15/07/2008

Entrevista com Eduardo Escorel - para o documentário O Mundo de Um Filme



Foi seu primeiro filme? Você tinha dezenove anos, não é?

Primeiro filme de ficção que eu trabalhava, sim. Eu tinha feito já umas coisinhas pequenas, tinha feito um curso de cinema por seis meses, dado por um cineasta sueco que veio ao Brasil, o Arne Sucksdorff, um documentarista, isso no final de 62, segundo semestre de 62. E tinha trabalhado um pouquinho com Joaquim no Garrincha, fiz umas gravações de som pra ele, de som ambiente. Depois comecei a trabalhar um pouco com montagem, fazendo um trabalho de sincronização, de assistência. Mas o primeiro filme de ficção que eu trabalhei foi O Padre e a Moça, em que eu fiz assistência de direção do Joaquim.

E como vocês se conheceram?

Eu conheci ele nessa época desse curso dado pelo Sucksdorff, exatamente assim como que eu conheci, eu não sei se vou lembrar bem... Mas foi nesse momento, em que eu estava fazendo esse curso e as pessoas que faziam cinema de alguma maneira se conheciam e ... O dia, o momento que conheci, eu não vou me lembrar. Mas basicamente deve ter sido no Bar da Líder, que era o bar que a gente freqüentava, e que toda tarde todo mundo ia pra lá, e provavelmente eu conheci Joaquim no bar da Líder nesse período do curso. E depois eu comecei a ficar mais próximo dele nesse trabalho, que foi um trabalho mínimo, assim, de gravação de ruídos ambientes para o Garrincha, porque eu tinha aprendido a mexer nesse curso com o Nagra, que era um dos primeiros Nagras que chegou ao Brasil, e tal, e no curso tinha equipamento. No curso, tinha vindo equipamento, uma Arriflex, uma mesa de montagem Steenbeck e o Nagra... Eu aprendi, não a fazer som, mas a ligar o gravador, e já virei técnico de som por causa disso. E fui lá para o Maracanã fazer, na final do Campeonato Carioca de 62, fazer umas gravações de ruído ambiente. E depois fiz, durante alguns dias com ele, ele já estava com o filme mais ou menos pronto, montado. Mas ele não tinha tido nenhum recurso de som direto, apesar de teoricamente ser um filme documentário na linha do cinema verdade, mas não tinha equipamento no Brasil na época pra fazer um documentário com entrevistas, essas coisas. As únicas entrevistas que tem no filme são feitas em estúdio, com equipamento pesado, as filmagens de maneira geral não tinham som. Então quando ele acabou de montar o filme não tinha som ambiente, foi tudo editado, gravado depois e editado na montagem, não por mim, acho que pelo próprio Nello Melli, que montou o filme.

Seu interesse era montagem?

Olha, não tinha nessa época nenhum interesse específico pela montagem, eu tinha a vaga intenção de dirigir, mas eu fui fazendo o que aparecia, o que era possível fazer... Depois desse momento eu parei durante um ano, porque eu ainda estava no colégio, e nesse ano de ‘63 eu fui morar em São Paulo, e fui estudar para fazer o vestibular, eu ia fazer vestibular para engenharia, depois desisti, resolvi fazer arquitetura, depois fiquei assim sem saber, resolvi fazer física, já sob a influência do Joaquim e do Mário, que era arquiteto, o Joaquim era físico, aí desisti de São Paulo, vim para o Rio e fiz o vestibular para física e arquitetura. No fim de 63, início de 64. Aí passei nos dois, tranquei arquitetura e comecei a cursar física. Mas foi um ano meio difícil, era ‘64, teve o golpe, as faculdades demoraram muito a começar, e eu fui me envolvendo cada vez mais com o cinema, a física eu comecei a cursar, mas depois de uma semana sumi e nunca mais apareci, a arquitetura eu deixei trancada e está trancada até hoje... Só depois, uns quatro anos depois, fui fazer sociologia na PUC – eu já trabalhava em cinema, já estava até casado. Depois desse momento o Joaquim estava, se não me engano no início de 64, já estava com a intenção de fazer o Padre e a Moça. O filme foi filmado no início de 65 e ficou pronto no fim de 65, talvez tenha sido lançado no início de 66, não sei. Mas a filmagem foi no início de 65.

Você acompanhou o processo de roteiro dele?

Não, o roteiro eu não acompanhei muito. Eu fui um dia à casa dele com o David Neves, a famosa casa, ainda antes da obra do terceiro e quarto andar, era casa só de dois andares, e o Joaquim estava falando em fazer o Padre e a Moça, e dessa conversa, meio loucamente, ele me perguntou se eu não gostaria de fazer a assistência de direção do filme. Eu fiquei assim, digamos... mas demorou um tempo para esse filme sair. Mas eu fiquei no ano de 64 todo um pouco com essa intenção, essa perspectiva de fazer a assistência de direção do Padre e a Moça e depois fiz também a montagem do filme.

Mas você viajou com ele, ficou os quatro meses?

Fiquei.

A Helena Ignez contou que a filmagem foi bem conturbada.

Olha, foi difícil, em primeiro lugar porque a gente estava numa cidade que não tinha nem luz nem água, então você ficar, não sei se foram quatro meses, entre três e quatro meses... Se não me engano foi em fevereiro, me lembro que durante o Carnaval a gente estava filmando. Então foi fevereiro, março, abril, não sei se chegou a... E em São Gonçalo na época não tinha luz elétrica, não tinha água, era uma equipe pequena, acho que eram onze pessoas, era uma equipe bastante pequena, todo mundo fazia várias funções. Eu além da assistência também fazia um som guia, o Prates além de estagiário fazia a continuidade, quando ele não estava eu fazia a continuidade, o Mário era fotógrafo e cenógrafo, o Fernando era assistente de câmera e fotógrafo de cena, todo mundo fazia várias coisas. E eu acho que o fato de ficar numa cidade pequena, um grupo pequeno de pessoas, talvez o fato de só ter uma mulher...

