15/07/2008

Entrevista com Mario Carneiro - para o documentário O Mundo de Um Filme



Como foi sua formação, antes de fazer cinema?

Mário: Bom, eu acho que O Padre E a Moça foi um momento até de um certo amadurecimento de um começo que foi muito... Quer dizer, pra mim era uma coisa um pouco assim amadorística, eu sempre fiz cinema de amador, desde ‘54, que eu ganhei uma camerazinha, uma Paillard-Bolex, fiz arquitetura, pintura, gravura, minha formação era muito mais de artista plástico, embora fosse a cineclube, cinema todo dia... Eu tinha, quer dizer, gostava muito de cinema, mas a minha vocação primeira era ser gravador, pintor, cinema me parecia uma coisa meio distante. Até que, quando eu fiz 23 anos, minha irmã viu uma camerazinha lá e pediu para o meu pai me dar de presente e disse: "Mário vai fazer é isso aí". Aí papai comprou uma Paillard-Bolex , pagando em várias vezes, custava caro, mil e tantos dólares. Com três objetivas, e tal... E a partir daí, eu comecei a fazer filmes de amador mesmo, filmezinhos caseiros, depois comecei a me interessar já pela linguagem... Li aquele manual da Bolex, que já é um livrão. Aí comecei a estudar, comprar uma monte de revistas de amador, tinha uma chamada Cinéma Pratique, que era muito boa, uma revistinha francesa ótima que dava trucagem, mostrava como fazer. E comecei a fazer uns filmezinhos, assim, despretensiosos até certo ponto. E depois eu já tava querendo fazer um filminho que tivesse começo, meio e fim. Peguei uma boneca, estava lá na Suíça, tratando da minha saúde, estava meio mal, de ‘53 pra ‘54, aí fiz meu primeiro filmezinho de amador, todo montadinho e tal. E aí Vinícius de Moraes viu esse filme e disse: "Oh, Mariozinho, tudo bem, você pode gostar muito de pintura, de gravura, dessas coisas todas, mas o que eu acho que você vai fazer é isso aí". Esse filminho, quando eu voltei aqui pro Brasil, mostrei pra Joaquim, mostrei pra Leon, pra Paulo César , sobretudo Paulo César ficou muito impressionado. Depois mostrei mais uns filminhos de amador, aí eles ficavam que um achava que era melhor o outro filme, tinha uns assim neo-realistas, tinha outros que eram assim... meio que nem o da boneca, tinha cenas assim surrealistas, tinha uns planos da boneca dentro d’água, boiando, era um filme assim formalista... Eu descobri depois que tinha uma influência do Limite, porque era todo passado na água, era um barquinho com uma boneca. E o barquinho descia as águas, e a boneca ia descendo e eu ia mostrando as visões que ela poderia estar tendo, das águas congeladas, tinha uns túneis de água que ela atravessava, era um filme todo com a visão interna de uma boneca, uma doideira completa... Mas, enfim... E acabava com uma bota de um soldado, ele pegava ela da água e dos olhos dela caía uma cascata de água. Meu pai até disse: "Mas que final mais triste"... Bom, o fato que é esse o primeiro filme que me marcou. Na verdade, esse filme ficou parecendo um pouco Cinema Novo, ele já era um pouco Cinema Novo, não sei o quê que tinha, né?... Eu acho até que eu achei ele de novo aí. Depois, quando eu voltei para o Brasil, comecei a fazer arquitetura, essas coisas... E, depois, aí Paulo César me convidou pra fazer um filme sobre Osvaldo Goeldi, o gravador. Mas aí não deu certo. E aí Dona Heloísa convidou a gente pra fazer um filme sobre Arraial do Cabo. Aí pintou Arraial do Cabo, e foi o primeiro filme, assim, profissional. Tinha uma câmera 35mm com Sérgio Montanha, era o dono da câmera, e Joaquim era sócio do Sérgio Montanha. E essa câmera tinha sido comprada do Fellini, era uma câmera super profissional. Uma Camerflex com ótica Cook, umas lentes maravilhosas. Tinha que limpar aquilo todo dia, a lente, por causa do mar, maresia, essas coisas todas... Mas eu não tive medo nenhum, quando eu peguei essa câmera eu achei que estava realmente que eu estava andando num carro de alto luxo, tinha andando de Volkswagen até então... Eu tinha começado a filmar com uma Paillard, e essa com correções Paralax, junto com foco, era tudo automático, reflexos maravilhosos, uma sopa... E aí aprendi muita coisa com o Montanha, peguei os filtros, ele tinha uma boa coleção de filtros, uns filtros laranjas e tal... E de cara logo a gente pegou cinco prêmios internacionais com esse filme, e aí a minha vida mudou completamente. Eu disse: "Agora eu tou lascado", todo mundo dizendo: "ah, porque Arraial, porque esse filme...". Pouco depois Paulo César foi fazer Porto das Caixas, foi o primeiro longa-metragem que eu fiz . E Porto das Caixas foi... Confirmou um pouco essa coisa um pouco maldita, mas visualmente considerada bastante interessante... Uma pena que esse filme não seja um pouco ... Tinha aquele... o Arne Sucksdorff, quando me encontrava, ele me dizia: "Mário, why is all slightly blurred?" , porque eu mesmo fazia o foco, então às vezes saía de foco, aí ele tinha umas coisas assim... Aí o Ruy Guerra dizia que o filme acabava com uma névoa, que parecia filme inglês, então me deram prêmio de fotografia lá na Bahia por causa disso... Enfim, era meu primeiro filme, eu não estava esperando nada, mas aí foi uma onda assim, ja se tinha uma visão do Cinema Novo, o pessoal começou a marcar esse filme. E esse filme confirmou também algumas qualidades que eu tinha de olhar, essa coisa do olho erudito, né? E aí Joaquim Pedro já me chamou depois pra fazer Couro de Gato, já foi nos morros aqui do Rio... Acho que Couro de Gato foi antes até, foi antes de Porto das Caixas. Couro de Gato foi logo depois de Arraial do Cabo. A gente vendeu a câmera, foi um filme antropofágico, porque a câmera do Sérgio Montanha, que era maravilhosa, foi vendida pra ter grana pra fazer o filme. E aí foi comprada uma Arrizinha pequena, uma Arriflex . Sérgio Montanha ficou desesperado: "Mas Joaquim, vendeu minha câmera pra ter dinheiro pra fazer o filme!". Eu botei 500 dólares no filme que tinha recebido de um trabalho... Todo mundo que entrava pagava pra subir o morro e levar uma surra de sol danado, mas o resultado foi muito bom. E aí depois eu me casei e fui fazer análise. Análise pra mim sempre foi muito importante, porque eu acabei a análise na hora que eu fui fazer essa filmagem do O Padre E A Moça, eu considerei que já não dava mais pra continuar fazendo análise, porque era tão caro que eu ia ter que mandar dinheiro pra pagar o analista. Eu disse então: "está encerrada a análise". Eram cinco anos já que eu estava fazendo análise e foi fundamental porque eu aí descobri que a análise começa de fato quando você larga, você tem coragem de largar o analista mesmoe vai ao mundo, vai à luta, aí você começa a sentir a voz do analista aparecer nos momentos em que vêm aqueles medos, aquelas inseguranças... Isso era muito importante pra mim porque eu considerei realmente a análise ali encerrada. Não definitivamente, talvez eu possa vir a fazer. Mas naquele ciclo, acho que foi. E aí fomos lá pra essa aventura de fazer O Padre e a Moça. Eu já tinha feito antes Garrincha com Joaquim Pedro, já tinha feito também, com o Flávio Rangel tinha feito Gimba. Fui apanhado lá no meio das filmagens de Porto das caixas pra fazer Gimba. Gimba não deu certo, foi um dos filmes que eu fiz neste período que foi meio ingrato. Tinha feito também... ainda acho que foi antes de Joaquim, que foi em 65. E aí veio o golpe em 64... Essas coisas terríveis do Brasil, porque a gente tinha uma ambição e uma perspectiva de que o cinema era uma coisa muito importante para a revolução social do Brasil, pra gente conseguir transformações sociais e a injustiça social ia ser minorada através dos nossos filmes... Todo mundo se sentia ungido por uma missão. Tudo isso depois desapareceu, não ao longo dessa vida, que já lá vão quarenta e tantos anos, mas agora, recentemente, com a queda do Muro de Berlim, o mundo perdeu muito a esperança... e hoje em dia há uma falta de fé nessas coisas... Estou falando, não em termos de uma nova geração. Porque todo mundo sempre tem as mesmas ambições, que vai conseguir alterar!, que "isso é um bando de babacas que estão lá em cima, não têm nada a ver com a gente". E é mesmo, é verdade. Eles não são significativos, esses erros históricos terríveis que estão sendo cometidos no Brasil, isso não é representativo do povo brasileiros de fato. Então, são equívocos terríveis históricos, e a gente passa por vários... A revolução foi simplesmente terrível, foram trinta anos muito bem planejados para nos tirar de um rumo, assim, ascensional e ambicioso que Juscelino tinha colocado o Brasil e que o Jango queria confirmar. E que foi planejado pelos americanos minuciosamente. Eu me lembro de um artigo excelente do Celso Furtado daquela época, dizendo como era planejado esse golpe, que funções ele ia cumprir no nosso desenvolvimento social e o destino para obras faraônicas como Três Marias, não sei o quê... Nós íamos nos endividar com obras assim que iriam ficar prontas dali a vinte anos, trinta anos e isso ia criar um endividamento, e depois ia haver uma crise do petróleo que aumentaria o dólar, e essas dívidas iam virar uma bola de neve porque os juros do mundo todo iam aumentar no mundo inteiro, e nós íamos ficar devendo muito dinheiro, assim, durante anos. E ia ser o que está hoje. Ele previu tudo, sucessivamente, as várias etapas desse conto do vigário no qual nós caímos, e que vai ser difícil a gente acabar com isso sem haver um espichamento dessa dívida a perder de vista, até o ano três mil, a se pagar bem pouquinho ou então, pedir o mesmo perdão que os outros países pobres, embora nós sejamos considerados a oitava riqueza do mundo. Mas não tem jeito, se você deve trezentos milhões de dólares... é igualzinho ao cara que compra pela Caixa Econômica e, quando acaba de pagar o que devia, ficou devendo mais do que devia pelo preço da compra, por causa de uma conversão feita pela Caixa Econômica junto ao Banco de Habitação, que faz com que aquele cara sempre fique devendo...
O Joaquim comentava muito da dívida que o filme deixou, e que depois teve que fazer um filme popular para pagar tudo...
Pois é, você estava sempre pagando os juros da dívida... Porque isso, a gente, naquela época pegava dinheiro com o Banco Nacional, eles nos adiantavam o dinheiro, aparentemente com boa vontade e tal... Mas os juros, por menor que fossem, eram de 1% ou 2% ao mês, 15% ao ano. Em um ano, o filme ficou preso pela censura no Brasil... No caso do O Padre E A Moça pegou muita censura mineira, né? Teve muita reação clerical contra o filme, do bispo de Diamantina, que morreu agora. Enfim, Deus o leve em paz... Mas o quanto ele pôde chatear a gente, ele caía em cima. Teve até um encontro no meio da rua, Joaquim Pedro tava assim parado e estávamos tomando um chopinho com um primo de David Neves que era ex-prefeito. E esse ex-prefeito disse pra Joaquim: "olha lá, aquele ali é seu parente, vem andando todo de branco com aquela gravatinha. É até meio parecido contigo, Seu Joaquim". E nós fomos ver, ele tinha uma coisa meio parecida com Joaquim assim, meio magrinho... Ele sentiu que a gente estava falando dele, e ele já deu um olharzinho meio desconfiado... E aí o primo do David disse " Cuidado com ele, que ele vem a ser o promotor público da cidade, vai querer prender vocês todos, que ele odeia essa história de ‘O Padre e a Moça’. Ele vem pra cá e vai falar, você vai ver". Aí ele, veio vindo, veio vindo, veio vindo, e abriu o jogo: "Vocês são dessa equipe que está fazendo o filme?", aí Joaquim respondeu: "Mas parece que eu sou seu primo". "Se é primo, eu não sei, eu sei que vocês estão fazendo um filme que está desagradando muito ao Monsenhor, e se eu tiver oportunidade, eu enquadro todo mundo". Fez um discurso reacionaríssimo, impressionante. Então eu senti que em Minas ia ser muito difícil de se levar o filme. Houve muito preconceito, muita coisa absurda... Depois, essas coisas foram se acalmando, Joaquim conseguiu passar, teve uma mão do Braga forte, comprou um pouco o filme, por conta da linhagem de Joaquim Pedro ser primo de Vivi, que era mulher dele, enfim, a família Mello Franco ajudou muito o Joaquim a saldar esta dívida braba, que Joaquim herdou e Luiz Carlos Barreto também. Mas enfim, eu não sei como foi feito direito isso, que achei genial porque isso permitiu a Joaquim entrar por outros caminhos. Mas agora vamos dar uma pauzazinha para a gente voltar a falar do O Padre e a Moça, o filme.
