20/07/2008

Enxergando no escuro - Sobre Dirigindo no Escuro (2002)


Precisamos sempre acreditar em certas coisas para levar a vida adiante de forma tranquila – por exemplo, que o chão sob nossos pés não vai ceder. Em outros momentos isso pode se repetir de forma análoga - como não querer um chão para pisar, uma linha para seguir, para entender melhor as coisas? No caso de filmes, é natural que se queira ter estas linhas de entendimento coerentes para digerir – não apenas as linhas narrativas, as historinhas dos personagens, mas também todas as outras ligações que construímos entre coisas distintas – comparando filmes de um mesmo autor, de uma mesma época ou de um mesmo gênero. Entendemos as criações e os eventos que as produziram esvaziando-as do que têm de único em prol do que têm em comum. O que poderíamos esperar e entender de criações específicas, produzidas através da reunião de talentos e acasos únicos? Nosso entendimento, de certa maneira, foge do que surge e se foca no que transcende, no que permanece. Precisamos acreditar em certas coisas.
Não podemos aceitar um diretor cego. Não é possível aceitar que o olhar siga ao acaso. O cinema pode registrar o acaso em frente à câmera, mas é inaceitável para nós que o acaso comande o olhar, que o olhar que construímos a partir do filme não tenha uma linha lógica criada por alguém.
De certa maneira o filme mais recente de Woody Allen, Dirigindo no Escuro (Hollywood Ending no título original em inglês, algo como "Final Hollywoodiano" ou "Final de Hollywood"), pode sugerir que um filme dirigido por um cego não tem como ser bom. Não importa que o roteiro tivesse sido elogiado, não importa que a produção fosse eficiente, que no set estivessem técnicos e atores bons (em tese) ou que o diretor já tivesse visão na montagem: se o realizador não enxerga o plano filmado, o filme não presta. Ponto, parágrafo.
Será? Do filme, pelo menos no filme, os franceses gostaram. Para alguns foi fácil interpretar – é puro pedantismo. Uma piada do realizador.
Será mesmo? E se o filme do cego tiver lá suas qualidades? Por bizarro que seja, nosso olhar sobre o cinema pode crescer se pudermos incluir o acaso como possibilidade. Talvez os franceses estivessem certos.
Não é bem isso que o filme exibe – os produtores, a crítica e o público americanos acham o filme péssimo, e o próprio realizador confessa que tem a mesma opinião, desde que examina o copião, antes da montagem.
Será que algum realizador no mundo teria a calma de suportar ver o material que filmou às cegas (sem querer) e enxergar qualidades? Val Waxman não suporta. Ele viveu aquela situação terrível: perdeu o controle de tudo. Perdendo a visão, perdeu a linha que tinha para lhe guiar. Ficou solto e cego, e perdemos nós também a certeza. Nós não vimos o filme. O realizador não gosta do resultado - e daí? Quem se importa com a opinião do realizador? O que vale é o filme!
Ainda que eu não fosse apostar um centavo em "The City That Never Sleeps" – a trama é ruim e os atores também não parecem ser muito bons. Mas aí está o ponto: Val Waxman e seus produtores consideram o resultado final ruim – mas, diante do que eles pretendiam filmar antes, eu não confiaria nas suas avaliações...
E se os franceses que quiseram enxergar qualidades no filme tivessem razão?
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Allen tem no filme uma postura clown impressionante – é, de certa maneira, sua volta à comédia física, com tombos e quedas do ator-diretor. É uma entrega que já denota uma coisa: para além do desespero de Waxman, sofrendo por não enxergar o mundo, o filme é - do seu jeito gozador, inseguro e tremendamente irônico (a postura tradicional de Allen) - uma declaração de paixão pelo cinema e pela vontade de fazê-lo (sob essa ótica, lembra a seu modo o Ed Wood do Burton). Cada tombo parece revelar em vários aspectos um tremendo carinho pelo fazer cinema. Cinema físico é isso aí, um sujeito de sessenta anos se esborrachando pelos cenários afora.
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É evidente que a interpretação de um filme sempre está até certo ponto amarrada às sugestões diretas ou análogas trazidas pelas suas imagens e seus sons, isso não vamos discutir aqui - mas, dependendo do filme que se vê, essas amarras podem mais libertar que prender a interpretação, sobretudo no caso deste Hollywood Ending - Dirigindo no Escuro, ou não? Pode-se supor, talvez, que Dirigindo no Escuro seja um filme que põe em questão a capacidade que um realizador tem de dominar toda a construção cinematográfica. O desamparo de Waxman ao sentir que não controla seu filme sugere isso - mas poderíamos ver o oposto se acreditássemos na avaliação final que todos têm do filme que fizeram. Depende do que se quer ver, talvez... Pela entrevista de Allen no DVD recém-lançado, percebe-se sua preocupação em desfazer a imagem de diretor-auteur que tudo controla - mas, bem, alguns realizadores costumam dar pistas falsas sobre seus filmes, e pode acreditar nisso quem quiser.
Poderíamos ver além, se quiséssemos - tudo depende da disposição de quem olha. Seria demais sugerir inclinações políticas na cegueira psicológica do americano, quase homônimo dos outros personagens, e na simpatia, ainda que gozadora, pelos franceses? Bem, fica a idéia... para quem quiser ver.
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Os franceses podem estar certos porque eles podem ter visto o que só a câmera mostra - a câmera não mostra o que enxerga o olho nu, nem este olha apenas o que só a câmera vê. Filmado, o mundo vira uma outra coisa que, montada, vai se transformar numa terceira coisa. Podem estar certos os franceses porque quiseram ver, assim como queria Val Waxman o tempo todo. Ele perdeu o controle e sofreu por isso, e por sua vez eles fizeram uso do controle que tinham - seguiram as linhas que encontraram e acreditaram no que descobriram. O filme era deles que assistiam, não do realizador que o perdeu na feitura – e, enxergando à sua maneira, fizeram desse filme algo seu. O filme é feito por quem o vê.
Pela obsessão de seu personagem e pela reação do público do seu filme, Allen nos sugere cinematograficamente uma convicção e, de certo modo, também uma profissão de fé : se quem olha não quer ver, termina então por não enxergar ; e o importante portanto não é apenas olhar – importante é querer ver. Para poder enxergar tem que querer ver.


Texto publicado em fevereiro de 2004