17/07/2008

Lira Ano 2000, ou Das tripas surgem as cordas da Lira - sobre A Lira do Delírio (1978)

Passados mais de vinte anos de seu lançamento, “A Lira do Delírio” tornou-se um dos filmes mais festejados da carreira de Walter Lima Jr. No entanto, sua acolhida inicial, segundo o próprio Walter Lima nos conta, não foi das mais fáceis, devido à trágica morte de Anecy Rocha, protagonista do filme e sua mulher à época.
A beleza do filme, de todo modo, era tão evidente que ele acabou naturalmente se tornando um clássico, destes que aparecem sempre lembrados, seja em mostras, vídeo ou apenas pela lembrança de outros.

Mas isso não é a “Lira...”, de jeito nenhum.

Filme pulsante, filme vivo, arriscado e emocionado, “A Lira do Delírio” é um filme único de Walter Lima, um momento de experimentação e efusividade numa carreira que caminhava cada vez mais para um classissismo lírico, como veio a ser o caso de “Inocência”, “Ele, O Boto” ou mesmo os filmes mais recentes.

Na “Lira...”, a facilidade de compreensão cede lugar ao impacto. A fluidez narrativa fica em função do tempo próprio de cada situação, seja o carnaval de Niterói, o cabaré da Lapa que dá nome ao filme ou mesmo a imposição das “verdades” pelo editor de um jornal. Os personagens não têm nomes senão os de seus atores (exceção à protagonista, a dançarina de cabaré chamada ‘Nessi Elliot’).

Mas a “Lira...” não é um ‘retorno tardio ao cinemanovismo’ de um meio-convertido ao sistema. Ainda que tenhamos tortura, abuso de poder e tráfico de crianças ainda em 1978, o filme conta-se de um modo repartido, irreverente e no entanto incrivelmente lírico, este sendo certamente o adjetivo mais utilizado com relação aos filmes de Walter Lima. É isto a “Lira...”, sua mais ousada tentativa do ideal do cinema-poesia.
Filme ligado essencialmente a Eros, verdadeira ode à vida e à alegria, o filme curiosa e tristemente se viu contraposto àquilo que ele não enuncia, a morte.

Anecy Rocha é a força do filme, quase-improvisando com Pereio, Claudio Marzo, Tonico Pereira, Antonio Pedro e por aí vai... Grandes atores, que magnetizam a cena enquanto o narrador nos seduz com músicas climáticas de todo jeito, musicando o filme em busca de uma atmosfera irreverente e emocionada.

Num momento em que o enaltecimento da livre criação parece se manifestar, paradoxalmente, em todos os cantos, a “Lira...” nos passa a disposição para a alegria e para a beleza surpreendente. Em tempos tão pessimistas e moralistas, é sempre um prazer revê-la, nem que seja para notar a capacidade que sua ficção tem de se encantar com o cotidiano, e de descobrir o belo nos curtos momentos.

Como num carnaval, ou numa noite de um cabaré.

Texto publicado em dezembro de 2000