A Helena fala de outra, a Rosa.

É, tinha a Rosa Sandrini, era uma senhora de idade, não que não fosse uma mulher, mas já era uma senhora de idade... então aqueles jovens todos ali em volta da Helena, durante quatro meses, sem luz e sem água, aos poucos aquilo ali foi pesando.

Muitas confusões?

Algumas, algumas (ri)... era tudo um pouco precário, um pouco difícil, então...era todo mundo muito moço, também, todo mundo com pouca experiência. Eu acho que eu era o mais jovem, tinha dezenove anos. Tinha os estagiários, mas os próprios estagiários mineiros, o Prates, o Veloso e o Flávio Werneck, acho que eram mais velhos que eu, são todos um pouco mais velhos do que eu.

O Joaquim e o Mário Carneiro já tinham quase trinta.

Olha, eu não sei ao certo a idade do Joaquim em 65, mas era todo mundo muito moço... e com pouca experiência, tem um pouco disso também, quer dizer, era o primeiro filme de ficção do Joaquim, eles também não tinham muita experiência. Essa coisa de você ir para um lugar, ficar com uma equipe exige uma disciplina interna que ninguém tinha muito, entendeu? Então as coisas se confundiam, se misturavam muito, então isso ajudou a gerar problemas, brigas, confusões...

Vocês procuraram essas locações? Como foi?

O Joaquim fez um viagem prévia, na qual eu não fui, seguindo umas indicações que o doutor Rodrigo deu a ele... Acho que fez essa viagem com Sarah, eles tinham um fusquinha branco, durante anos... E ele fez uma viagem de carro, voltou com umas fotos, com uma indicação dessa cidade, com a idéia de fazer nessa cidade, que é uma cidade que fica entre Diamantina e o Serro. Fica mais ou menos numa estrada ruim, já era ruim, continua ruim, eu voltei lá uma vez só, em 87, e continua ruim a estrada... A gente ia pra lá nuns jipões da polícia militar que a gente tinha, era uma coisa assim de uma hora e meia, mas estradinha de terra, assim, bem difícil...

E lá, a relação de vocês com a população local...?

Foi tranqüila até o último dia. Durante a preparação e as filmagens era tranqüila, tinha algumas senhoras locais e pessoas que faziam uma espécie de figuração, inclusive.

As bruxas ...

É, as feiticeiras, as bruxas... e lá na região tem muito bócio, uma doença que dá no pescoço. Até aparece um pouco no filme não sei se dá pra ver muito. Tinha muitas senhoras assim, com pescoço inchado... Umas figuras muito estranhas...

Como se pega essa doença?

E uma doença que tem muito no Brasil, bócio. Eu acho que é uma coisa que se transmite...

Não é falta de iodo?

Talvez, talvez, eu não sei como é que é... É uma coisa que é muito feia realmente. A pessoa fica com o pescoço inchado assim.

É difícil não notar...

Mas eram um pouco bruxas, sim.

Vocês saíram com o filme planejado?

Não, teve uma fase razoavelmente longa, pelo que eu me lembro, de preparação e de planejamento aqui no Rio, tinha o escritório de produção na Rua México, ali que a gente trabalhava... Mas teve muita coisa, até a própria decisão de fazer o filme com o Paulo José, que só foi decidida em Diamantina. Nós ficamos em Diamantina um período, alguns dias, antes de começar a filmagem, e o Luiz Jasmin ,que ia fazer o papel, adoeceu com hepatite lá em Diamantina. E ficou aquela crise, a filmagem ia começar dois dias depois. E naquele tempo, acho que é difícil até de vocês imaginarem, Diamantina era longe, até hoje é longe, mas as comunicações eram difíceis. Você telefonar de Diamantina para o Rio era difícil, não era como é hoje, entendeu?... Então ficamos lá com aquele problema, era o papel principal do filme e a gente não tinha ator pra fazer o papel. E eu tinha feito uma viagem com o Joaquim durante a preparação para São Paulo, foi quando ele chamou o Fauzi para fazer o filme. Nós fomos a São Paulo ver umas peças pra ver atores e tal, fomos ver a famosa encenações dos "Pequenos Burgueses" no Teatro Oficina, dirigido pelo Zé Celso, que tinha estreado, eu tinha visto com o Raul Cortez fazendo o papel. Quando o Raul saiu, entrou o Fauzi para fazer o papel que o Raul fez inicialmente. E o Raul estava excepcional, era maravilhoso o trabalho dele, e o Fauzi também estava ótimo, era uma encenação fantástica, realmente. E o Joaquim convidou o Fauzi. Nessa viagem nós conhecemos o Paulo José. Nós fomos ao teatro de Arena e depois da peça, eu não me lembro que peça nos vimos, mas tinha uma bar em frente, sempre os bares..., em frente ao Teatro de Arena, que o pessoal ia, e tal... E nessa noite, nós conhecemos o Paulo José, falamos uma duas palavras com ele. E quando, talvez um mês ou dois depois, naquela crise do ator, o Joaquim lembrou: "tinha um ator que nós conhecemos, assim, uma noite em São Paulo"" . "Ah, lembro, quem era...?", "Ah, o Paulo!". E aí começaram os telefonemas malucos pra achar, pra identificar quem era a pessoa. Um tal de Paulo José, não sei o quê... E o Paulo chegou depois, de ônibus, não sei se dois ou três dias depois, sem ter lido o roteiro, sem saber o que era, e tal...

Apostando no escuro no projeto...