Antes disso, ainda nesse início de propostas do Cinema Novo, quando vocês fizeram ‘Arraial do Cabo’, ‘Couro de Gato’, como é que estavam as propostas estéticas na sua cabeça?
As minhas propostas estéticas eram sempre um pouco de artista plástico, défoqué, como dizia o Jean Bouguide, ele dizia: "você é um artista plástico défoqué , não adianta, você vai sempre ficar pensando como artista plástico" . E aí Joaquim dizia: "escuta, a gente tá fazendo um filme, não tá fazendo gravura"... Ele ficava às vezes danado com essa mania que eu tinha de ficar elaborando muito a imagem como se fosse um mural em movimento. Eu tinha essa mania de que o cinema no fundo era um mural em movimento. E Einsenstein, que gostava muito de artes plásticas, e tinha mania de uma elaboração... Depois eu vi na França o copião do Viva México, onze horas seguidas de copião, eu vi na Cinemateca, tem umas vinte ou trinta pessoas que puderem ver isso aí... E era incrível, que aparecia o Eisenstein, ele deixava a camera ligada, então daqui a pouco ele entrava no quadro e ajeitava o ator... Depois, ele corria de novo, olhava a câmera pra ver se o enquadramento tava legal. E o Tissé ficava ali acertando as luzes. Então você via todo esse processo de elaboração da imagem feito por Eisenstein e por Tissé, e pelos os atores, evidentemente, mas era um clima desse perfeccionismo, quer dizer, uma vontade técnica muito elevada de fazer um produto ser realmente o melhor possível... Ele sempre ia descobrir uma maneira de melhorar a imagem, de criar uma riqueza maior. Ele tinha uma formação de artes plásticas muito desenvolvida, fazia desenhos, bons desenhos, caricaturas. Gostava de grandes cartunistas, gostava muito de Goya, gostava de um inglês, esqueci o nome dele agora, mas que fazia também muita caricatura... E Daumier também, que fazia caricaturas... Então ele guardou muito essas influências. Depois ele começou a estudar El Greco. Tem um livro sobre Cinema e Artes Plásticas do Eisenstein , tem um artigo longo dele sobre El Greco, ele ficou muito encantado. Aquela luz mística que o El Greco transmite, uma iluminação de dentro, uma iluminação mágica, ele estudou aquele negócio. Sobretudo muita influência de El Greco e dos maneiristas da época, aquelas figuras alongadas, compridas, a câmera sempre baixa, umas angulações, umas roupas que envolviam todo o corpo, uns gestos largos, as mãos aparecendo muito... Tem muita coisa do El Greco em Eisenstein, sobretudo nessa fase de Eisenstein radicalmente formalista dele, já quase pós- revolucionário, ele já não tinha mais tanto entusiasmo por mostrar o povo. Aquelas obrigações que a política impôs a linguagem dele, certas limitações, certos assuntos... Enfim, mas o que eu queria dizer com isso é que, nesse momento, havia em mim essa vontade de não perder o meu passado e a minha formação de ser pintor e fazer com que ela se compusesse com essa vertente em que eu tinha entrado do cinema. Então às vezes ficava meio chato mesmo As pessoas diziam: "eu quero ver o ator, o rosto do ator, o ator, a voz do ator!". Eu dizia: "Isso não tem muita importância, o que é importante é que a silhueta do ator tá muito melhor do que se botar uma luz na cara, se eu fizer isso vou estragar todo o clima em volta". Tinha umas brigas meio chatas, era uma coisa complicada. Mas Joaquim tinha muita sensibilidade.
Só com Joaquim Pedro, ou com os diretores em geral?
Com Joaquim mais do que com Paulo César. O Paulo César tinha sido namorada de Ana Letícia, que também era gravadora. Então ele ia fazer um filme comigo e Oswaldo Goeldi. E Ana Letícia tem uma formação, pelo convívio entre namorados, de uma gravadora e uma pessoa que tinha sensibilidade também com cinema... Paulo César gostava muito de gravura, de alto contraste do Goeldi. E o Goeldi foi o que nós usamos para fazer o letreiro de Arraial do Cabo, foram gravuras do Goeldi .... Então depois Paulo sentiu tanta confiança em mim que ele dizia: "agora quero plano geral, quero isso, quero aquilo", e tá acabado, ele não olhava pela câmera. Já Joaquim tinha uma necessidade profunda de examinar o quadro, quando o quadro estivesse acessível. Ele só deixou de usar quando o filme se tornou documental. Por exemplo, no caso do O Padre e a Moça , tem a fuga da Helena Ignez descendo o morro com o Paulo José, e aí eu já estava trabalhando com a teleobjetiva, não havia tempo dele acompanhar enquadramento nenhum, era eu e a realidade, eu trabalhando só no registro, passei a ser documentarista num certo momento do filme. E é muito bonita essa fase. Depois eu descobri umas variações de foco, foco no primeiro plano. Então são planos elaborados pelo olhar, eu me sentia mais livre. Joaquim gostava de marcar um plano minuciosamente, inclusive ele pegava a câmera, saía andando, carregando câmera, tripé e tudo... Às vezes eu marcava de brincadeira, eu marcava um lugar e ele acabava exatamente no mesmo lugar. Porque meu olho era mais elaborado, quer dizer tinha passado por muito mais muito mais distância, por gravuras, arquitetura, tinha trabalhado com Oscar Niemeyer, cheguei a fazer uma casa, meu olho era, digamos assim, mais elaborado... já tinha uma experiência bastante grande de gravura. Iberê Camargo, de quem eu fui aluno durante seis ou sete anos, todo dia no escritório dele...
Quando foi isso?
Desde 49 até eu viajar pra Europa, em 53. Depois voltei novamente ao atelier dele, em 54. A vida inteira, quando ele não estava no Sul, praticamente nos víamos pelo menos duas vezes por semana. Às vezes eu ia lá no atelier dele tomar cafezinho. Durante um longo período era diário. Eu era realmente um pouco... eu ajudava bastante, tirava prova pra ele e a gente naturalmente, depois de um longo período de aprendizado, teve uma amizade que durou até o fim da vida. Então, eu tinha essa formação, que era até um peso para as pessoas que trabalhavam comigo. Quem não gostava disso dizia: "O Mário é muito simpático e bom de trabalhar, mas quando ele vem com essa mania de querer fazer não sei o quê e citar nome de não sei quem, sai de baixo...". Tinham pessoas que eram até meio grossas. Eu dizia "olha, vai trabalhar com outra pessoa, tem um monte de gente boa aí, mas comigo tem que ser nessa base, dessa qualidade que eu quero dar e é uma coisa minha, meu recado é esse e estamos conversados". E até hoje, eu acho que eu sou um pouco assim mesmo, eu não perdi essa vontade de elaborar a imagem o máximo possível, embora eu reconheça que hoje em dia não é mais o mesmo tipo de coisa que se fazia... minhas preocupações visuais evoluíram. Hoje, a minha gramática visual hoje é completamente diferente daquele tempo, mas eu acho que uma permanência dessa preocupação continua até hoje, acho que numa boa. O filme do Joel Pizzini, por exemplo, Enigma de um dia, que quase ganhou prêmio lá em Veneza. É um filme em que a imagem é muito necessária para a elaboração do filme. Faz parte de quem faz o filme ter essa preocupação.
Com ‘Garrincha’ teve isso?
O Garrincha, embora o Joaquim tenha dito até numa entrevista que foi meu filme menos criativo meu, porque havia vários câmeras... Mas eu acho que a minha colocação das câmeras em campo, quer dizer, já era prevista no roteiro, eu fui co-roteirista com ele. Eu fiz a colocação das câmeras e depois o Carlinhos Niemeyer, que já morreu, infelizmente, ele usou tudo aquilo, até deu uma entrevista logo depois da gente fazer o Garrincha. Quando apareceu o resultado, o Canal 100 foi lá e colocou as câmeras exatamente no mesmo lugar, fazendo os mesmos enquadramentos e começou a fazer os filmes dele... E eu fiz uma seqüência lá naquele subterrâneo, eu gostava muito desse negócio de pouca luz, embora os filmes daquela época não permitissem muita iluminação natural. Você entra naquele subterrâneo, os jogadores se esquentando, aquela luz só de néon, uma luz esquisita, difusa, muito distante de qualquer modelo americanizante de iluminação. Aquilo era um desastre... Joaquim disse "eu não quero nem ver, você filma sozinho!". Me largou com a câmera lá e eu fiz um documentário, aliás o filme começa com essa seqüência, que eu acho extraordinária, acho que eu consegui ali exatamente uma maneira formal moderna de ver aquilo sem botar nenhuma luz, só com a luz natural mesmo. E num filme TRI X 250 asa ou 300 ASA . Mandei e veio, saiu muito bem. Embora tivesse gente chutando bola em cima de mim, com raiva, porque todo mundo queria uma graninha. Enfim, essas coisas... Quando fiz Garrincha quase morri. O Garrincha chutou a bola assim. Eu vi a bola vindo assim, senti um negócio passar assim e queimou a minha orelha (faz o gesto da bola passando rente ao rosto). A bola voltou, por cima de mim, lá do meio do campo. Ele passou a mão na minha orelha e disse: "Ô Ruço, você nasceu de novo!" e saiu correndo, as pessoas ao meu lado brancas. A bola passou aqui, ó... Se tivesse ido na minha cara, eu estava com uma super tele, ela ia atravessar minha cabeça, saía inteira aqui atrás... Essas coisas acontecem quando você está filmando, o risco é grande. Uma vez um cigano botou uma winchester na minha cabeça. Ele tinha matado vários ciganos , havido um conflito. Eu estava filmando esse cigano que era assassino, ninguém sabia de nada, e aí o cara achou que a gente tava filmando pra entregar ele. Isso, lá em Goiás, e tinham uns fazendeiros que tinham bebido. O cara pegava a winchester, e eu digo: "eu vou morrer se vocês pegarem a winchester". E o cara com o dedo na minha cara: "Vou te matar, eu te mato!". Tudo mundo lá atrás, eu dizia: "fiquem quietos aí, que eu vou conversar com ele". Ele dizendo que ia me matar, e eu disse: "Pode confiar amigo, é um filme sobre a cordialidade do homem brasileiro, e você com uma Winchester na minha cabeça, não vai ficar bem no filme, não vai ser usado não...". Tinha uns documentários meio malucos na época para mostrar as qualidades do homem brasileiro. E esse era sobre a cordialidade do homem brasileiro, e eu com um winchester na cabeça... Mas enfim, havia de tudo. Mas a gente está aí pra isso.
Vcê chegou a ler o roteiro do O Padre e a Moça antes da filmagem?
