássaros (1970)


Voar é com os pássaros
é um filme curiosamente paradoxal: se é um dos exemplares mais evidentes do quanto o cinema de Robert Altman se deixou contagiar pelo clima de inovação narrativa próprio dos anos 70, com uma movimentação visual tomada pela vontade de voar que sua trama tematiza, este longa-metragem é também um diagnóstico severo sobre os limites dessa liberdade. Severo e bastante claro, a ponto de o filme intitulado originalmente com o nome de seu protagonista, Brewster McCloud, ter ganhado essa versão que explicita o tom de desilusão de seu enredo: Voar é com os pássaros. Aqui a ambição é livre, mas a quem está fora da sociedade e não dialoga com seus pares não resta caminho senão falhar. Ciente de ser uma versão hollywoodiana da lenda de Ícaro, Voar é com os pássaros é uma fábula que termina com autoconsciente amargura: no final das contas, nada resta senão seguir adiante com o espetáculo. Mas, ao mesmo tempo, esta fábula não constrói sua perspectiva a partir do ponto de vista conservador: ao contrário, Brewster McCloud, o filme, filia-se a seu protagonista, que por sua vez filia seu destino ao dos pássaros - a sempre pretender fazer mais do que pode. O filme sustenta esse sentimento presente na trama.

No primeiro momento do filme, o caminho de Brewster começa a se definir a partir da crise da situação estável inicial, quando Brewster mata seu patrão ricaço e sovina com a ajuda dos pássaros. Como numa variação do clássico Os Pássaros de Hitchcock, Brewster alia-se aos pássaros na sua revolta contra a civilização - e o faz a partir do momento em que se transforma em assassino; ou seja, para Brewster McCloud a possibilidade de voar é uma redenção para a morte. Ele mata sucessivamente para viver e quer voar para se sentir livre de uma sociedade que se apresenta como agressiva, autoritária e caótica, e é então que o envolvimento do desejo põe em jogo a sua vida. Este desejo de Brewster pela jovem Suzanne é definitivamente negativo para seus planos porque ele torna clara a sua distância dos pássaros: Brewster não é um deles, ele é apenas um rapaz esforçado. Assim, aquele rapaz que se sentiu do lado de fora de uma sociedade autoritária tem seu instante de vôo restrito ao espaço do circo; o sonho já nasce condenado a não poder escapar dos limites da tenda. Fábula pessimista, o filme se fecha como espetáculo circense, indicando que o sonho de alçar vôo pode ser destruído pela morte, mas o show não pára.

Se as tecnologias modernas como o cinema e a aviação trouxeram ao homem a possibilidade de voar, somente a sua própria ambição poderá fazê-lo ultrapassar os limites que sua condição inicial impõe. Brewster McCloud, o filme, realiza uma metáfora desse engajamento pela superação como que para evidenciar que somente dando asas e espaços a uma nova força poética que a criação poderá livrar-se do seu aspecto de circo fugaz. É preciso, para o filme, acreditar vitalmente na capacidade de ser como os próprios pássaros, de ter músculos para voar. Que o poema se finda em morte já é certo, mas isso não nega a aventura de romper os limites por alguns instantes. É uma ambição notável que o filme não abre mão de cumprir com inventividade até seu fim.

Texto publicado originalmente no catálogo da mostra As Muitas Vidas de Robert Altman, que se realizou em maio e junho de 2008 nos CCBBs de Rio de Janeiro, SP e Brasília

Ônibus 174 (2002)



Deveríamos ir àquela velha questão? O que diria um extra-terrestre se desembarcasse no planeta? O que diria ele do filme?

Bem, talvez a questão esteja velha demais. O mais triste que se pode notar sobre o filme Ônibus 174 em si é que todo comentário parecerá banal, repetitivo. O óbvio se impõe: a situação Ônibus 174, a equação que origina tudo, essa está aí, na nossa cara, todos os dias para a gente ver. Não importa muito o que o extra-terrestre acharia do filme, nem da realidade que o originou. Nem tampouco o mais importante será a visão de realidade que tem o filme. Essa realidade é que importa – por trás de todo o discurso, por trás de todo o espetáculo, por trás de todo o processo de investigação, é ela quem salta à frente em importância para nós não-extra-terrestres. Em outros filmes a construção do discurso documental se faz totalmente presente e crucial na narrativa – mas em Ônibus 174 a preocupação é com a investigação simples. A construção dramática cabe ao instante escolhido para documentar, o espetáculo trágico do seqüestro do ônibus. Isso é mais que cinema.