Totalmente... A equipe foi inclusive pra São Gonçalo, eu fiquei sozinho em Diamantina esperando o ônibus chegar pra receber o Paulo. Aí o Paulo chegou e tinha o problema da batina, porque a batina tinha sido feita para o Luiz Jasmin, que é maior, e tal... Então tinha que reformar a batina. E já foi um trauma para o Paulo aquela história de chegar e a roupa de outro ator ter que ser adaptada para ele... o fato dele ser um substituto de última hora ficou mais marcado ainda. Aí nós fizemos lá, fomos num alfaiate local para reformar a batina e partimos para São Gonçalo para começar as filmagens. E ele, que tinha pouca experiência como ator, ele tinha mais uma formação de cenógrafo de teatro, tinha feito pouquíssima coisa como ator e nunca tinha feito cinema, entrou logo para fazer aquele papel. Então era tudo um pouco assim, todos nós... o Mário Lago, em suma, era um senhor já com experiência, o Fauzi tinha mais experiência de teatro, a Helena tinha feito vários filmes... Mas, dos outros, quem tinha mais experiência ali era o Mário, na equipe técnica, o Fernando Duarte já tinha feito algumas coisas, mas os outros tinham pouca experiência.

Vocês ficaram os quatro meses lá? Ou ficaram indo e voltando?

Não, nós ficamos lá, íamos de vez em quando a Diamantina, fomos no carnaval, por exemplo, nos dias de folga... alguns dias nós acampamos para filmar, porque eram umas locações no meio das montanhas, que não dava para chegar muito cedo para filmar, então nós dormimos numas barracas durante umas duas ou três noites, acho... Depois teve uma parte, no final, a parte da gruta, que foi feita na Gruta de Maquiné, que é longe de São Gonçalo, então nós viemos de lá, ficamos em Cordisburgo, dormimos talvez umas duas ou três noites também, para fazer a parte da gruta, que foi no final das filmagens. Mas basicamente nós ficamos em São Gonçalo, a gente ia no dia de folga para Diamantina, acho que íamos uma vez por semana, fora idas eventuais, por problemas de produção. Porque era uma questão, uma questão difícil, que era que, ao mesmo tempo que O Padre e a Moça, estavam fazendo o Matraga, o A Hora e a Vez de Augusto Matraga, do Roberto Santos, e os dois filmes estavam sendo produzidos pelo Luiz Carlos Barreto, e tinha certas coisas que eram comuns às duas produções, que eram divididas ee que ficavam em Diamantina. Eles também filmaram ali no entorno de Diamantina, ao mesmo tempo. Então, para carregar as baterias da câmera, a bateria tinha que ir a Diamantina todo dia para carregar e voltar. E as duas produções tinham que mandar suas baterias para lá, porque tinha só um carregador para os dois filmes. Então, todo dia então saía um carro e dava aquela volta para levar a bateria, carregava ela de noite... Porque não tinha luz elétrica em São Gonçalo, não tinha como carregar lá mesmo. Mas era tudo assim, tão poucos recursos... porque você imagina, dois carregadores de bateria você imagina que talvez pudesse ter, não é? Mas não tinha, só tinha um.

E o processo de filmagem, foi complicado?

Foi, foi trabalhoso. Foi trabalhoso por vários motivos, desde problema técnicos, quer dizer, vários dias de filmagem tiveram que ser refeitos por causa de uma lente que estava com defeito e não se sabia, e demorava muito para ver o copião, porque o negativo, para vir para Rio, revelar e voltar, demorava dez dias, quinze dias. Então, quando finalmente nós vimos o primeiro copião já haviam se passado quase duas semanas, aí descobriu-se que uma lente estava com defeito e não dava foco. Então nós perdemos, assim, grande parte dessas duas semanas, teve tudo que ser refeito... E o Joaquim tinha um temperamento muito obsessivo, muito detalhista... depois acho que ele mudou bastante. Mas nesse tempo tinha uma preocupação formal muito grande... tudo isso, quer dizer, o deslocamento era difícil...

Ele, no geral, ficou satisfeito com o resultado?

Isso é difícil te responder, viu... Acho que foi um processo meio sofrido para ele, tenho impressão, inclusive pela reação ao filme, a recepção ao filme também... E acho que por muito tempo ele meio que rejeitou o filme, acho que ele se reconciliou com o filme muito anos depois, ele passou muito tempo sem ver o filme, até que houve uma retrospectiva, acho que em Roterdam, aí ele viu depois de muitos anos, e ele meio que se reconciliou. Eu também passei muitos anos sem ver o filme, acho que passei uns quinze ou vinte anos sem ver, e fui ver uma vez na Cinemateca do MAM.

Mário Carneiro nos contou bastante dos problemas que teve com Joaquim Pedro durante as filmagens.

É... eles tiveram muitos problemas, Mário e Joaquim, durante a feitura do filme, dificuldades de todo tipo, desde problemas mais pessoais de relacionamento até problemas de trabalho mesmo, e tal, e o Joaquim ficou com uma certa... Acho que eram coisas que vinham da relação deles, de antes do filme, que vinham acumuladas e meio que explodiram ali. Tanto que o Mário não trabalhou nunca mais com ele, né?

O Joaquim produziu o filme do Mário (Gordos e Magros), não é?

É. E aí houve novos problemas, né?...Mas nunca mais chamou o Mário para fotografar. Mas acho que ele mesmo reconheceu, depois... Acho que ele tinha uma certa impaciência com um certo tempo que levava para iluminar, para preparar, acho que Joaquim tinha uma certa dificuldade com algumas limitações que uma luz mais recortada criava... Mas acho que ele depois reconheceu que o resultado do filme era bom, e que o Mário, com os recursos que tinha, era muito pouca luz, não sei se ele teria muita opção, em termos de técnica, para iluminar... É muito difícil você relembrar essas coisas, e é difícil falar pelos outros, também, não é uma coisa fácil.

Mas se comentou muito disso, desses conflitos estéticos?

Sim, sempre se falou muito disso. Mas eu me lembro bem de ter conversado com ele, quando eu revi o filme, muito antes dele rever o filme, de comentar minha impressão tendo revisto o filme tanto tempo depois, e me lembro bem dele comentando a reação dele depois de ter revisto o filme, tendo gostado do filme e do trabalho do Mário.

E qual foi a sua reação, quando reviu?