Li. Acompanhei desde o início tudo. Porque tinha essa origem no Carlos Drummond. E o doutor. Rodrigo tinha uma coisa, ele lia o roteiro de Joaquim, ele lia de noite e fazia umas observações com uma canetinha vermelha. Joaquim acordava às vezes e mostrava: "Olha o que papai escreveu ontem aqui". Dizia assim: "Joaquim Pedro, cuidado com o rocambole!". Era uma expressão francesa, rocambolesco era uma coisa que ultrapassa o humor e passa a ser um humor meio operístico, fantasioso demais. E Joaquim ficava procurando, "onde é que eu rocambolei nesse texto?"... Era muito engraçado. Dr. Rodrigo era danado, tinha um olho muito agudo.
Você chegou a ter relações com Dr. Rodrigo?
Conheci bastante doutor Rodrigo, ele era muito amigo de meu pai. Tinha uma ligação via UNESCO e o Patrimônio Histórico, e eles eram de uma época, era bastante antigo esse relacionamento. Tanto que essa moviola e essa câmera que vieram com o sueco, o Arne Sucksdorff, foi um plano urdido, vamos dizer assim, por Joaquim Pedro e David Neves. Porque eles foram conversar com papai, e eles resolveram que o melhor caminho seria a UNESCO encaminhar esse equipamento por essa pessoa via Patrimônio Histórico, pra criar um núcleo de documentação dentro do Patrimônio. E isso foi feito. Eu estava lá na França na época, e vi uma lista com vários nomes de documentaristas que queriam vir ou não poderiam vir. E aí sobrou querendo vir de fato o Arne Sucksdorff. Eu já tinha visto uns filmes dele muito interessantes, achei muito bons, pensei : "esse cara vai topar, vai ser ótimo". Aí por acaso ele topou vir. Ele foi muito útil aqui para todo uma geração, Dib, os irmãos Escorel, tanto Eduardo quanto Laurinho, Cacá, todo mundo foi aluno dele durante um período dado, até o próprio David também, quem estava podendo acompanhar as aulas dele... Eu não pude acompanhar as aulas dele porque eu já tava filmando. Mas foi muito importante. Então, essa relação entre o Patrimônio e UNESCO depois veio a dar em outras coisas... Eu acho que o próprio Limite teve uma verba, foi o primeiro filme a ser tombado, que a UNESCO conseguiu dar um dinheiro para a recuperação do filme. É muito raro um filme ser tombado pelo patrimônio... Enfim, eram coisas assim feita graças a essa relação muito forte. Depois houve essa coisa dos monumentos tombados, monumentos universais pela UNESCO, evidentemente veio uma inspiração brasileira, tombamento feito aqui de algumas coisas de Ouro Preto, que virou cidade universal. Depois Brasília, uma cidade modularmente universal- Não é Brasília que é tombada, mas ela não pode ser alterada nos seus volumes, né? Salvador tem uma parte grande também para o Patrimônio da Humanidade... Meu pai depois foi incumbido da salvaguarda do Monumento da Núbia, pelas experiências importantes que tivera com Dr. Rodrigo. Eu não sei exatamente, porque eu ficava um pouco afastado, pra deixar David... Porque David gostava muito de bater papo com papai, falava umas coisas meio escondidas, meio cochichadas, era genial... Coisas de política... Ele gostava muito de manobrar, de fazer com que as coisas dessem certo. Depois ele ficava com um arzinho vitorioso, era genial... E aí Joaquim Pedro gostava um pouco também dessa coisa de inventar uma trama que desse certo, como essa, em que veio material, criou-se esse núcleo... O primeiro filme do núcleo foi sobre o Mosteiro de São Bento, A nave de São Bento. Infelizmente desapareceu o negativo, sumiu o filme. Mas isso não tem muita importância...
O próprio Aleijadinho também já foi feito com essa ambigüidade desse negócio do Patrimônio, não com a UNESCO, mas com esse núcleo que foi criado...
Vocês se conheceram muito jovens. Como você conheceu Joaquim?
De fato, a gente se conheceu, basicamente, porque nós namoramos a mesma namorada, que foi Sarah... Basicamente foi isso. Eu era colega de Sarah, eu comecei a namorar Sarah quando estava no colégio Andrews, eu tinha 16 anos, 17 anos. E Sarah era uma pessoa muito inteligente, tinha muito entusiasmo por cineclube, essas coisas... Esse namoro durou bastante tempo, mas era uma coisa meio adolescente, uma coisa que você sabe que não vai se eternizar. Mas eu tinha um lado meio romântico, meio bobo e ficava muito entusiasmado, muito caído... E aí comecei a sentir que quando ela fez vestibular pra Física, acabou-se o colégio Andrews, eu fiz arquitetura, ela foi pra física. Aí eu ganhei de prêmio uma viagem para a Europa. Eu mantive uma correspondência, mas eu sentia que o tom já não era o mesmo... E aí quando eu voltei, a Sarah falava com muito entusiasmo de um Joaquim Pedro... Em 53, fomos passar o carnaval em Ouro Preto. Eu tava já meio abalado, sentindo que as coisas não estavam muito bem., e já tinha tido alguns sinais de que a minha saúde não estava muito boa, que eu precisava me cuidar, mas ao mesmo tempo ficava sentindo que não estava muito legal o namoro... Quando eu estou lá no hotel, dali a pouco eu procuro Sarah, olho pra baixo, aí lá embaixo estavam Joaquim e ela, tinha um banquinho lá embaixo e eles estavam se beijando... Eu tive um choque danado... Nós tínhamos ido à casa do dr. Rodrigo na véspera, e eu senti que Joaquim tava esquisito, ele saiu pra pegar umas batidinhas lá em baixo, ele pegou com uma bandeja, na mão, de repente a gente ouve um barulhão... Joaquim caiu da escada, com todos os copinhos de cachaça. Dr. Rodrigo disse pra mim: "O meu filho é muito boa pessoa, mas ele tem mal ao álcool...". Joaquim reapareceu com novos copinhos, com as batidinhas, mas muito esquivo comigo, nenhum papo. Aí eu pensei: "Bom a coisa tá ruça pra mim, eu vou-me embora". Quando eu vi essa cena, peguei minha mala e fui embora pro Rio de Janeiro. E, dito e feito, peguei logo um tífano brabo, misturado com mononucleose, quase morri, perdi 18 quilos. O pai de Sarah achou que eu estava com câncer de sangue por causa dos remédios que me deram... E eu acabei indo pra Europa, onde comecei essa história dos filmes. Acabou-se o namoro e começou o namoro dela com ele... A gente só se aproximou de fato, de uma maneira mais radical, quando eu fui fazer Arraial do Cabo, em que Joaquim assumiu a produção, que o Montanha ficou doente no meio do caminho... E nós nos aproximamos, que eu já conhecia tanto Joaquim por causa de tantos imbróglios sentimentais, e ele a mim, que a gente se associou como dois velhos amigos que se encontram apesar dos pesares. Bom, há mulheres no caminho, mas nem por isso nosso caminho será diferente do que terá de ser, porque tinha de aturar essa cumplicidade que havia de namorada querer namorar os dois. Porque claro que o ideal para Sarah seria namorar Joaquim e a mim, mas isso era impossível. Eu comecei a namorar Marília depois, aí aliviou a área, porque... Depois Joaquim ganhou prêmios, e tal... Depois de Couro de Gato ele foi pra Londres, para os EUA, passou um período lá na França, e isso também deu a ele um certo afastamento, até voltei a namorar um pouco Sarah... Uma coisa um pouco perturbadora, porque nós éramos muito jovens, e tínhamos esses caminhos mais ou menos em comum... Mas depois tudo se acalmou. Tem até uma carta muito engraçada de quando eu decidi casar, Joaquim me escreveu dizendo: "Mas você é louco, como é que vai casar? Nós cineastas não devemos nos casar. Formaremos famílias infelizes, o cinema no Brasil não tem futuro. Mas já que você decidiu casar, esse passo absurdo, eu vou fazer a mesma coisa, eu vou pedir Sarah em casamento, vamos casar todo mundo logo, que é melhor!". Ele acabou casando por procuração com Sarah, Dr. Rodrigo foi quem fez o papel de Joaquim Pedro no casamento... É isso, ficou uma grande amizade, porque tanto continuei amigo de Sarah, de quem sou amigo até hoje, como sempre fui muito amigo de Joaquim Pedro, embora houvese sempre uma certa desconfiança primeiro nos meus passos, embora tivesse muito confiança profissional em mim. Nem tanta, sempre foi muito desconfiado... Como todo bom mineiro. Me dava sempre um livro pra ler: "Você tem certeza que já leu isso direito?", era o Manual do American Cinematographer , e tal... (risos) É, e criávamos bodes, feito a noite americana (efeito para uma cena filmada de dia parecer noturna). Eu dizia: "Joaquim, acho que essa noite americana não tá muito boa", "Não, se o American Cinematographer diz, pode confiar!". Aí eu fiz uma noite americana, deu o maior bode, porque eles mandavam superexpor 3 ou 4 pontos no diafragma. E eu achando: "isso não vai dar certo...". Acabei ligando pra Líder, e falaram "Não, basta um diafragma só, dois já é demais". Uma parte nós perdemos do filme por causa dessa noite americana, inclusive era quando Paulo José foi correr atrás de uma mula sem cabeça. Ele levou um coice da mula, quebrou um dente, um ciso... Mas, enfim, foi uma coisa, perdemos material que poderia ter sido muito precioso, por causa dessa informação. O American Cinematographer. nem sempre diz a coisa mais conveniente, aos brasileiros pelo menos. Mas eu lia tudo aquilo. Mas há muito tempo eu já lia o American Cinematographer, desde Arraial do Cabo, Sérgio Montanha me deu um American Cinematographer pra eu poder acompanhar a câmera dele, ter cuidado. Mas eu nunca fui de fato uma pessoa como o Fernando Duarte, que desmontava todo dia a câmera inteira, filho de relojoeiro. Ele adorava limpar a camera inteirinha, fazia isso com carinho, com cuidado. Isso sempre me deixou um pouco... Eu dizia, "eu não tenho esse amor pelo material". É uma coisa que me escapa, eu gosto mais de um bom pincel, a câmera pra mim já extrapola a minha necessidade de mergulhar no material. Feito Saldanha, Saldanha adora uma câmera...(Carneiro se refere ao fotógrafo, montador e diretorLuís Carlos Saldanha) Eu já desmontei uma vez, quando foi necessário fui lá e desmontei, mas não faz parte dos meus afetos ficar cuidando do material. Nesse lado, eu sempre fui visto com uma certa desconfiança por Joaquim e muitas outras pessoas. "O Mário não tem essa vocação pra ter esses cuidados, ele não gosta de laboratório...". Mas quando foi necessário fazer um outro tipo de revelação, em Capitu, eu senti que era uma fotografia que precisava ter um outro tipo de granulação, de um tom mais antigo, eu fiz vários testes, descobri qual era o tempo de revelação certo, o ideal é de doze minutos, fiz com noveminutos, um filme Dupond, excelente, ficou maravilhoso. Aí o Ricardo Aranovich apareceu lá em casa: "Como é que você fez isso?. Como é que foi? Eu sinto que esse filme não tem uma revelação normal". Eu disse: "eu peguei um filme sub revelado, só nove minutos...". Mas eu nunca fui muito de ficar fuxicando em laboratório, essa coisa de aferir a câmera pra ver se a lente tá limpa. Eu sempre dei isso para os meus assistentes de câmera, e digo pelo amor de Deus, porque eu não gosto muito disso não.
Em ‘O Padre e a Moça’ você só teve um assistente?
Foi, Fernando Duarte foi meu assistente e também foi no Porto das caixas. Mas só que eu não deixava o Fernando fazer as coisas, porque eu não sabia direito o que era assistente direito, então eu fazia tudo. Quando ele queria fazer o foco, e eu dizia: "Porque você vai fazer o foco?", e ele dizia: "Mas eu vou fazer o quê então? Eu tenho que fazer o foco, Mário...". De fato, em Arraial do Cabo eu não tive assistente, então eu fazia tudo: o foco, botava filme, limpava a câmera carregava nas costas, fazia tudo. E então eu achava estranho. "Por quê que eu preciso de um assistente, se fiz um filme que ganhou 5 prêmios internacionais sem assistente? Eu preciso é de um carregador!". Mas depois eu me dei conta que o assistente é fundamental, e aprendi a usar o assistente, tive vários assistentes que depois viraram grandes fotógrafos... Pedrinho Moraes foi meu assistente, Fernando Duarte, que depois virou mestre de toda uma geração em Brasília, foi professor inclusive do Walter Carvalho. Eu digo que Walter Carvalho é um pouco meu neto, foi aluno de Fernando, então...