Ônibus 174, o filme, sendo bem feito, pensado e estruturado, tem portanto seu maior mérito em exibir para nós (‘de forma implacável!’, diria um mais empolgado) uma situação extrema causada por uma imensa teia de problemas e fragilidades sociais. Da observação e da investigação dos precedentes do evento central – o célebre caso do aprisionamento, ao longo de horas a fio, de uma série de reféns dentro de um ônibus por um bandido, numa rua central do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro – surge a pessoa Sandro do Nascimento, personagem central da tragédia, e descortina-se toda incompetência do tecido social em lidar com a marginalização de milhares de pessoas desde a infância. Esse é o tema para nós, brasileiros, para nós, cariocas, para nós que estamos vivos. Importa alguma coisa o que o extra-terrestre vai pensar? Ou o que vão pensar de nós mais tarde? Ou a primeira questão não será sobre a vida que queremos ter?

Num momento de reviravolta política como o do final do ano de 2002, Ônibus 174 estampa na nossa cara uma visão triste (e mínima) da imensidão do buraco em que estamos nos metendo – falamos de crime organizado para dar rostos ao nosso medo, mas também temos que viver com o crime desorganizado e sem nada a perder, nós todos estamos vendo ele se criar. Em gente sem emprego, sem escolaridade, sem nenhuma estrutura – ao deus-dará. E nos perguntamos por que será que se tornam ocasionalmente violentos.

Tudo isso nos é dito e repisado pelos depoentes do filme. Torna-se tema central também a desestruturação (e ingerência política) da polícia carioca – como se o mundo ficasse mais simples se o bandido tivesse levado uma bala na cabeça logo no início do dia. Não, a situação se acabaria ali, mas o mundo continuaria aqui para nós vermos e vivermos. E, de forma caprichosamente dramática, a tragédia foi alongada por ingerência política, como se fosse a intenção tornar evidente nossa incapacidade em lidar com Sandro. Foi preciso que ele, assumindo a figura trágica que se tornou, fosse atrás do próprio destino, que se entregasse à derrota diante dos representantes de uma sociedade que nunca soube lidar consigo senão com a violência. Como se diz no filme, a polícia que não conseguiu matar Sandro no massacre da Candelária terminou seu serviço anos depois. Somos nós que sustentamos e precisamos da polícia. Sandro estava do outro lado, e todo mundo tinha medo dele. Teve do destino o golpe de perder o apoio familiar (e educacional-financeiro), na infância e de forma traumática, e daí em diante passou a lidar com a falta de dinheiro e uma lembrança perturbadora – e a sociedade só se manifestou através dos seus representantes policiais e punitivos. Ônibus 174 é, sobretudo, o retrato da tragédia desse anti-herói brasileiro. E seu plano inicial logo explicita sua tese: essa é a vida de todos nós, esses problemas são de todos nós.

Não adianta chorarmos por Geísa, a vítima maior, que perdeu a vida sem razão nem culpa. Ela, quem matou foi o revólver de um homem descontrolado. Mesmo que ela mereça todas as nossas lágrimas, nada vai mudar ao entendermos o sofrimento dela. Já este homem descontrolado, é este que não teve ninguém em seu enterro que deve nos fazer olhar de outra forma nosso cotidiano. Foi ele quem matamos depois de longa perseguição – as pessoas que o fizeram por nós podem alegar para si a instabilidade emocional do momento, mas e nós, que por eles somos representados, o que podemos alegar? O que nossos representantes deram a Sandro em vida além de muita porrada? Uma civilização pode preferir achar que não teve responsabilidade alguma em fazer de Sandro um homem perigoso, uma figura violenta, que todos os atos dele foram decorrência do erro inicial de abandonar a família, pode enfim achar muito natural que um homem só tenha tido da sociedade a violência da polícia e do confinamento (sem ter ganho nada com este) – ou uma sociedade pode optar por revisar algumas opções quando se vê diante de casos assim.

De Rio Quarenta Graus a Central do Brasil, passando por Couro de Gato, Pixote e outros mais, o cinema brasileiro mostrou diversas vezes a infância abandonada. Ônibus 174 nos mostra uma tragédia conseqüente disso, apenas uma, apenas uma história para representar todo o nosso fracasso diante desse problema social.

Numa época de tanto otimismo com relação a mudanças, é um filme que deveria ser visto não apenas pelo presidente eleito Lula, mas por todos nós não-extra-terrestres. Precisa ser exibido em rede nacional, em canal aberto, precisa ser visto e discutido. Para que a discussão do tema amadureça, para que não tenhamos mais imbecis a defender que nossa questão social se resolve com violência policial, como dizia um presidente do início do século e como parece acreditar ainda uma boa parte da nossa população. Ao revelar todos os antecedentes da situação de violência criada por Sandro do Nascimento, Ônibus 174 mostra que precisamos de muito mais que isso.



Texto publicado em novembro de 2002