Eu tive uma boa surpresa também, porque eu acho que o filme tem uma certa dimensão trágica, de tragédia grega mesmo, que na época eu não sentia muito. Na época o que ficou mais, quando o filme ficou pronto, com a reação das pessoas e tal, foi uma reação um pouco negativa pelo fato do filme talvez ter um ritmo um pouco lento, isso pesou muito contra o filme. E, revendo o filme depois, eu não senti isso tanto. E essa dimensão meio trágica eu acho que tem uma certa grandeza no filme, visto depois e mais friamente, que me impressionou quando eu revi.

Muito se falou do filme não ser explicitamente revolucionário, político...

Isso, para mim, eu não sei se me... Muita gente reagiu mal ao filme por conta disso, o pessoal mais militante, politizado, que tinha sido ligado à UNE, ao CPC, essa linha do cinema novo que vinha daí, com a questão do golpe, isso politizou mais ainda as coisas, num período que já era de grande participação, um certo tipo de atuação e militância, e com o golpe estas questões ficaram mais presentes e mais urgentes. Então havia uma demanda por parte da esquerda, digamos assim, por filmes que respondessem ao golpe militar mais explicitamente. E os filmes começaram a aparecer, com exceção do Desafio, do Paulo César, que foi concebido e imaginado depois do golpe, e depois, a partir de Terra em Transe, onde já havia uma repercussão do golpe, esses filmes, Augusto Matraga, O Padre e a Moça, Menino de Engenho, A Grande Cidade, eram filmes imaginados antes do golpe. E é um problema que o cinema brasileiro tem até hoje, quer dizer, o tempo que leva para fazer um filme, quando o filme realmente aparece o mundo já mudou, e às vezes o filme é visto num contexto e numa circunstância muito diferentes daqueles em que ele foi imaginado, e isso causa certos...E esse grupo de filmes sofreu, acho, muito por causa disso, porque aí foi uma coisa muito marcante, uma ruptura que marcou muito a vida das pessoas.

Mas, apesar de todo o trabalho de roteiro e com atores aqui no Rio, o filme foi rodado relativamente rápido, não?

Mais ou menos. Eu acho que o Joaquim já pensava no filme desde que ele acabou o Garrincha. Acho que desde ’62, ’63, quando o Garrincha ficou pronto, ele já pensou em um novo filme e já pensava no Padre e a Moça, então, se você puser aí, são dois, três anos...

O Jabor escreveu uma crônica da sessão de estréia do "Deus e o Diabo...", contando que todos saíram dali abalados, o Joaquim Pedro teria ido mexer no roteiro do "Padre e a Moça", o Ruy Guerra na montagem do "Fuzis"...

O Deus e o Diabo, sem dúvida, abalou todo mundo, muito... Mas teve a vantagem, num certo sentido, de ficar pronto e de ter sido visto imediatamente antes do golpe, no ano anterior. Então ele foi feito e visto num contexto mais ou menos harmonioso, digamos assim. Esses filmes que foram imaginados antes e vistos depois, esses eu acho que sofreram muito com isso. Nós até, quer dizer, quem via e para nós também, que estávamos envolvidos com a feitura do filme.

Eu estava pensando agora no "Dia da Caça", que demorou oito anos...

É, hoje talvez isso tenha chegado a um certo exagero... tem o Chatô, o Villa-Lobos, em que eu trabalhei... mas nessa época, bem, O Padre e a Moça levou três anos, sei lá, pra ser feito assim. É muito tempo, e é muito tempo com essa ruptura no meio, entendeu? Porque o golpe realmente foi como se mudasse a vida das pessoas, mudou tudo, a perspectiva de vida das pessoas, o que você achava que tinha sentido deixou de ter, o que você imaginava que sua vida seria deixou de ser... Foi como se virasse tudo pelo avesso.

Já contaram pra gente alguns casos sinistros, como o da filmagem do fogo no final...

É... Contado depois é até engraçado... Teve muito coisa sim, essas histórias são um pouco o testemunho de como nós éramos meio despreparados, no fundo, porque ali várias pessoas podiam ter morrido, foi no limite da tragédia realmente. A situação foi a seguinte: como lá não tinha gruta, e a gruta ia ser filmada em Maquiné, nós tínhamos que fazer a cena final do filme, o Joaquim queria filmar de um ponto de vista do interior da gruta, em que se visse a população da cidade e o fogo que a população pôs pra matar o padre e a moça. Então, ele imaginou falsear isso lá em São Gonçalo, tinha uma encosta meio pedregosa, então ele imaginou colocar a câmera dentro, tinha uma profundidade, talvez de um metro, cabia a câmera apertadinha ali e mais duas pessoas. Então ele imaginou colocar, você tinha um recorte, assim, de pedra, como se fosse a boca da gruta, você via o fogo, a fumaça, as beatas e algumas daquelas pessoas que perseguiram o padre e a moça. E nós começamos a preparar aquilo, quer dizer, precariamente, para fazer aquele fogo naquela encosta. Tinha uma ajuda, como sempre, tinha a ajuda das pessoas locais, tinha um senhor, começamos a espalhar madeira, folhagens na encosta, e o Fernando Duarte e o Joaquim entraram nesse buraco, para poder ver o plano lá de dentro... Só que era uma coisa, assim, não tinha saída, né?... E eu fiquei do lado de cá, do lado direito com esse senhor aí, que tinha meio que comandado essa operação de preparar o fogo, numa pedrinha de onde não tinha como sair, não tinha saída pra nenhum lado. Tinha um buraco aqui, e o caminho era do outro lado. E aí "vamos, vamos filmar e tal...", puseram fogo na encosta. Só que foi mal calculado, naturalmente, e começou a queimar, a queimar e subir fumaça, subir fumaça... E eles começaram, não só a sufocar dentro do buraco, como a pegar fogo! E aí começaram a gritar, eu me lembro especialmente do Fernando gritando, e eles começaram a ficar desesperados lá dentro, eles iam morrer sufocados. Não tinha saída lá dentro. Eles estavam assim, encostados, e aquela fumaça e aquele fogo vindo pro lado deles... E aí esse senhor que estava ao meu lado, quando a coisa começou a ficar desesperadora, ele pegou umas pedras e começou a jogar elas em cima daquele material que a gente tinha preparado para pôr fogo. E aquilo começou a rolar pela ribanceira abaixo, e com isso diminuiu um pouco a fumaça e eles conseguiram sair de dentro do buraco, o Fernando com a camisa dele toda queimada, a camisa pegou fogo, literalmente, a camisa cheia de buracos... E foi isso, foi por pouco, foi por muito pouco.