E a idéia de botar a câmera no ombro, a famosa câmera na mão, como é que foi?
Câmera na mão pra mim surgiu... Porque eu descobri mais tarde que câmera na mão já existia há muito tempo, inclusive o Napoleão do Abel Gance tinha câmera na mão, uma câmera enorme, amarrava uma tira de couro e saía carregando aquele elefante... Mas essa vontade de soltar a câmera é uma vontade antiga, já faz parte dos primórdios do cinema, bastante anterior aos anos... ‘59 foi quando se fez o filme. Mas aí nessa coisa de estar documentando e quando você está filmando ao vivo uma série de peixes no mar você tem que ter o tempo que tem a ação normal , não pode estar pedindo pra voltar, "Dá uma paradinha...", não tem isso. Eu comecei a me sentir preso ali no tripé. Ai eu pensei: "Vou tirar essa câmera do tripé e fazer tudo!" Peguei até um caixotinho e dei pra um cara carregar, e onde eu mandasse ele tinha que botar o caixotinho. Comecei apoiando a câmera nesse caixotinho. "Agora fica você em cima do caixotinho, que eu vou apoiar em cima da sua cabeça". Meu assistente verdadeiro era um carregador, o Levi, ótima figura... Até que daqui a pouco eu botei no ombro e disse: "Pô, essa câmera é ótima pra apoiar no ombro...". Botei a camisa no ombro e comecei a andar um pouco com ela, ter uma certa liberdade... Só que Paulo César gostava mais de plano fixo, aquela época estava completamente fora do normal você fazer planos em seqüência andando, geralmente era um quadro que você escolhia e ficava fixo. Pra fazer uma panorâmica, eu dizia "eu preciso fazer essa panorâmica, os caras estão andando, eu vou deixar eles entrarem e saírem de quadro, fica ridículo...". No final a gente acabou fazendo umas panorâmicas e depois a câmera foi se soltando um pouco mais. Mas na época, um pouco por influência do Eisenstein, havia uma grande ditadura do plano fixo, compunha o quadro e então ia ser aquele o quadro... Então as pessoas vinham andando em direção à câmera, elas vinham andando em direção à câmera e saíam do quadro, filmava de costas, mais um plano... Mas sempre quadros fixos, era muito difícil você pegar uma câmera e sair andando. Eu me lembro de um plano na praia, num filme do Cacá Diegues, um filme que tinha a Anecy Rocha, Joel Barcellos, um dos mais interessantes, A grande Cidade. Cacá pediu: "faz uma câmera aí". Eles vêm conversando e o Caca me pediu pra dar uma volta completa em torno deles, e eu fiz um troço que ficou perfeito, eu dei uma volta completa nos atores. E eu criei uma grande habilidade em fazer isso. Mas o Dib era melhor que eu, porque ele tinha uma altura ideal para a câmera. Mais baixo do que eu, e muito forte, o Dib é bem forte.Eu tenho um ombro mais alto do que o outro, uma perna mais comprida que a outra, a câmera tinha uma tendência a ficar meio do alto pra baixo, que é um enquadramento meio chato, meio pretensioso, reduz as pessoas. Então eu fiz muitos planos com a câmera assim, com a câmera debaixo do braço... (balança o braço pra baixo, como se carregando a câmera) Uma câmera meio cega... Então, com a câmera assim eu fiz vários enquadramentos meio aleatórios, pegava a câmera e levantava , comecei a fazer várias coisas um pouco acima, pra poder compensar essa minha altura excessiva... No Porto das Caixas, tem um momento em que eles andam por umas ruínas, muito lindos os planos, e era a câmera na mão, acompanhando eles... Enfim, era uma coisa que eu tentava compensar um pouco... Mas depois achei que já fiz muito plano na mão. Fiz muito comercial com câmera na mão, que eu era bom, não tinha mais nenhum problema de fazer câmera na mão. Todo mundo ficava meio arrepiado com câmera na mão: "vai tremer!", eu dizia "não...". Aí o aparecimento do Dib e o uso da câmera na mão pelo Glauber liberou a câmera na mão de uma maneira definitiva, porque o Dib era um gênio da câmera na mão e o Glauber começou a usar isso como uma linguagem característica, quase, do Cinema Novo. O plano seqüência meio abarrocado, dando voltas em torno dos atores, buscando o ator, o ator fugindo um pouco da câmera, as marcações do Glauber... Eu até escrevi uma coisa, que era quase uma análise, o diretor era mais um analista da câmera do que propriamente um diretor, ia analisando o movimento e ia falando coisas. O Dib ficava quase louco: "Eu não entendo metade do que o Glauber fala, mas vou me deixando levar pelo movimento do braço dele...". É uma outra transferência, o diretor se torna um guia da câmera. Isso criou uma linguagem muito importante para o cinema brasileiro. Quando a gente filmou depois O Padre e a Moça, tem umas seqüências em que eu fiz câmera na mão. Mas era muito difícil, porque eram umas sequências muito marcadas, era um ambiente muito pequeno, com a Helena se despedindo de Paulo José. A câmera tinha de vir pra cá, o Escorel me segurava, porque era uma câmera era bem pesada, era uma cameraflex também, mas não era aquele uso de muita ação... Se fazia um movimento e daqui a pouco parava. Se eu ficasse respirando... Esse vai e vem que o ator faz pra depois ficar parado era muito complicado com a câmera na mão, mesmo na mão dos melhores, mesmo Dib ia sofrer com isso., porque é muito desagradável parar, fazer um movimento, parar, voltar ao movimento e parar... Essa vontade que Joaquim tinha de criar um vaivém, um vaivém encontrado. Joaquim gostava muito desses planos difíceis, mas era muito pouco barroco, Joaquim era mais clássico, não gostava de movimentos aleatórios... Ele ficava muito... sofria. Tinha uns planos do Paulo José em que ele dá uma volta em torno da câmera. Eu prendi ele com uma corda, Paulo José tinha que andar sempre naquela mesma distância. Então eu sentia a corda esticada e estava bom, era por aí. Joaquim já ficava mortificado se mudasse um pouco, tinha que ser do mesmo tamanho, do mesmo enquadramento. Ele tinha essa necessidade de controle da imagem muito grande. Ele ficava meio desesperado quando o filme entrou numa fase documental, O Padre e a Moça, e eu fiquei muito senhor da imagem. Não havia como, naquela época, o ideal é que já tivesse vídeo pra se ligar na câmera, mas não tinha, então eu me salvei e pude fazer mais livremente, se não ia ser uma gritaria terrível... Mas, enfim, ele perguntava "Ficou bom?", e eu dizia "Ficou ótimo, pode deixar".

Como vocês faziam para ver o copião lá? Mandavam pro Rio?
Mandava pro Rio, pra revelar, e voltava, a gente só via o resultado três dias depois. O Barreto via primeiro, mandava fazer um relatório, pra ver se tinha algum problema de imagem, de ator ou coisa assim... Depois a gente recebia esse material e ia ver, lá em Diamantina, num cinema... Então, tinha sempre essa surpresa dessa defasagem, né? Tinha que ver um pouco na confiança... Mas nessa época eu já conhecia, já sabia muito bem se tava tudo certo ou não estava.
Como foi o problema dos primeiros dias de filmagem?
No início, quando a gente viajou, nós pegamos uma primeira etapa de... porque Joaquim tava... quer dizer, tinha feito uma revisão nas lentes... essa câmera foi descoberta pelos mineiros na Escola de Agronomia em Belo Horizonte. Era uma câmera desativada, essas coisas aqui do Brasil: você importa o material e não usa, encosta, deixa lá, e de repente alguém descobriu que tinha essa câmera. Foi mandada para o Rio, foi feita uma revisão na câmera, pelo Veras, pelo pessoal todo, disseram que ela estava perfeita... Mas aí a gente pegou uma viagem danada com essa câmera, uma viagem muito braba, num jipe do exército, aquilo sacudia... A estrada era de pedra, uma pedra aqui e outra ali... De São Gonçalo pra Diamantina era terrível, duas horas e meia de viagem, quando chovia eram três horas... Era tão complicado que, eram dois jipes, um dia um jipe bateu no outro, vieram um de um lado e outro de outro e BONG!... Conseguiram essa façanha... Então, quando chegou o material lá, eu fui fazer uma revisão, e quando ia fazer o foco com a lente 28 não era o foco que eu estava medindo, não estava correspondendo. "Olha Joaquim, essa lente ...", "Não, mas, isso aí, eu mandei fazer uma averiguação, deve ser o seu olho, deve ser isso ou aquilo...", eu falei "Isso é câmera reflex, eu já filmei com câmera, se não tá no olho, não usa que não vai dar certo". Cismou de usar essa lente 28, não lembro se era uma 28 ou uma 25. E uso, mandamos para o Rio e saiu tudo fora de foco. Eu falei "Não adianta, câmera Reflex não adianta discutir, o que você está vendo no olho é o que vai sair como resultado". Enfim, perdemos isso e perdemos esse tal negócio da mula sem cabeça, da noite americana. Aí as informações do American Cinematographer. não coincidiam com as ambições da Líder e dançou mesmo... Além do mais, fizemos algumas coisas que... mas aí também não funcionavam porque... tinha um enterro... Pela inexperiência do primeiro roteiro, Joaquim escreveu um roteiro mais longo do que precisava de fato. E tava começando a usar plano-sequência, primeira vez que Joaquim usou plano-sequência de fato foi no O Padre e a Moça, e teve muitas surpresas quanto ao tempo interno dos planos, né?... Depois, quando Escorel foi montar, ele verificou que às vezes o plano sequência ficava mais longo do que precisava, então teve que cortar muito plano-sequência, e fazer essa montagem de plano sequência para plano-sequência é complicado, muito poucos planos de cobertura foram feitos. Embora Joaquim tivesse uma certa tendência... quando o plano parava de dar certo ele retomava daí, fazia umas emendas naturais pra não perder muito filme. Mas, mesmo assim, teve problemas de duração, na primeira montagem o filme acabou com umas três horas e tanto, foi preciso reduzir. A figura do Fauzi foi muito reduzida no filme, e outras coisas também, foi necessário cortar bastante, porque esse tempo interno é uma coisa que você pega com a prática, o tempo interno do plano... Essa coisa do plano-sequência é complicada, se bobear o tempo se estende. Então foi isso que aconteceu, mais ou menos.
E como foi a preparação das filmagens em São Gonçalo?
A gente passou um período antes, nós chegamos lá... E esse lugar é um lugar muito bonito, São Gonçalo, Diamantina ficava meio longe, e, como não tinha nem luz elétrica, nem água encanada, tinha rio, a gente tinha que tomar banho de rio. E água de rio é um problema, tinha uns filtros, tinha água mineral. E Joaquim pediu pra eu fazer umas obras lá, eu tinha feito arquitetura, então eu projeitei lá, fiz dois banheiros, que acabaram sendo os banheiros públicos, da cidade inteira, todo mundo usava esses banheiros, virou um inferno (ri)... Fiz uma obra também da ponte, uma reforma na ponte, pro jipe passar. Inclusive, Paulo José também me ajudou muito nessa parte, porque ele fez arquitetura e gostava muito de mexer com obra, me ajudou nisso aí também.
E o trabalho de cenografia?