Na época, o que você achava do filme? Gostou?

Olha, quando a gente trabalha tanto tempo num filme a gente se envolve de uma maneira que... eu achava, enquanto eu estava fazendo, achava que era a melhor coisa do mundo, com certeza... Acho que tinha, na época, até pela minha própria experiência, muito menos senso crítico do que o Joaquim, quer dizer, eu montei o filme junto com ele, era o primeiro filme que eu montava, que eu trabalhava como montador. Mas eu não tinha assim um senso crítico muito desenvolvido, quem tinha era o Joaquim.

A montagem foi logo depois das filmagens?

Foi... era uma coisa um pouco demorada, porque éramos só nós dois trabalhando...

Na moviola do Luiz Carlos Barreto?

Não, não era a dele não, era essa mesma mesa de montagem que veio para o tal curso que eu falei, que tinha sido depois doada e era meio gerenciada pelo patrimônio, o doutor Rodrigo é que era responsável por ela, em última instância... Ela estava instalada numa casa em Santa Teresa, nós trabalhávamos lá, uma casa que hoje é até uma espécie de museu, como o Instituto Benjamin Constant, foi reformada, restaurada e tal, mas na época era uma casa do Patrimônio, que estava um pouco abandonada, assim, e... O Joaquim tinha uma maneira de trabalhar, isso ele sempre teve, e varia muito de diretor para diretor, mas o Joaquim filmava muito em função de como aquilo ia ser montado, quer dizer, ele decupava, planejava a decupagem, em função da maneira como ia ser montado. Então, no caso do Padre e a Moça, a montagem, não era tanto uma questão da estruturação interna de cada sequência, era mais uma questão, os problemas e as dificuldades da montagem eram mais ligados à narrativa, à estrutura narrativa do filme.

Mudou muito, em comparação ao roteiro original?

Algumas coisa foram eliminadas, algumas coisas grandes foram eliminadas, algumas sequências muito trabalhosas, muito difíceis de fazer, por exemplo, quando eles voltam para a cidade, o padre e a moça voltam, tinha uma longa sequência, se chamava a sequência da mula-sem-cabeça, em que ele entrava na cidade, via uma mula-sem-cabeça e começava a perseguir pela cidade a mula-sem-cabeça até chegar na igreja, numa cena em que ele está deitado no altar, tinha, assim, uns dez minutos de filme entre eles chegarem até aí, e hoje eu acho que corta, corta direto.

Mas como fizeram a mula-sem-cabeça?

Bem, tinha uma mula, mas com cabeça, mas que para ele funcionava como uma mula-sem-cabeça, por causa da lenda das mulheres de padre, e então ele via uma mula e começava a perseguir essa mula. E isso foi naturalmente complicadíssimo para filmar, o Paulo José se atracava com a mula, foi derrubado, acho até que ele perdeu um dente nessa história, levou um coice da mula. E essas coisas na montagem foram simplesmente eliminadas, tinha coisas, aquelas cenas do garimpo, se não me engano, eram maiores, e muita coisa do Fauzi Arap também, o filme foi muito diminuído na montagem, muita coisa foi...

Como foi sua relação com Joaquim na montagem?

Eu me entendia bastante bem com Joaquim. Na época, eu estava aprendendo, literalmente, ele é que sabia mais do que eu, então, na verdade, eu é que estava ali trabalhando junto com ele. Ao longo do tempo e dos anos a minha relação com o trabalho e com as pessoas certamente se modificou, né?

Ele estava presente em todos os momentos da montagem?

Estava... mesmo se não estava presente, quer dizer, essa coisa da montagem, o fato do diretor estar ou não presente não significa necessariamente que ele não esteja participando, não esteja assumindo, digamos assim, a responsabilidade por aquilo que está sendo feito. O diretor não precisa estar sentado ali, vendo cada corte sendo feito e coisa e tal. Eu até, pessoalmente, hoje em dia, acho até que não deve estar, mas há diretores que são mais obsessivos e paranóicos e inseguros, e etcétera etcétera, e possessivos, acham que um fotograma vai fazer diferença no filme deles e na vida deles... Eu não acho que a relação do diretor com a montagem deva ser essa, e nem acho muito produtivo nem saudável para o diretor ficar acompanhando as etapas, as minúcias da montagem... que naquele tempo eram muito maiores que hoje, hoje isso mudou. Como você faz isso no computador, a montagem ficou muito menos artesanal do que era naquele tempo. Naquele tempo tinha um lado artesanal, trabalho manual, físico, de corte e costura, muito pesado mesmo. Não tinha muito sentido para o diretor ficar vendo aquilo e acompanhando tudo... Mas, nesse caso, como eu não tinha experiência nenhum e ele era o diretor do filme, essencialmente o Joaquim estava lá o tempo todo.

A montagem de certa forma estava antenada com a época, fugindo um pouco da narrativa clássica, apesar do filme ser muito clássico.

Provavelmente por, eu não tenho uma lembrança perfeita do filme, agora já fazem de novo muitos anos que eu não vejo, mas provavelmente, eu acho que o desejo do Joaquim era de fazer uma narrativa mais clássica, digamos, para usar a palavra que você usou. E essa coisa mais sincopada ou descontínua, acho que em geral é resultado de coisas que não foram bem resolvidas ou no roteiro ou na montagem, e que na montagem se eliminou porque não estava bom ou pra tentar dar um ritmo maior ao filme... Acho que são mais resultado disso. E eu acho que na época ele ainda estava mais voltado, por um lado, para um tipo de narrativa mais clássica e depois ainda talvez não dominando tanto, como ele veio a dominar nos Inconfidentes, um estilo já um pouco diferente, de planos mais longos, em que a encenação mesmo criava uma situação diferente.

E quais foram os outros filmes que você fez com Joaquim Pedro?

Eu fiz, depois do Padre e a Moça, eu fiz depois o Macunaíma, o Guerra Conjugal... fiz o Vereda Tropical... e acho que só.

Você não trabalhou no "Homem do Pau Brasil"?.

Não. Eu parei de trabalhar, por muito tempo, como montador, depois que eu passei a dirigir mais filmes de ficção, foi em ‘75. Eu passei muito tempo sem trabalhar como montador, um pouco porque eu estava fazendo outras coisas, um pouco porque, eu tendo passado a dirigir, eu acho que as pessoas ficavam um pouco, assim, meio sem saber se eu poderia fazer ou não...

E com relação à música do filme? O Carlos Lyra nos contou que o Tom Jobim chegou a ser convidado antes dele para escrever os temas...

Olha, eu não lembro especificamente do Tom ter feito nada, nem ter visto o filme... O Joaquim pode talvez... Eu me lembro que o Joaquim pensou em muita gente, me lembro de ouvir falar em vários nomes, num primeiro momento falou-se de Cláudio Santoro, de compositores mais eruditos, e tal... Mas, que eu me lembre, se ele propôs, ou o Tom não pode ou não quis, não sei, mas eu não me lembro, por exemplo, do Tom ter visto o filme, não me lembro disso. Eu me lembro de quando ele resolveu, chamou o Carlinhos, o Carlinhos foi lá ver o filme, depois acho que o próprio Carlinhos sugeriu que o Guerra-Peixe fizesse os arranjos... depois, não sei se o Carlinhos comentou, mas quando a música foi gravada o Joaquim estava preso, então ele não pôde acompanhar a gravação da música, porque coincidiu com o da prisão, e a gravação foi feita sem ele.

O que o Carlos Lyra contou foi que o Jobim teria aceito, mas depois teria desistido por conta de possíveis problemas com a ditadura, pela origem dos envolvidos, sua proximidade com o CPC. Enfim, que, pensando em sua própria carreira internacional, o Tom preferiu não participar, e só aí que o Joaquim o teria chamado.

Olha, eu não tenho nenhuma lembrança disso. O que teria o CPC?

A história que o Lyra nos contou foi que o Tom teria dito para o Joaquim que tinha medo da paranóia dos americanos, de que eles lhe criassem problemas para entrar no país deles...

Olha, eu nunca ouvi falar nisso. Enquanto o filme estava sendo feito, eu acho estranho, porque enquanto o filme estava sendo feito não havia nenhuma razão para alguém... O filme nenhum vínculo com o CPC, nem o Joaquim tinha ligação com o CPC, que aliás nem existia mais nessa época. Nem havia qualquer razão para suspeitar que o filme tivesse qualquer tipo de implicação política, como de fato não veio a ter. E o Joaquim sempre foi amicíssimo do Tom, a vida inteira. Eu não me lembro, agora, eu não posso dizer nem que sim nem que não, mas absolutamente não me lembro disso, e me parece muita estranha essa história, não me lembro não... agora, o Carlinhos talvez tenha mais condição do que eu de falar disso, mas eu não me lembro, absolutamente.

E as demais pessoas da equipe, você voltou a trabalhar com elas?

Bem, eu sempre fui muito amigo, muito ligado ao Joaquim, não é? O Carlos Alberto Prates, também sempre fui ligado a ele. Mas nunca mais trabalhei com... acho que nunca mais montei nenhum filme fotografado pelo Mário, nem trabalhei com ele quando dirigi, nem com Fernando Duarte... e as outras pessoas, também não...

Barreto?

Barreto sim, trabalhei várias vezes. O Barreto inclusive produziu o Lição de amor, que foi o primeiro filme que eu dirigi, fiz com ele antes um filme sobre Pelé...

O "Sonho sem fim", do seu irmão?

Não, Sonho sem fim não, esse fomos nós mesmos que produzimos, junto com a Embrafilme, foi pela produtora minha e do Lauro... Eu tenho umas fotos aqui do Padre e a Moça, vocês querem ver?...

Só mais algumas coisas. E o clima dos sets, entre atores, como foi, fluiu bem?

Variava muito, né?... Com o Paulo foi muito bem, o Paulo foi excepcional, o Paulo José, não só pela circunstância difícil para ele, era o primeiro filme dele, e entrando no filme daquela maneira... mas eu acho que foi uma salvação para o filme, acho que teria sido um desastre se o Luiz Jasmin tivesse feito o papel. O Paulo foi uma casualidade que salvou o filme... Já o Fauzi foi muito difícil, o Fauzi, a relação dele com o Joaquim, a minha lembrança é que foi muito difícil, o Fauzi tinha uma forma de atuar talvez mais teatral e que acho que não funciona muito bem no cinema, o estilo de interpretação que eu acho que não funcionou muito bem no filme. Acho que tanto o Mário Lago, como a Helena e o Paulo acertaram mais o tom, mais contido, mais...

Mas, ao mesmo tempo, o tom que ele encontra tem muita relação com o personagem, como um elemento perturbador...

É, o personagem é um pouco isso... Mas eles ensaiavam muito, também...

E você estava nos ensaios?

Não, eu estou falando de ensaios lá mesmo, no set...

Porque ensaiaram meses aqui no Rio, não?

É, não sei se foram meses, mas houve alguns ensaios na casa do Joaquim sim, até filmados, lembro até que a gente filmou alguns. Teve alguns ensaios, mas acho que não foram meses... Mas acho que não com o Fauzi. A Helena ensaiou com o Luiz Jasmin, na casa do Joaquim, algumas vezes, eu acho, alguns dias... não foi uma coisa, que eu lembre, tão demorada não... E nas filmagens, antes de filmar, o Joaquim ensaiava muito, especialmente com o Fauzi. Às vezes na véspera, ou coisas assim, ficava horas ensaiando... E eu me lembro que chocava muito a teatralidade da interpretação do Fauzi... Se você diz que gostou, tanto melhor!... Porque visto hoje... Na época chocava um pouco, talvez o Fauzi tivesse razão, talvez a gente não estivesse vendo direito, mas era uma coisa que nos chocava um pouco.