Essa cenografia foi o seguinte: fazer um levantamento do que tinha nas casas, nas casas melhores, quer dizer, nas mehores ou nas piores... pra poder usar os móveis, quando a gente fosse filmar dentro de casa, o ambiente ter um repertório de coisas pra utilizar. E eu usei muito as próprias decorações do lugar, com algumas interferências a mais, pra ficar uma coisa mais... Eu lembro até hoje do Anísio Medeiros dizendo pra mim: "Você botou uma rede na parede, que essa rede não estava lá não, você botou porque a parede era muito branca e ia estourar aquela parede. Aquela rede não estava lá não". Eu disse: "estava sim, era a rede de crochê da família". Ele disse "Crochê da família? Vai mentir pra outra pessoa, pra mim você não mente não". E, de fato, aquela rede não estava lá, como ele falou. Eu fiquei muito envergonhado, como é que eu dou uma dessas de uma...(ri) Botei porque ficava muito branco. Tinha uma janela que dava às vezes dava um sol imenso, uma luz muito branca. Pra não pintar a casa de azul, embora o nosso filme fosse preto e branco, usei esse artifício de botar uma redezinha que, enfim, quebrava essa coisa. Mas é o único momento em que eu sinto que houve algo de fora do normal, dos usos locais... Mas o resto, foi muito aproveitado, com as coisas de lá. Então acho que ficou legal.Mas era muito trabalho fazer duas funções, fazia câmera, luz e cenografia, vira e mexe eu mexia na cenografia, porque a luz precisava mudar de lá pra cá... Então dava muito trabalho de fazer...
Qual o equipamento que você usou pra ter energia lá? Usou muita luz artificial?
A gente levou um gerador, levamos um gerador, um gerador que aguentava no máximo uns 15.000 watts. Quando ligava três refletores de 5.000 já começava a gemer... Então ligava dois de 5.000, dois de 1.000 e um de 2.000, usava no máximo 14.000. Então, pra fazer noturna, de noite, preferi usar mais 2.000... Era um material razoável pro que era, né? O filme foi todo feito com o double X, 200 asa, de noite acho que era 180. Ou 150 de dia e 180 de noite, uma coisa assim... mas a gente levou numa boa, quer dizer, o filme não... Teve só alguns problemas nuns planos gerais, o padre todo vestido de negro, só com a gola branca, e as luzes eram muito insuficientes, não dava pra fazer um contraluz bom pra recortar ele, andando todo de negro à noite. Tem um momento dado, que eu me lembro até hoje, que eu fiquei desesperado, em que ele vai andando e só fica aquela gola branca recortando ele durante a noite, e eu dizia "Eu preciso de uma contraluz!". Mas não tenho, porque eu não posso ter, não há, como é que eu vou botar o contraluz, com um gerador em que um refletor de 5.000 não está rendendo nem 3.500?. Então ficava uma luz ruim pra planos à noite em ambientes grandes. A gente botava muita luz nuns postes, fingindo que havia uma luz que não tinha, não é? Não dava pra fazer uma luz mais forte. Eu lembro que tinha uma luz lá dentro do quarto de Helena Ignez...
Mário, como era o convívio com a população local?
Foi tão revolução pra eles que David Neves voltou lá, acho que 20 anos depois, com Maria Clara Mariani, e foi fazer uma visita de São Gonçalo pra ver o que tinha sobrado do filme, de memória. Quando ele falou do filme, todo mundo lembrava tudo, e aí mostravam a rua, o lugar. "Ali que Helena morava, naquele quarto". Sabiam tudo de cor, o mapa do O Padre e a Moça estava marcado na vida daquela cidade como se fosse um circo que tivesse passado e levantado uma euforia, pintou uma graninha pra eles e coisa e tal, né? E, além disso, a magia que o próprio cinema tem... Eles devem ter visto o filme. Não me lembro se Joaquim levou o filme pra eles verem, mas acho que sim, quando levou pra Minas... Eu estava filmando outras coisas nesse período, mas tenho a impressão de que houve uma sessão lá. Porque a gente usou muito a população de lá, inclusive deu muita celeuma, sobretudo com a ala mais radical do grupo do CPC, Vianinha, um grupo mais comuna mesmo, radical... Um dos postulados era que não podia mostrar o povo de forma negativa. E nesse filme tem muita gente com bócio, aqueles papos grandes. E aí Joaquim disse "as pessoas são assim, eu vou usar assim, eu não vou ficar trazendo figuração pra cidade, é um vexame". Inclusive, oitenta por cento das mulheres da cidade tinham bócio, que é falta de iodo, eles não comem iodo, não tem sal, não tem... "Eu não tenho medo de mostrar assim mesmo porque que eu mostrar a realidade", e fez, usou... Mais tarde eu tive uma discussão com o Vianinha, lá na casa da Nara Leão, o Vianinha veio com uma teoria de que o Joaquim não podia mais fazer filme, porque tinha mostrado o povo de uma maneira inadequada, tinha traído a causa... Eu disse: "Olha, Viana, o negócio é o seguinte, você é que está com uma visão de fascista. Tem que desentranhar esse fascismo de dentro do comunismo de uma vez por todas. O que acontece é o seguinte, eu não posso fazer cinema porque sou filho de embaixador, Joaquim não pode fazer cinema porque é filho de Dr. Rodrigo Mello Franco e então nós somos de direita de nascimento, então nós não temos o direito de fazer filmes de esquerda, porque nossa visão já é uma visão deturpada, formalista. Eu acho que você tem que assumir uma vez por todas que a presença das influências eisensteinianas na nossa cultura , que é o que tem de melhor na cultura russa, em vez de ficar recebendo ordens absurdas de Moscou. Tem uma corja lá instalada fazendo uma arte absolutamente medíocre, responsável pela morte de uma porção de figuras ilustres da Rússia, Maiakóvski se matou...". Foi uma pauleira, ele queria me dar porrada, eu disse "Viana, vamos acabar com isso". E aí no outro dia, depois, porque, aí eu fui me embora, no outro dia ele foi lá no meu ateliê, o pessoal do Partidão resolveu mandar ele ter uma conversa comigo, sobre como agir...(ri) E aí nós demos uma volta pelo quarteirão, ele disse "quero ouvir todas as suas opiniões"... Então eu dei minhas opiniões, "Se for juntar todo talento, tem o específico de cada um, todo mundo aqui é de esquerda, como tem que ser, mas não pode ter uma cartilha moscovita pra nos orientar, que não vai dar certo. O Joaquim quer mostrar o Brasil do jeito que ele vê. Vamos tentar não ser radicais entre nós, eu acho que é fundamental para o bom andamento desse movimento, se temos ambições de irtervir nessa realidade temos que respeitá-la", e por aí foi esse papo. E aí ficou tudo muito bem, depois Joaquim até entrou para o Partidão, enfim... O fato é que esse peso dessa visão existiu durante um período.
E como é que foi a repercussão do filme na época?
Eu acho que o filme teve um público muito bom entre os intelectuais, quer dizer, uma crítica muito boa também... Uma receptividade, assim, até fora do esperado por pessoas ilustres, como Otto Lara, os mineiros de boa formação adoravam o filme, Fernando Sabino, Hélio Pelegrino, enfim... O próprio Carlos Drummond acho que gostou, com algumas restrições, a parte escrita por Joaquim ele não era muito entusiasta, mas ele gostou da hora em que o poema dele explode dentro do filme... Agora, o cinema nacional nunca recebeu boa crítica dos críticos mais especializados da época. Ainda era o período em que o Muniz Vianna fazia crítica, tinha o... A crítica era muito anti-brasileira, os bons textos críticos vinham sempre de Alez Viany, Paulo Emílio Salles Gomes, que tinha um carinho muito grande pelo cinema brasileiro... Mas você podia contar que ia levar pancada de 80% dos críticos, que tinham ligações e admirações pelo cinema americano e achavam essa aventura do Cinema Novo uma coisa absolutamente absurda. Como? Se eles não tinham conseguido, como? Como, embora o cinema brasileiro tenha feito O Cangaceiro e tivesse tido Humberto Mauro... Mas em nenhum momento tinha conseguido ultrapassar um público muito limitado, não tinha repercussão internacional, a não ser o Anselmo Duarte com o Pagador de Promessas, O Cangaceiro, que ganhou prêmio em Cannes. Que mania era essa desses meninos querendo botar as manguinhas de fora e fazer cinema no Brasil!... Coisa praticamente impossível, Lúcio Cardoso tinha tentado e não conseguiu, Alex Viany conseguiu fazer um filme ou dois... Enfim, todo mundo ficava meio perdido nessa aventura, e vinha esse bando de rapazes petulantes tentar fazer cinema aqui dentro. E ainda mais se dizendo isso e mais aquilo, Glauber Rocha abrindo a boca e dizendo os maiores desaforos para essa crítica podre, pondo o Brasil em questão... Então era uma coisa muito audaciosa e isso tinha que ser cortado logo de cara, porque senão... Me lembro de uma crítica do Cláudio Mello e Souza, que era nosso amigo e entrou inclusive em Arraial do Cabo, prevendo nossa vida inteira, prevendo pra mim e pra Paulo César o pior dos futuros, que não íamos conseguir fazer filme nenhum... Graças a Deus era uma previsão errada, eu fiz quarente filmes, trinta e cinco longas metragem, mais de oitenta curtas, e ainda estamos por aí... De modo que, apesar dessa má disposição da crítica e essas previsões pessimistas, a gente conseguiu fazer uma carreira bastante razoável, internacional mesmo, inclusive o O Padre e a Moça foi pra Berlim e foi muito bem recebido pela crítica do ponto de vista da imagem. Coisa que deixou Joaquim um pouco estomagado, porque ele ficou meio zangado, disse assim: "Eu não faço filme pra botar azeitona em empada de fotógrafo!". Foi um rompante de Joaquim, de mau humor, por causa das críticas favoráveis à minha fotografia e não tão favoráveis ao filme de uma maneira geral. Tinha toda razão, eu teria dito a mesma coisa se tivesse dirigido um filme, dava uma banana pro fotógrafo. Pô, faz esse esforço todo pro Mário Carneiro ficar ganhando elogio da crítica?... Então isso irritou ele...
É conhecida a frase de um fotógrafo de que, se você sai do cinema achando a fotografia ótima, é porque o filme é ruim.
Havia muito esse negócio, o diretor é genial, a fotografia é boa mas o filme é ruim. Era a trilogia do cinema brasileiro. Mas as críticas sempre foram muito impiedosas com a gente. Pegava o mínimo defeito... Paulo César ficava maluco, "tem um morto que respira", um belo filme, que é a Casa Assassinada, tem um morto que dá uma respirada. Eu não quis cortar, eu montei esse filme, não quis cortar. E ficou isso, o morto que respira, até hoje é um filme estigmatizado por um defeito de uma maneira inacreditável. Como diria Tom Jobim, "brasileiro não gosta que brasileiro faça sucesso, tem inveja". Então todo mundo baixa o cacete em tudo que tem algum sintoma de qualidade, você pode se preparar que o pau vai comer mesmo.
Com relação à fotografia do O Padre e a Moça, como foram as diferenças estéticas de fato?