É que o Paulo José vai num crescendo, sempre tentando ser muito contido, até o final, em que ele vai explodir, e parece que o Fauzi é o cara que já explodiu, que já pirou de amor pela moça...

Agora a gente queria falar um pouco da sua fase como montador e depois como diretor...

Puxa vida, mas aí são horas de conversa... mas vamos lá, vocês perguntam...

Depois do "Padre e a Moça" você queria se especializar como montador ou queria dirigir logo?

Eu sempre tive como objetivo dirigir, depois de trabalhar no Padre e a Moça eu fiz o primeiro filme que eu dirigi, na verdade co-dirigi com o Julinho Bressane, um filme sobre a Maria Bethânia, que foi feito em ’65 também, ou no início de ’66 talvez, um documentário sobre a Maria Bethânia feito em 16mm, a equipe era menor que a do Padre e a Moça, era eu e o Julio, só, nós fazíamos tudo... Eu era câmera e fotógrafo, ele fazia o som, só nós dois. Feito em 16mm, preto e branco, depois foi ampliado. Aí, pouco a pouco, fui trabalhando cada vez mais em montagem. E, digamos assim, de ’65 a ’75, embora eu tenha dirigido alguns curtas e documentários, eu trabalhei basicamente como montador. Quer dizer, depois do Padre e a Moça montei Terra em Transe, e aí montei muitos filmes, teve um momento em que eu estava montando três longa-metragens ao mesmo tempo, estava montando Macunaíma, Os Herdeiros e O Dragão da Maldade..., teve um período em que eu estava montando os três filmes ao mesmo tempo. E aí eu fui fazendo alguns documentários, fiz um documentário para a Tv Educativa sobre Santos Dumont, depois fiz um documentário no Ceará sobre uma romaria em Juazeiro do Norte, fui fazendo algumas coisas assim. E aí, em ’72, ’73, eu comecei a trabalhar no projeto da adaptação de Mário de Andrade que veio a ser o Lição de Amor, que eu fiz em ’75. Depois eu trabalhei basicamente como diretor, nesse período entre ’75 e ’83, o último filme de ficção que eu fiz foi O Cavalinho azul, acho que em ’83, depois comecei a produzir também, produzi o Sonho sem fim, produzi depois algumas coisas em parcerias da nossa produtora... e em ’86 é que eu trabalhei na Embrafilme, trabalhei um ano na Embrafilme, como diretor de operações, exatamente um ano, de janeiro de ’86 a janeiro de ’87.

Era uma época de muita pressão política? Porque era uma época em que a empresa dependia do dinheiro do governo, não?

A Embrafilme eu acho que sempre sofreu pressão de todos os lados, né? Por um lado tinha uma demanda muito grande, muito maior do que ela podia atender, todo mundo queria fazer filme, todo mundo se achava com os mesmos direitos de fazer filme, e o dinheiro que a Embrafilme tinha não dava para fazer todos os filmes. Então, isso criava uma tensão permanente. De certa maneira a Embrafilme nessa época já estava um pouco em crise e em processo de transformação, transformação essa que infelizmente nunca chegou a acontecer inteiramente, o que aconteceu foi o fechamento da Embrafilme, no início de ’90. Mas já vinha um processo, quer dizer, a crise da Embrafilme, digamos, a insuficiência do modelo, a necessidade de transformar aquele modelo era uma coisa que já estava clara há muito tempo, já vinha desde ’83, ’84 sendo trabalhada e pensada. Mas, resumidamente, as coisas que fiz foram essas, depois desse período da Embrafilme não fiz filme de ficção, vinha trabalhando mais em documentários, fiz uma série de documentários que foram exibidos na televisão, ou na TV Manchete ou na Cultura. Depois trabalhei um pouco na área de cinema publicitário, e recentemente voltei a montar algumas coisas. No ano passado eu montei um documentário em longa-metragem do Ricardo Dias, chamado , e montei o Villa-Lobos. A montagem ficou uma coisa mais possível para mim, com a montagem digital, voltou a ser uma coisa mais divertida para mim, eu me diverti muito nos últimos dois anos...

Você opera o equipamento?

Muito precariamente, eu não opero não, eu trabalho sempre com uma outra pessoa operando.

E durante a produção dos seus filmes com a Embrafilme, como era a relação com o governo e com a censura?

Quando eu comecei a me relacionar com a Embrafilme, na época do Lição de Amor, que foi produzido pelo Barreto com a Embrafilme, já tinha mudado um pouco, já foi no governo Geisel, em que já começava a se desenhar uma liberalização do regime, de alguma maneira. O período mais complicado do regime militar, o período mais difícil, foi entre ’68, o AI-5, e ’74, fim do governo Médici. Mas nesse período a Embrafilme não estava... não me lembro o ano de criação da Embrafilme, acho que foi ’69 ou ’70, mas começou só como distribuidora. Mas ela não estava produzindo tanto. Ela começou a atuar mais como produtora e financiadora de filmes, através do adiantamento sobre a distribuição, quando o Roberto Faria se transformou no diretor-geral da empresa, em ’74. E aí coincidiu com esse momento... Mas havia muita dificuldade, havia problemas, tanto que, muito tempo depois, por exemplo, já na gestão do Celso Amorim, ele teve que sair da Embrafilme por uma questão ligada a problemas políticos, quer dizer, o fato da Embrafilme ter participado do Pra Frente Brasil, do Roberto Faria, que lidava com a questão da tortura, levou à saída do Celso Amorim. Os militares, ainda no governo, não admitiam que uma empresa de economia mista, mas que era essencialmente uma empresa estatal, tivesse patrocinado, co-produzido... não sei se o acordo especificamente era de co-produção ou de adiantamento, mas não aceitavam que tivesse ajudado aquele filme.

Ainda sobre "O Padre e a Moça", uma coisa que a gente tinha curiosidade é quanto ao orçamento, quanto ao valor... imagino que não fosse muito, não é?

A dificuldade, Clara, é que, com essa loucura brasileira da mudança das moedas, a gente perde completamente a noção... mesmo em dólar, tantos anos depois, seria preciso fazer uma correção do dólar... eu imagino que... o Barreto talvez possa dizer, mas eu imagino que fosse alguma coisa, assim, na época, talvez eu esteja errado, mas eu imagino que fosse em torno de duzentos mil dólares, talvez um pouco mais...

E todo mundo sendo pago?

A gente não ganhava muito não, mas era pago. Era pouquinho, mas era pago... Eu me lembro que, quando eu montava o Terra em Transe, o que eu ganhava não dava... o filme foi montado no centro da cidade, onde hoje é a Esdi, na Rua Evaristo da Veiga, essa mesma moviola tinha sido depois levada para uma daquelas casinhas da Esdi. E o que eu gastava em passagem de ônibus e comida enquanto eu montava era mais do que eu ganhava, quer dizer, não era muito que a gente ganhava...

Você morava onde?

Na Voluntários da Pátria, aqui em Botafogo. Então a gente não ganhava muito, mas nessa época, quer dizer, eu morava na casa dos meus pais, então não era uma coisa profissionalizada totalmente, ainda. Para algumas pessoas era, mas para outras menos.

Uma vez, numa palestra, um montador comentou com a gente que o trabalho do montador era diferente dos outros no sentido de que todas as outras funções procuram fazer o que o diretor pede, enquanto o montador deve mostrar ao diretor o que é possível, quer dizer, deve olhar com visão crítica aquilo em que o outro esteve envolvido por anos. Eu queria saber sobre como foi seu relacionamento com diretores, em geral.

É, isso... Não sei se eu entendo ou concordo muito com o que essa pessoa disse. Quer dizer, o trabalho de montar um filme é esse, mas não é só uma questão de tirar o que não dá pé. Aquele material ali, você vê qual é a melhor maneira de organizar aquilo, de ordenar aquilo, de dar ritmo... e, em todo filme, é muito raro o filme que não tenha muita coisa eliminada, sequências, é muito raro um filme em que você não mude a ordem de uma sequência, que foi escrita e filmada para estar numa ordem e, quando você está montado, descobre que ficar melhor numa outra ordem... Isso é comum, normal, é uma coisa usual. Agora, é claro que existem variações, mesmo dentro do trabalho do mesmo diretor. Quer dizer, em Os Inconfidentes, eu me lembro bem, de todo o material filmado, só dois planos não foram usados, entende?... E no Padre e a Moça muita coisa não foi usada... No Macunaíma algumas sequências foram eliminadas, agora... Isso também tem a ver com certas limitações, deficiências e falta de experiência nossa, em termos de feitura de roteiro, em termos de filmagem, e tudo isso se cristaliza no momento da montagem, e nesse sentido você tem razão. Quer dizer, o que acontece na montagem é que ficam muito aparentes os problemas. Enquanto você está escrevendo, são letras no papel e a imaginação preenche os buracos, quando você está filmando o processo da filmagem é muito fragmentado, é fora de ordem, é difícil ter uma visão do todo... Na hora em que você vai montar tudo fica óbvio, quer dizer, como devia ter sido feito, é até injusto... Os montadores normalmente têm uma relação meio sádica com os diretores, acham que o diretor é um idiota, um incompetente, por quê que fez assim, e por quê não fez assado... Ora, é muito fácil, você está ali numa salinha, na penumbra, no ar-condicionado, ninguém está te chateando ali. Na hora da filmagem é outra história, tem uma pressão ali violenta, em geral tem mosquito, calor, mil coisas te perturbando a cabeça... Então, essa relação sádica do montador com o diretor em geral reflete a inexperiência do montador, que acha que está numa posição onipotente, ali... Agora, ao mesmo tempo, a montagem é o... Eu, de certa maneira, tive o privilégio de começar, ter tentado aprender um pouco de cinema na montagem, porque de fato você pode aprender muito, porque tudo fica muito óbvio, quer dizer, como devia ter sido feito, por quê que funciona e por que não funciona. Então você aprende muito, entende?... Agora, essa questão varia muito. O Glauber, independente das características de personalidade dele, ele era uma pessoa extremamente aberta e extremamente corajosa na maneira de lidar com o material que ele tinha filmado. O Glauber tinha uma característica como diretor oposta à do Joaquim, o Glauber fazia um filme, ou vários filmes, enquanto estava fazendo o roteiro, quando estava filmando fazia em geral um filme diferente do roteiro e quando estava montando fazia um filme diferente do que ele tinha filmado, quer dizer... O que é mais comum é um processo de afunilar, você imagina uma coisa e vai burilando, moldando, afunilando e chegando... O Glauber não trabalhava assim, absolutamente. Ele reinventava a cada etapa um novo filme. Em Terra em Transe, que foi o segundo filme que eu montei, tudo era possível. O filme podia começar por onde quisesse, podia acabar por onde quisesse, podia cortar de qualquer coisa para qualquer coisa, tudo era permitido, possível, todas as experiências eram válidas.

A idéia de um flash-back no momento da morte não era sugerida no roteiro?

Vagamente. Tudo era vagamente. Se você for ler o roteiro de Terra em Transe não vai reconhecer o filme. Fora o fato de que tem vários roteiros e são completamente diferentes uns dos outros. E muita coisa foi eliminada do Terra em Transe e o Glauber não sofreu nada com isso. Tanta coisa foi eliminada que agora foi criado o novo mito do Terra em Transe que foi reencontrado, das latas, tem uma nova história rolando aí, acharam o copião do Terra em Transe, então tem uma história rolando...



Entrevista concedida a Clara Linhart, Camila Maroja e Daniel Caetano em dezembro de 1999
Publicada pela primeira vez em setembro de 2002