O que aconteceu foi o seguinte, Joaquim vinha de uma experiência anterior, que foi uma passagem rápida quando fez Rebelião em Vila Rica como assistente dos irmãos Santos Pereira, gêmeos. E isso marcou um pouco Joaquim, com uma certa tendência coisa de usar luz de estúdio como uma coisa obrigatória . Porque Rebelião em Vila Rica acabou com uma cena dos eletricistas querendo bater na equipe inteira usando umas toalhas molhadas, num lugar onde eles tomavam banho. Eles se rebelaram e quiseram dar uma surra na equipe, uns italianos parrudíssimos, e eles batiam com umas toalhas molhadas... Joaquim contou isso horrorizado, porque eles tinham trazido arcos voltaicos (equipamento de iluminação de cena) dos estúdios da Maristela pra ser usados em Ouro Preto e tinham que subir ladeira. Os caras não agüentavam subir na mão, arco voltico pesa que é um horror, e nenhuma infra-estrutura pra fazer isso, caminhão. Então eles fizeram uma rebelião. Acabaram aumentando os salários e dando infra-estrutura... Essas luzes eram de estúdio. Eu não posso fazer um filme com esse equipamento, como eu fui fazer depois o filme do Flávio Rangel, tinha uma produção paulista, aí a gente usou arcos voltaicos em cima do morro. Porque aí eu tinha feito um planejamento uma semana antes, sem os eletricistas sofrerem uma super carga de trabalho. Mas esse é um trabalho que foge do estilo, é uma visão que o Cinema Novo jamais vai assumir, porque vai onerar o filme como uma barbaridade, para um segundinho de plano geral, só pra dizer que somos capazes de fazer, não vai ter nenhuma influência na história. Favela é vielas, são descaminhos, são desencontros. Não é pra você ter planos gerais como em western, o mocinho tá lá em cima vendo plano geral do Grand Canyon. Mas, enfim, se fez... Mas esses equívocos com luz entranharam um pouco a formação de Joaquim, e ele ficou reticente com esse despojamento que eu tinha de fazer as coisas com pouca luz. E ele atribuía isso ao amadorismo da minha formação: "Você tem uma formação de cinema amador, é preciso ser profissional". O profissional era o impossível, o que não se podia fazer era profissional, era sempre o impossível. O que você podia fazer com facilidade era coisa de amador. E eu fincava pé, com meu olhar super educado, que era possível sim, que nós íamos fazer com pouco recurso e fincava pé nesse negócio, então criava zonas de atrito. Eu tinha de usar muita silhueta, a luz como ela era mesmo, com pequenos acréscimos de luz, e fazer uma releitura do cinema. Cinema, quando está funcionando é sempre uma reinvenção. Tinha um amigo meu francês que dizia: "Ô Mário, quando você está fazendo cinema no Brasil, você reinventa o cinema?", "Reinventei", "Ah, então deve ser bom". Porque sem reinvenção o cinema não vale nada, ficar copiando modelo... E falava muito bem dessa fotografia do O Padre e a Moça. "Você reinventou o cinema?". Acho que sim, eu tenho certeza que sim. Graças a essas audácias de você fazer o inesperado... Depois, Joaquim, vinte e cinco anos depois, quando ele reviu o filme no Festival de... acho que foi Nanterre ou Rotterdam..., prestava uma homenagem a ele, ele chegou lá em casa com uma garrafa de vodka. "Vamos tomar juntos essa vodka, que eu vim aqui pra te cumprimentar vinte e cinco anos depois pela fotografia do O Padre e a Moça, que eu vi agora e achei realmente muito boa". Vinte e cinco anos depois!...[Nota do Editor: A mostra em homenagem a Joaquim Pedro aconteceu em 1983, dezoito anos depois da produção de "O Padre e a Moça] Eu achei genial. Ele podia nunca mais ter falado no assunto, mas ele foi lá. "Realmente foi muito melhor essa sua opção, e o filme tem uma linguagem que se fechou em torno daquelas soluções de sombra e luz, o negro amor de rendas brancas do poema, você usar assim, eu acho que isso aí de fato foi muito audacioso, e vim aqui pra tomar uma vodkinha...". Ele adorava tomar uma vodkinha. Então, diante desse aval de Joaquim, eu ouso dizer que foi uma aventura que deu certo. Revisto vinte e cinco anos depois, aí o diretor decidiu que eu tinha razão nas minhas opções. Ele estava muito interessado na valorização dos atores, nessas coisas como diálogo, e essa coisa de direção de ator para um diretor é muito importante. Ele gosta de ver o olhar, inventar um laboratório e ver o resultado. Como eu não dava muito bola pra essas coisas, essas minúcias... Os atores apareciam quando tinham que aparecer e naturalmente ficaram... Os atores estão muito bem dirigidos, Joaquim era muito bom diretor de ator. O que não me impedia de obscurecer certas zonas que ele achava que tinham que ser mais claras. Eu achava que as meias tintas e a sombra eram a melhor opção.
Queria te perguntar sobre a casa...
Ah, a casa da rua Nascimento Silva 190!... Aquilo ali foi o seguinte. Quando nós ganhamos alguns prêmios do Carlos Lacerda, criou-se a CAIC, o cinema nacional se organizou. Esses filmes já tinham feito um certo sucesso internacional, Arraial do Cabo já tinha ganho um a porção de prêmios internacionais, O Padre e a Moça foi bem recebido, também o Garrincha, o Glauber já tinha feito Deus e o Diabo, Nelson Pereira já tinha feito Vidas Secas. Então, nos anos 65, 66, 67, houve um volume de cinema de boa qualidade. E aí o Zé Luis Magalhães Lins influiu junto ao Lacerda para que se criasse a CAIC. Depois saiu, mas entrou o Gugu Mendes, que era ligado ao movimento anticomunista, recebia verbas anticomunistas, e era marido da Yoná Magalhães, que já tinha feito o filme do Glauber. Então houve um consenso de se deixar o Gugu lá. E o Gugu Mendes ia conseguir uma verba pra gente acabar os filmes que já tinham sido feitos. E com isso se criou alguns prêmios. Enfim, um reforço de caixa... O cinema estava ótimo, mas sem um tostão no bolso, todo mundo estava furadaço, todo mundo devia ao Banco Nacional. Era uma maneira também do Banco Nacional receber um pouco de grana desse seu passado de ajudas... Foram criados esses prêmios, eu ganhei prêmio por Arraial do Cabo, Joaquim ganhou prêmio pelo O Padre e a Moça, por Garrincha. E juntamos esses prêmios todos e deu pra Joaquim fazer uma obra na casa dele, um andar acima do Dr. Rodrigo, ele morava na casa do Dr. Rodrigo. Quer dizer não mais nessa época, que ele já tinha casado com Sarah, e Joaquim tinha alugado um apartamento que tinha sido do Chico Alvim ali na própria Nascimento Silva. Ele ficava com um dos quartos da casa lá de baixo. Clarinha ainda não tinha casado com Chico Alvim. E o fato é que eles disseram: "faz um plano aí pra gente ver o que que pode dar, quanto pode custar". E eu estava muito ligado naquele tempo, recuperando a minha vontade de ser arquiteto. E o meu sócio, Homero Leite, era um excelente arquiteto, o primeiro aluno da minha turma. Depois, ele desenvolveu dois projetos, o do Banco Boavista e o do Jóquei Clube, ele trabalhou muito tempo com Lúcio Costa, ele desenvolveu o projeto todo da Manchete com o Oscar Niemeyer, era uma pessoa que tinha uma excelente formação, sempre melhor aluno da turma.
Ele cismou comigo, era muito boêmio, gostava de um whisky, bater um papo à noite. Então eu recuperei esse entusiasmo pela arquitetura. Recuperei não, na verdade criei esse entusiasmo. De fato, era a primeira vez a dar valor aquelas coisas todas, que é uma linguagem bem diferente da do cinema e tem um dado rigoroso que me agradou muito, esse rigor do Lúcio Costa... E ao mesmo tempo tinha um contraponto, a extrema liberdade que Oscar Niemeyer usava pra fazer as coisas dele, as curvas... Então eu descobri que a arquitetura era um mundo que me interessava também bastante. E comecei, tinha feito um projeto já de uma casa... Fizemos muitos projetos, o Homero e eu. Mas levamos os maiores trambiques, as pessoas mais incríveis, que pediam projetos e não usavam... Porque achavam que arquitetura não precisa pagar, é só um pedaço de papel. E aí pra essa casa de Joaquim eu fiz um projetozinho, que era mais ambicioso do que ficou, porque saía muito caro...
O primeiro andar ficava mais baixo, depois tinha uma janela de vidro aqui que já daria para... a minha vontade era que se visse a Lagoa lá de cima. Ficava com dois ambientes com uma vista pra Lagoa, era bonito o projeto. Eu me lembro que a Lotta Macedo. Soares foi lá e perguntou: "de quem é esse projeto? Quem é esse novo talento em arquitetura?". Achei até engraçado, porque nunca me ocorreu ser um novo talento em arquitetura. Tinha o Sérgio Bernardes, e tal... Mas aí, Joaquim disse: "não vai dar pra fazer, porque é caro, achou também que ia ser difícil limpar os vidros". Então, acabei simplificando, e depois acabou ficando uma coisa bem mais simplificada, pra fazer aquela escada, porque eu tinha feito uma ligação que vinha subindo depois do apartamento da Dona Graciema, juntava as escadas, mas isso foi eliminado. Joaquim resolveu separar mesmo, fazer uma outra escada, então quem completou essa obra foi o irmão do Afonsinho Mello e Franco, que ganhara dinheiro da prefeitura, o Chico Mello Franco. Então ficou um projeto um pouco híbrido, mas muito simpático. Ainda teve um acréscimo feito por Anísio Medeiros quando eu estava fora, que foi fazer o quarto dos meninos em cima da sala de jantar, foi feito quando os meninos nasceram, naquela parte de baixo ali... mas ficou muito legal. Seria a mesma coisa que eu teria feito se tivesse trabalhado sozinho, porque nós éramos muitos amigos, achei que aquele projeto ficou bom, muito agradável. A casa se prestava muito bem com as organizações mentais de Joaquim, ele gostava de muita gente em volta. Um ambiente generoso, uma coisa ampla. Foi muito agradável...
Aí, depois do O Padre e a Moça , você e Joaquim trabalharam juntos no seu longa-metragem.
É, fiz Gordos e Magros... Depois do O Padre e a Moça, ele disse: "Olha, Mário, acho melhor nós não trabalharmos durante um tempo juntos, nos não estamos mais nos entendendo bem, você tem seu ponto de vista, eu tenho o meu, você não é propriamente o fotógrafo dos meus sonhos", ele disse isso. "Joaquim, você tem razão porque você também não é o diretor dos meus sonhos". Então cada um resolveu ser desaforado com o outro. E aí o Padre e a Moça criou uma certa linha divisória, porque depois ele resolveu fazer Macunaíma... Ele me chamou. Esses desaforos são normais depois de quatro meses de filmagem em que a gente convive sem água, sem isso. E os atritos ficam normais. O filme, seja ele qual for, quando o tempo se alonga sempre tem uma crise, sempre tem pontos de desencontro. Mas isso não nos afastou, pelo contrário, nós continuamos amigos, embora eu tenha reconhecido que Joaquim tava precisando trabalhar com outros tipos de... E ele veio em Macunaíma com o negócio de fazer um filme que fosse a anti-estética, ele achava o O Padre e a Moça um filme formalista, e ele resolveu fazer um filme anti-formalista. Eu disse pra ele: "Olha, Joaquim, anti-formalismo ainda é uma espécie de formalismo, isso é uma bobagem, se você quer filmar com espontaneidade é só trabalhar com luz natural, eu não sei se é esse Macunaíma. que você vai fazer". Aí ele me chamou e eu dei uma opinião de como faria o filme, ele disse: "não, não quero isso". Chamou o Ricardo Aranovich pra saber como ele faria, também não. Aí tava o Guido Cosolich, que tinha feito o filme do Walter Lima Júnior, Brasil, ano 2000, e tinha inventado um negócio chamado tropicolor, que era usar os filmes da Kodak com a nossa luz bruta, sem nenhum apoio de rebatedor, deixando rolar... Valorizando o rosto do ator e o fundo seja ele qual fosse, ficaria mais claro, segundo as circunstâncias de cada momento. E assim foi feito Macunaíma, Joaquim gostou muito, ficou bem interessante e tem uma cenografia extraordinária do Anísio Medeiros, que serviu pra poder segurar essa coisa meio rude da luz , foi amparada por uma alta sofisticação da cenografia... Se por um lado, o filme ficou informal pelo lado luminoso, ele ficou super formal pelo lado da cenografia do Anísio e fizeram um trabalho altamente enriquecedor... Não adianta dizer que é um filme informal, porque não é. É um filme super requintado. Agora, a luz dele é uma luz propositadamente abrasileirada, porque os filmes não foram feitos pra nossa luz, foram feitos pra luz de estúdio, luz europeizada. Mas aqui se comportam muito galhardamente, como se viu. Agora, pra chegar... isso levou a outros caminhos. Porque, depois, Joaquim resolveu trabalhar com Pedro de Moraes, porque Pedro de Moraes era meu assistente. Com essa dupla ele foi fazer Guerra Conjugal. Com Anísio criou-se uma grande amizade e também uma relação muito importante com a obra de Joaquim E pra Guerra Conjugal Joaquim resolveu botar Pedro de Moraes, que era meu ex-assistente, e que aprendeu comigo muita coisa de cinema. O Pedro tem uma grande sensibilidade, grande fotógrafo...
Mas você chegou a mudar a decupagem dele?
Isso aí aconteceu uma vez, num plano. Foi o seguinte, porque Joaquim tinha sempre essa tendência a botar os atores na luz, e aí ele disse: "vamos fazer essa seqüência aqui, Helena Ignez vai estar conversando com Mário Lago, Mário Lago vai estar deitado na cama, ela vai sair de quadro, você vai continuar no Mário Lago que vai continuar falando um longo texto e ela vai ficar fora". bom, eu estava lá, mas quando Helena saiu, estava tão bonito, porque a câmera estava pedindo pra seguir. Tem que ficar a voz em off, ela vindo, tirando o vestido de noiva de dentro do baú, era muito mais interessante do que ficar no Mário Lago falando. Mas eu não pensei nada disso não, foi o instinto que me fez levar a câmera assim. Quando eu vi, eu disse: "ih, errei, mas agora eu vou ficar quieto". Todo mundo viu e ficava fazendo cara pra mim. Eu disse, "agora vai até o fim". Aí o Mário Lago falou aquele bifão enorme, ela virou pra ele, ficou excepcional. Mas aí depois, fizemos a cobertura do outro, mas Joaquim disse: "Claro é uma bobagem minha, ia perder essa ação toda que é linda, porque ficou muito mais bonito". Mas eu nunca tive a intenção nem de estar contrariando as intenções, só queria fazer a coisa da melhor maneira possível . Quando eu sentia que era uma coisa que aumentava a qualidade, que ficava mais expressiva, vamos fazer assim também. Pra você escolher, ter duas opções, eu sempre me propus a fazer uma série de coisas. Mas isso aí é complicado, porque esse diálogo entre fotógrafo e diretor naquele período era muito complicado, porque você era a primeira pessoa que via o filme, não havia vídeo. Aí o diretor ficava sempre olhando pra sua cara dizendo: "e aí, que tal, que tal?", ele tinha visto fora da câmera, mas não no enquadramento, então isso gerava uma série de mal entendidos, um certo ciúme. Mas isso aí é tão natural, todo mundo passava por isso . Saiu até uma matéria no Cahiers du Cinéma sobre a relação diretores-fotógrafos, era uma coisa clássica. Mas isso levou a um certo afastamento de Joaquim, que foi uma coisa assim da própria vida, que levou ele a trabalhar com Pedrinho, que estava em pleno desenvolvimento como diretor de fotografia. O espaço aqui no Brasil não era muito grande, então se você via alguém de talento você tinha que dar chance. Pedrinho se saiu muito bem, fez Os Inconfidentes mesmo e depois fez a Guerra Conjugal, são dois filmes que ele fez com Joaquim. Eu ainda prefiro Guerra Conjugal aos Inconfidentes, esse eu acho que tem umas coisas...
O Aleijadinho...
O Aleijadinho é um filme que eu gosto muito, depois o Jorge Monclar veio com aquele negócio de zoom que vira manivelinha. Mas Pedrinho foi desde o início muito importante. Depois ele passou para o japonês pra fazer o último, que acabou sendo o último, que foi O Homem do Pau Brasil. Porque foi feito por um japonês lá de São Paulo.
E tem o episódio do Coisas Eróticas...
Vereda Tropical, que eu nunca vi, por incrível que pareça, eu nunca consegui ver. O que aconteceu então foi o seguinte, aí Joaquim começou a trabalhar com Pedrinho, foi se dando muito bem... Aí eu tava escrevendo o roteiro do Gordos e Magros. Esse roteiro é um resultado da minha análise, porque comecei a escrever esse roteiro quando eu fiz cinquenta anos, eu estava filmando lá no Rio Grande do Sul, um filme sobre o Pontal da Solidão, aí eu escrevi a primeira versão desse roteiro, em 70. Mas só consegui fazer o filme em 76, demorou seis anos. Aí, eu aprimorava o roteiro. Até que chegou um ponto que o Anísio Medeiros, que eu tinha chamado pra fazer a cenografia, ele disse assim: "Mário, só tem uma pessoa que pode fazer essa produção desse filme, e ele vai fazer, eu vou telefonar pra ele, porque ele tá te devendo isso, é Joaquim Pedro". "Mas Joaquim não está podendo fazer esse filme...". Ele ligou pra Joaquim, que pediu: "deixe eu ler esse roteiro". Joaquim me ligou no outro dia encantado: "pôxa adorei esse roteiro, só que eu quero fazer isso!", "Joaquim , esse roteiro sou eu que vou dirigir, eu quero que você faça a produção". E ele: "Eu fiquei rindo a noite inteira, eu e Cristina adoramos", "Vamos fazer o seguinte, você vai ser produtor, você vai me ajudar, é o primeiro longa-metragem que eu vou dirigir". Atritos continuaram acontecendo, mas, enfim, se acompanhava com um certo know-how, não era a primeira vez... Mas Joaquim dizia: "é que eu queria estar dirigindo esta seqüência! Eu ficava doente por não estar dirigindo!"... Aí depois ele teve uma briga com o produtor do Homem do pau Brasil e me disse: "agora eu te entendo quando você brigou comigo, realmente produtor leva o diretor ao inferno na vida, não dá!". Uma vez, no fim do dia, ele mandou uma lata de filme pra eu filmar uma seqüência, aí o Carlão foi pegar, lá no alto de Santa Teresa, e na volta perdeu tudo, bateu de bicicleta num carro, lá no alto. Era uma bicicletinha sem freio, quando bateu foi bicicleta para um lado, freio para o outro, arrebentou o carro com o peso da lata, o Carlão quase morreu... Essas coisas de produção mal transada. E eu fiquei muito irritado, uma vez, na casa de Joaquim, teve um arranca-rabo brabo... Enfim, coisas assim que não passaram do tempo de uma boa conversa para resolver... O fato é que o filme não fez sucesso, nem de crítica, nem de público, muito mal-lançado comercialmente, talvez por culpa minha, porque eu sou muito pouco prático, muito pouco ligado a essas coisas de lançamento, fiz o marketing que achei que eu podia. Mas Joaquim se desinteressou muito, por causa dessa briga que nós tivemos, teve um certo afastamento, um desinteresse, de maneira que ... Mas isso... e depois ainda trabalhamos juntos no roteiro do Imponderável Bento. Eu, Fernando Cony Campos, Joaquim Assis e Joaquim, trabalhamos durante um bom tempo..
Como foi isso?
O Imponderável Bento, Joaquim começou a bolar o filme, e aí acabou chamando o Fernando Cony Campos pra fazer o roteiro. E Fernando fez comigo O mágico e o delegado, e depois também escrevi com ele o Romance, um filme lá de São Paulo, do Bianchi. E Fernando gostava muito de fazer roteiro comigo, a gente se entendia muito bem. Ele sugeriu: "vamos chamar o Mário!". E Joaquim topou. E ficamos lá batendo bola, idéia sobre o Imponderável.... O Fernando tinha uma formação católica, ele foi de colégio de padre então ele conhecia um bocado de coisas de santo . De maneira que... logo ele tinha ótimas idéias. E o Fernando Cony Campos é uma pessoa muito inventiva, tinha uma memória excelente e conhecia muito caso... Tinha um amigo dele que foi aquele aviador que se jogou de avião em Brasília. O cara dirigiu um dos aviões a jato mais caros do mundo, e aí se ejetou, e ele queria jogar o avião em cima do Palácio. Mas ele não teve coragem. Mas se ejetou e deu um prejuízo danado, estourou todo o avião. E esse cara por acaso se chamava Bento não sei das quantas. Fernando então bolou então essa história desse santo começar com essa reação contra o governo, e aí através disso cair no meio do mato e entrar em contato com metafísicos, com monges e as figuras do deserto, essas coisas assim... Uma parte lá de Brasília. Aí fizemos a história, Joaquim pegou aquilo tudo, alinhavou e ficou muito engraçado, foi realmente uma tristeza realmente não ter podido fazer esse filme... Porque o Imponderável Bento estava sempre levitando, em grande parte do filme ele levitava, e isso era caro, bem caro... Mas foi por conta disso que acabou surgindo lá o Casa Grande & Senzala, eu tentei até trabalhar no filme. Um dia eu liguei pra Joaquim e disse: "Escuta Joaquim, eu gostaria tanto de entrar nesse filme...". E ele: "É mas não está dando chamar mais ninguém, a sua filha já está trabalhando comigo", minha filha Bel estava trabalhando com ele, "e eu me entendo muito bem com ela, com você nem tanto...". (ri) Um desaforo, mais um desaforo... "É melhor você ficar aí, já tem bastante arquiteto pra fazer levantamento...". Era a Maria Alice da Costa, ela até caiu. Fiquei tão preocupado com esse troço, alguma coisa me dizia pra ligar pra Joaquim pra avisar que tinha alguma coisa com a qual ele tinha que tomar cuidado, não sabia explicar o que estava me fazendo ligar. Aí, uma semana depois tive a notícia de que a Lili estava andando em cima de um forro de uma igreja e caiu. Ela caiu de uns seis ou oito metros, ela caiu em pé, quebrou os dois pés, a perna, um inferno, ela passou quase um ano recuperando o movimento das pernas... Então, eu fiquei ligado nesse negócio de "alguma coisa vai acontecer alguma coisa", talvez seja misticismo, mas, enfim... Mas essa coisa, sempre teve uma relação muito especial afinidade. Ele estava lá na França, e eu estava conversando com o Fernando Cony Campos. que estava tentando fazer um documentário sobre Oscar Niemeyer. Fernando olhou pra mim, e nós tínhamos feito esse roteiro do Imponderável Bento, com muito convívio com Joaquim... Ele disse: "Mário, vamos ligar pra Joaquim?", e eu disse: "Vamos ligar, que eu estou precisando falar com Joaquim". Ligamos naquela hora mesmo, Joaquim atendeu lá: "Mário, acabei de abrir o exame aqui, eu estou com câncer nos dois pulmões". "Não é possível, o que que há?", "Não sei de que tipo é, mas eu sei que eu tou isso, tou aquilo, tou fudido...", foi uma tragédia. A gente até falou "Não, pode deixar que dá jeito!", mas a gente sabia. Ele voltou para o Brasil e dois meses depois estava morto, foi terrível. Essa coisas são muito violentas, quando vai embora uma pessoa assim tão jovem, cheia de planos, de idéias e tal... Mas, enfim, não vamos acabar com uma nota trágica, porque eu acho que Joaquim é uma pessoa que está muito presente na vida da gente, está muito atual... Eu estava lendo que vão prestar uma grande uma homenagem a ele, enfim, alguma coisa vai ser feita...
É o Grande Prêmio de Cinema
É o Grande Prêmio de Cinema. É isso aí.
Em seguida a O Padre e a Moça, quais foram as fotografias que você fez que lhe foram mais marcantes?
Eu sempre me entendi muito bem com Paulo César Saraceni, sempre tivemos uma relação muito livre, quer dizer, eu posso dizer o que eu penso, ele ouve. Na hora que eu vou filmar, ele nunca me pediu a mais ou a menos, sempre está bom... Pode até pedir algo a mais, mas é muito raro, eu tenho muita liberdade de fazer. A Cassa Assassinada, toda uma essa Lúcio Cardoso, teve também O viajante. Fiz também o misteriosamente inédito aqui no Rio Natal da Portela, um filme que trata do subúrbio carioca, samba, mas um filme inédito, por todos esses problemas... Enfim, Paulo César tem uma carreira marcada, porque primeiro ele era amigo de Lúcio Cardoso, era amigo de Otávio de Farias, Otávio foi ex-integralista, isso marcou muito. Todo mundo sempre achou que o Paulo era de direita, Paulo César sempre foi uma pessoa de esquerda... Católico, mas de de esquerda. Luis Otávio foi momentaneamente integralista, como Vinícius de Moraes também foi. Muita gente foi da direita pra esquerda, tinha umas nuances entre a própria origem do fascismo, no início era uma coisa que parecia mais de esquerda do que de direita. Iludiu muita gente. E esse nacionalismo um pouco agudo também... Paulo César foi muito prejudicado por esse julgamento um pouco apriorístico da esquerda, sempre foi uma pessoa suspeita. Hoje em dia, está havendo uma releitura do cinema brasileiro, que Paulo César fez O desafio, foi o primeiro filme que abriu para a política diretamente, depois dele é que Glauber fez Terra em Transe. Foi o filme que mais influenciou Glauber, foi o Desafio. Então Paulo César sempre foi uma grande sementeira. Ele fez Porto das Caixas, não deu certo. Depois Joaquim fez o O Padre e a Moça, que tem muitos pontos em comum de ambientação, de ser no interior, de ser um homem e uma mulher, de ser um romance difícil... E também foi um filme que influenciou muito Glauber também. Foi o primeiro filme que as pessoas viram lá na Bahia com essa marca já do Cinema Novo, um pouco minha, mas basicamente já tinha em Arraial, que tinha muito de Paulo César lá dentro, uma coisa importantíssima, porque o Paulo César é um animal cinematográfico. Uma pessoa que joga muito bem futebol e tem um jogo de corpo para cinema. Ele tem o tempo de bola, tem a noção de tempo na cabeça. Então, Paulo César foi uma pessoa muito importante para o Cinema Novo, e depois ele tem uma generosidade com as pessoas que infelizmente não tiveram com ele pela vida afora. Levou muita pancada esquisita por aí, mas tá firme.
Você fez o "Di" com Glauber...
Isso foi o seguinte, eu tava montando Gordos e Magros na moviola do Nelson Pereira, oito horas da manhã, bateu na porta o Glauber: "Morreu Di Cavalcanti, vamos fazer um filme!". E aquilo foi um rojão na cabeça dele. "Eu topo, mas como é que a gente vai fazer um filme?". Aí ele subiu pra falar com Nelson Pereira, eu comecei a ouvir o Glauber falando e andando pela escada, tudo ele fazia com um certo exagero... (imita a voz de Glauber) "Ô Nelson, o Di Cavalcanti morreu, vamos filmar esse negócio, já falei com o Mário Carneiro, é o último dos modernistas, o último dos pintores!", aquele negócio... E o Nelson: "Olha, tem 3 latas de negativo aí, tem uma câmera...". Aí chegou o Nonato Estrela. "Nonato, você vai ser assistente do Mário, pega a câmera do Nelson!". Pegou a câmera, pegou os filmes. Chegou o Joel Barcelos, "Joel, você vai ser ator do filme!", daqui a pouco estava todo o mafuá armado... E ele começou a bater na minha porta: "Mário, já são onze e meia, você vai ficar montando? Hoje não é dia de montar, vamos lá". Aí eu interrompi meu trabalho, onze e meia, quinze pra meio-dia, a gente saiu pra pegar o carro, aí não tinha carro, só tinha táxi, não cabia o material. Aí chegou o Ricardo Pudim com um carro, que era uma kombi, era um carro grandão , "Pudim, vai fazer a produção do filme". E pronto, entrou câmera, tripé... e eu dizia: "Museu de Arte Moderna... e a luz?", "Não precisa de luz!". E eu: "Eu tenho que pegar meu fotômetro", e ele: "Que fotômetro?", "Tá legal, então vamos fazer o seguinte: Nonato, você pega a lente 28mm, põe o diafragma 1.8 e tira o filtro, só filma quando eu disser que pode filmar. Aceita, Glauber?", "Aceito!". Aí eu olhava, pintou uma luzinha, um brilhinho, "Vamos filmar". Foi isso, a base do filme foram esses três rolinhos, depois rodou mais dois com o Nonato, sobre os quadros do Di, quando o filme já estava pré-montado. E foi muito engraçado, um dia eu sonhei de noite que algum prêmio ia ganhar em Cannes... Porque eu tinha mandado o Gordos e Magros a Cannes, só que o filme nem chegou a Cannes, foi mandado pra Roma...Aí chega um bilhete dizendo assim: "seu filme foi mandado a Cannes e não foi aceito". Mentira, que nunca foi visto. Mas não foi aceito. Passa-se um tempo e o filme do Glauber ganha o Prêmio Especial do Júri, Rosselini era o presidente do júri, e era muito amigo do Di Cavalcanti... E o filme realmente tem uma montagem muito divertida do Glauber... E aí depois ficou esse negócio do filme que tirou o filtro e deu certo. E ele queria que eu fizesse A Idade da Terra. Ele telefonou, pramim, aí o Pedrinho tava lá em casa. Eu disse: "eu estou lançando o Gordos e magros, agora tenho que viajar". "Mas eu já estou aqui!". E eu falei: "Mas eu tenho que ficar a serviço do filme... mas está aqui Pedrinho de Moraes, conhece melhor que eu todos os filmes da Kodak, ele é ótimo". Ele ficou nervosíssimo, mas aceitou, Pedrinho foi lá e fez A Idade da Terra. Mas o Glauber, aonde ele podia, ele me chamava. Eu tava filmando no Jóquei ele me chamava. "Mário Carneiro chamado aqui no sambódromo, comparecer a frente de não sei o quê com a equipe de seu Glauber Rocha". Ele dizia, "Confere aí com seu fotômetro".
O Johnny ficava furioso, "eu já disse pra ele que é 2.8!", e eu: "É 2.8, tá ótimo isso". E o Glauber: "você faria com 2.8?", "Eu faria entre 2.8 e 4, prefiro mais fechadinho", e ele virava pro fotógrafo: "Eu não estou dizendo pra você?". Era muito engraçado... Depois quando eu encontrei com ele na França, ele já tinha ido pra Veneza, ele estava furioso com a reação ao filme na Europa, não tinham gostado do filme. Almoçamos juntos, e ele também teve um arrepio de frio, "Ô, Mário...". E ele estava com a Paula, aí começou a se segurar nos meninos. "Eu estou doente". Eu tirei até minha echarpe e dei pro Glauber. Passou a echarpe... Foi a última que eu vi o Glauber. Depois ele disse: "Eu vou morrer". Infelizmente, essa geração, morreu um atrás do outro, uma tragédia. A gente não pode escapar dessa constatação de que o cinema brasieiro é muito duro, é uma tarefa. Se tomar cuidado, diverte. Mas tem que tomar muito cuidado porque é perigoso.
E seus trabalhos nos anos 90?
Eu tive até muita sorte porque eu fiz... Bom, em primeiro lugar, eu tive que pra Globo, porque a situação do cinema se tornou impraticável. Eu já tinha sessenta anos quando fui para a Globo, a gente aprende muito, o ritmo é tão exagerado, você trabalha dezesseis horas por dia. Você tem que criar uma couraça de energia pra resistir. Fiquei cinco anos lá, consegui fazer duas coisas interessantes, Desejo, que eu achei uma coisa legal, sobre o Euclides da Cunha, Memorial de Maria Moura que foi uma minissérie que eu acho que saiu bastante interessante, por causa da imagem, e fiz também Delegacia de Mulheres, que foi divertido fazer... Trabalhei com Regina Duarte num outro seriado dela, era bom de fazer porque era quinze dias, eu trabalhava meio mês, ia pra São Paulo. Enfim, foi uma experiência que eu gosto, porque as pessoas só lembram de mim quando eu digo "fiz tal negócio na Globo", aí todo mundo já abre um sorriso. Mas em cinema... "qual foi mesmo o filme que você fez?" , mas ninguém lembra de nada. Cinema é ingrato, porque some da memória rapidamente. Pelo menos O Padre e Moça, eu vejo que agora tem uma nova geração que está preocupada...
(a gravação é interrompida para a troca de fitas)
Então?
Isso que eu falei do Saraceni gravou? Gravou?.... então, eu estava falando dos anos 90, eu estive na Globo, que é uma experiência bastante interessante, porque vai havendo uma junção entre a coisa do cinema e do vídeo, vai se aprimorando e tal... Porque a gente sabe que daqui a pouco vai ser um sistema qualquer de exibição que vem via satélite, talvez o cinema entre numa fase de hologramas, do grande espetáculo, enfim... imprevisível... mas essa aproximação vai se fazendo, e eu acho que a gente tem que estar trabalhando nessa área, tem que fazer milhares de canais, tem que fazer documentário sobre tudo... Há um déficit de imagens de um milhão de horas, em pleno ano 2000... Então fica passando os mesmos filmes, e é um atraso... Então, eu acho que há um caminho para essa nova geração, sobretudo vocês que estão começando, porque vai ser fundamental ter essa sensibilidade permitida com um vídeo, se fizesse alguma coisa hoje com um 16mm, só daqui a não sei quanto tempo a gente ia ver, e botar som e grana... essa fita vocês podem gastar, depois grava outro em cima e acabou... o problema está na durabilidade, mas mesmo os outros filmes tem que correr atrás, tem que pensar em como salvar os filmes do Joaquim Pedro... (pega na fita com a gravação de "O Padre e a Moça") Isso aqui já tem em vídeo, então não é muita coisa, mas já é alguma coisa que fica.. em último caso kinescopa isso aqui e pronto, já salva uma parte da parada... Mas é isso, agora tenho planos de fazer um longa-metragem, se eu estiver aí com... O problema é que o Brasil tirou muito da vontade e da expectativa de você trabalhar num longa-metragem, como esse mesmo que eu... Bombom da Sedução, um filme que eu escrevi há vinte anos... Uma história de jóquei, história de amor, mas eu fico pensando, vou captar dinheiro, o filme não vai dar um tostão de novo... que inferno, sair correndo, ficar devendo e mais não sei o quê... então tem que entregar a um produtor, vender roteiro, vender um pouco a alma ao diabo mesmo, porque é o que está acontecendo aqui... E as pessoas vão ficando infelizes... E tem uns curta-metragens para eu fazer, tem um que eu fiz, sobre Annabela Geiger, afinal eu sou artista plástico... Paulo César me fala com um certo desprezo: "documentários sobre artistas plásticos...". Eu digo "pois é, eu faço...", é dificílimo fazer um bom documentário sobre artes plásticas, vai fazer...É que muito pouca gente tem essa formação de artista plástico que eu tenho pra poder fazer, eu fiz um sobre AnnaBela Geiger e tive bom resultado, fiz sobre o Geraldo de Barros, de fotografias só, lá em São Paulo teve muito sucesso de crítica e público, é uma co-produção suíço-brasileira, da própria família do Geraldo de Barros, a Michele, a Fabiana, enfim, uma turma muito simpática, eu adorei fazer esse filme... E esses filmes me mantêm atuante, agora acabei de ser chamado para fazer dois curtas de ficção, porque as pessoas acabam vendo esses filmes e se interessando, vêem outras coisas, gostam, vêem uma fotografia minha em preto e branco, gostam, ficam entusiasmados... "Pô, eu queria aquele clima!"... Aquele clima, aquele clima...Aquele clima é aquele clima! É o tal negócio, eu outro dia estava lendo uma frase de... quem gritou pra quem?... Não lembro o nome agora, mas é num livro de um fotógrafo, o professor diz dele "O cara só fotografa a cor como se fosse preto e branco", é o elogio que ele faz ao aluno, ele só fotografa a cor como se fosse preto e branco. E isso é fundamental, eu acho de fato que é fundamental, eu fotografei cor usando muito preto e branco, com um alto contraste de preto e branco, porque a cor abandonada à própria cor não dá... quer dizer, eu sei como pintor que há leis muito mais, digamos assim, severas para a regência da cor.

Entrevista concedida a Clara Linhart, Camila Maroja e Daniel Caetano em dezembro de 1999.
Publicada pela primeira vez em setembro de 2002